O menino e a bola

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“Bola na trave não altera o placar, bola na área sem ninguém pra cabecear, bola na rede para fazer o gol, quem não sonhou em ser um jogador de futebol?”. Este é o refrão da música “Uma partida de futebol”, composta por Nando Reis e Samuel Rosa e imortalizada pela banda mineira de pop rock Skank. 

Pois bem, no país latino americano chamado Brasil, colonizado a partir de  1500 por europeus vindos de Portugal, ao longo do tempo construiu sua própria cultura e história em meio a tantas diversidades e adversidades, tendo nesse período contribuições de diferentes etnias e culturas de várias partes do globo terrestre, dentre elas, a de um homem que ficará marcado para a eternidade, pois, retornando da Inglaterra, onde permaneceu por aproximadamente dez anos até a conclusão de seus estudos,  desembarcou em São Paulo no final do século XIX, trazendo consigo duas bolas, um par de chuteiras e um livro de regras de um novo jogo chamado futebol. Seu nome? Charles William Miller, ou simplesmente, Charles Miller.

Desde então, esse esporte foi ganhando espaço em todas as camadas sociais, chegando ao ponto em que, quase como uma regra, quando nasce uma criança aqui no Brasil, se ela for do sexo masculino, um de seus primeiros presentes será uma bola e uma roupa estampada com o símbolo de um futuro time do “coração”. Nesse meio tempo, a criança, desde pequena, vai interagindo e tentando dominar esse brinquedo, e por muitas vezes acaba sendo dominada por ele, o que só aumenta o seu encanto por esse objeto.

Não diferente, eu também fui um menino que foi arrebatado pelos encantos desse objeto chamado bola. Quando ainda pequeno, por volta dos 5 anos, lembro de ter ganhado uma de presente dos meus pais e, desde então, nossa relação foi constante e permanece até hoje. No início, brincava sozinho e não queria dividir ela com ninguém. Certo tempo depois, comecei a ter que compartilhá-la para poder brincar com os amigos da vizinhança. 

Nessa época, brincávamos onde podia e “não podia”. Ainda me lembro dos gritos de minha mãe dizendo: “Aí não é lugar de jogar bola! Vai quebrar as flores do meu quintal e sujar as roupas que estão limpas no meu varal.” Continuava esbravejando: “Esses meninos não têm jeito!”. Mas a rua era o nosso lugar predileto, porém, com o crescimento urbano e o aumento de veículos no trânsito, esse lugar teve que ser transferido. Assim, com a ajuda de alguns pais e moradores (adultos e crianças), um campinho de terra foi construído em um terreno baldio que ficava em frente à minha casa. Foi então que, no prazo de uma semana, um mutirão garantiu o novo espaço para jogar.

O interessante de se contar é que nesse espaço jogavam homens, crianças e até mulheres. Digo isso porque, em nossa sociedade, esse lugar é tido como um ambiente quase que exclusivo para o sexo masculino, mas em nosso campo não, elas tinham espaço, mesmo que alguns na vizinhança dissessem que lá não era lugar de mulher. 

O tempo foi passando e chegou o momento de ir para a escola. No primeiro ano esse novo ambiente não era muito diferente daquilo que tinha vivido até ali, pois no antigo “prezinho”, as brincadeiras ocupavam o maior tempo da rotina escolar. No entanto, a partir do ano seguinte as coisas começaram a mudar e o espaço das brincadeiras foi perdendo lugar para as coisas “sérias”. O tempo que as crianças permaneciam sentadas e imóveis na suas carteiras já era maior do que o que elas tinham para se movimentar, extravasar etc., pois tinham que dar conta das intermináveis tarefas, inclusive as lições de casa.

Foi assim que o menino peralta, com tanta energia fora da escola correndo atrás de uma bola ou na hora do recreio, parecia ser outra criança, a ponto de a professora chamar os seus pais e recomendar que o levasse ao médico, pois seu comportamento era de uma criança apática, e tudo indicava que poderia ser uma anemia. 

Minha mãe, seguindo tal recomendação me levou ao médico e fez todos os exames necessários, mas clinicamente, não havia nada de errado, e ela se pôs a perguntar: “Como pode um menino, que nas horas em que está em casa não para um minuto sequer, e na escola não tem a mesma energia?”. Ainda me recordo de ter escutado as conversas de minha mãe com meu pai sobre as queixas da professora a meu respeito, em que ele dizia que o melhor a fazer era me tirar da escola, pois quando eu ficasse maior, se assim eu desejasse, voltaria aos estudos. Porém, minha mãe dizia que lugar de criança é na escola e não iria fazer isso. 

            Foi nesse contexto que me formei na educação básica, embora não tenha tido nenhuma reprovação. O que fazia era memorizar e esquecer os conteúdos logo depois das provas, que, para mim, pouco tinham sentido. Tanto é que, quando concluí o Ensino Médio não queria saber de continuar os estudos. Logo consegui meu primeiro emprego em uma indústria têxtil no período noturno como ajudante de maquinista. 

Nesse período, pude refletir o quanto é difícil a vida de um operário, uma vez que as condições de trabalho não são as melhores, entre elas, baixa remuneração, periculosidade (ruídos, altas temperaturas, poluição etc.); não tendo uma perspectiva de carreira. Foi então que, conversando com os amigos do futebol de várzea, comecei a pensar em outras atividades que valorizassem melhor o trabalhador. Nesse momento, investi em um curso profissionalizante de solda e desenho mecânico para concorrer a uma vaga, em meu município, de soldador em uma empresa metalúrgica multinacional, pois esses mesmos amigos me disseram que poderiam me ajudar a conquistar esse emprego, o que de fato ocorreu.

            Embora, nesta empresa, as condições de trabalho fossem um pouco melhores em relação à indústria têxtil, logo percebi que também não haveria muitas perspectivas de crescimento pessoal e profissional. Foi em meio a essas reflexões que me pus a perguntar o que realmente eu gostava de fazer, chegando à conclusão de que a bola e o esporte sempre estiveram presentes na minha vida e, assim, deveria cursar Educação Física.

            Foi por esse motivo que conheci a obra “Educação de Corpo Inteiro”, do professor João Batista Freire e, desde então, me interessei por pesquisar mais sobre seus temas, dentre eles,  a “Pedagogia da Rua”, expressão que o autor utilizou como uma metáfora no livro Pedagogia do Futebol, em que  se discute o modo de ensino desse jogo, trazendo a ideia de que a “rua” tem seu próprio modo de ensinar em nosso país, o qual deveria ser investigada para se tornar, de fato, uma pedagogia, isto é, uma ciência que tem como objeto de estudo os processos de ensino e aprendizagem.

            Nesse sentido, acredito que também fui educado pela “Pedagogia da Rua”, a qual reconheço que teve e tem um valor muito grande na pessoa que sou. Aprendi, por exemplo, a conviver com as diferenças, resolver os conflitos em que nos envolvíamos, e a ser responsável pelos meus atos, a vivenciar valores de justiça e injustiça, ou seja, nesse espaço pude ser o protagonista da minha própria história, o que na escola, como um mero receptor de informações, era praticamente impossível.  

Acredito que as coisas que aprendi na “rua” foram além dos conteúdos formais da escola, oportunizando ensinamentos para toda a vida. Assim, para que essa pedagogia possa se tornar realidade, e um dia estar presente nas escolas brasileiras, faz-se necessário refletir e conhecer de modo mais aprofundado o fazer pedagógico que há nesse ambiente.

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