A “miniaturização” do adulto no futebol

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Por: Rafael Castellani e João Batista Freire

Em nosso texto anterior, “Mais uma vez explicando sobre a especialização precoce no futebol”, afirmamos, trazendo para a discussão a questão da moral presente nesse contexto, que não é o futebol que se adapta à criança, como defendemos, mas sim o contrário. Se tomamos inicialmente como exemplo a moral para argumentar contra a especialização esportiva precoce, tomaremos como referência, agora, o desenvolvimento cognitivo nesse período de vida, sobretudo durante a primeira infância (até os 6 anos).

            Durante a primeira infância, as crianças aprendem na convivência com os adultos, com outras crianças e com objetos. E elas o fazem ao seu modo. Nas escolas de educação infantil recebem orientação de professoras e professores, porém, em ambientes de bastante liberdade. Fora da escola aprendem, e muito, sem que haja profissionais indicando o que e como aprender.

O ritmo de aprendizagem das crianças na primeira infância surpreende os adultos. Seu sistema nervoso é extremamente plástico. É preciso lembrar, no entanto, que tal aprendizagem dá-se por convivência, na maior parte das vezes, sem orientações especializadas de adultos, e de um modo que permite à criança aprender do seu jeito e apenas por necessidade e interesse. Esse processo de desenvolvimento foi muito bem descrito por Piaget e por Vygotsky, o primeiro bastante focado na individualidade da criança e no sujeito universal, e o segundo nas interações sociais.

Os argumentos de Piaget e Vygotsky a respeito do desenvolvimento infantil, considerando, acima de tudo, as interações das crianças com o mundo, deitam por terra todas as formas de relações que não causam interesse a elas. No caso da aprendizagem do futebol, por qual motivo crianças se interessariam por driblar cones ou outros objetos imóveis?

As crianças, apesar das diferenças entre elas, têm um jeito particular de ser e aprender. No período que Piaget nomeou de pré-operatório, por exemplo, as crianças, até seis anos da idade, mais ou menos, resolvem seus problemas por passes de mágica, ou seja, sua maneira de pensar, referenciada em fantasias, é extremamente centrada nelas mesmas. Crianças, nesse período de vida, não conseguem, ainda, colocar-se no ponto de vista do outro, portanto, resolvem suas questões com base unicamente em seu ponto de vista, utilizando-se fartamente de suas fantasias. As regras coletivas, geralmente impostas a elas quando aprendem futebol, constituem um grande mistério para elas. Seguem-nas por obediência e não por compreensão. Se as crianças dessa faixa etária pensam e agem diferente dos adultos (e até mesmo de crianças mais velhas), por quais motivos muitos professores e donos de escolas de futebol acham que a melhor forma de lhes ensinar futebol é tratando-as como adultas, ou miniaturas de adultos, reproduzindo os métodos e exercícios realizados pelos adultos profissionais?

Para as crianças, especialmente aquelas que vivem a primeira infância, o futebol é um jogo de faz-de-conta. Seguir a lógica dos exercícios e jogos utilizados com adolescentes e adultos é uma agressão ao seu modo de sentir, pensar e se relacionar.

O que há por trás, portanto, da insistência em submeter crianças às rotinas de exercícios que replicam a lógica da exercitação de adultos, algo que é feito, geralmente, com a anuência da família? Por qual motivo o ensino do futebol, nesse período de vida das crianças, não considera o ponto de vista dessas crianças e suas características e necessidades, mas unicamente o interesse dos adultos?

Certamente porque esses adultos vislumbram em cada uma dessas crianças um atleta profissional e, se assumirem posto de destaque (somente cerca de 3% dos jogadores profissionais ganham mais de 5 salários-mínimos), ganharão, além da fama, rendimentos financeiros expressivos. É o futuro profissional e o lucro, mais que os cuidados com a criança, que definem a metodologia de ensino dessas crianças. Trata-se, acima de tudo, de integrar a criança ao modo de exploração de um capitalismo predatório que não tem freios ou ética, e pouco se importa com o bem viver de crianças, adolescentes ou adultos. A criança, precocemente vítima desse modo de exploração, é reduzida a matéria prima a ser jogada na máquina de revelar talentos/joias e fazer dinheiro.

Mais adiante, noutro artigo, discorreremos sobre as crianças da segunda infância, a partir dos sete anos, aproximadamente. Neste, manteremos o foco na primeira infância, inclusive porque temos notícias de que crianças de cinco e seis anos de idade estão sendo observadas e tratadas como futuros craques de futebol e, cada vez mais, estão na mira da cobiça de famílias e agentes do futebol profissional. Como não há justiça que caracterize atos como esses de criminosos, tecemos nossos argumentos para evidenciar que não há como justificar a especialização precoce. Toda a ciência atual argumentaria em contrário.

Criança brinca e a humanidade, mesmo que a maioria das pessoas não saiba disso, precisa que ela brinque. Especializar precocemente uma criança no esporte é evitar que ela brinque e se divirta e passe a realizar as rotinas de trabalho de um adulto. Treinar crianças em rotinas de exercícios exaustivas e nada divertidas é submetê-las a trabalhos e o trabalho precoce é proibido por lei, embora a lei não puna quem faz isso no esporte.

Vamos ao argumento de que ela precisa brincar. O ser humano, do ponto de vista biológico, e por seus recursos naturais, é frágil. Deixado à própria sorte na natureza, sem recursos tecnológicos, não sobreviveria. Ele precisou inventar recursos artificiais para sobreviver. E como fez isso? Fez isso utilizando-se de sua imaginação. Não há nada que mais precise de fertilização que nossa imaginação. No início, ela é apenas um potencial. Desenvolver-se-á mais ou menos a depender das experiências de imaginar que os humanos possam viver.

E o que é imaginar? Imaginar é esse fenômeno quase exclusivo dos seres humanos de ser capaz de ver, ouvir, tocar, degustar e cheirar para dentro, isto é, viver dentro de nós qualquer experiência vivida por nós. É uma espécie de vida elevada à segunda potência; assim como alguns animais ruminam seu alimento, os humanos “ruminam”, na imaginação, suas experiências. Podemos, por exemplo, ver algo fora de nós, fechar os olhos e ver essa coisa dentro de nós. Com a vantagem que, dentro de nós, ela pode ser modificada ao sabor de nossa imaginação. Nada existe mais poderoso no ser humano que a imaginação. Foi graças a ela que um dos ramos de hominídeos, o sapiens sapiens, sobreviveu. E o período mais propício para fertilizar a imaginação é a infância. Quanto mais a criança puder viver experiências de imaginar, isto é, de fantasiar, de fazer-de-conta, melhor. E a melhor forma de fazer isso é brincando. Por isso brincar é algo compulsivo na criança. É assustador perceber que até hoje a sociedade humana não reconhece isso e, por incrível que pareça, ainda entende a brincadeira como algo de pouco, ou nenhum, valor.

Se o que nos torna humanos é a imaginação, quando retiramos da criança seu direito ao brincar, estamos matando a humanidade. E esse direito é retirado quando a submetemos intensamente a rotinas de exercícios, tal como as realizam os jogadores profissionais. A criança, por exemplo, brinca de jogar bola imaginando ao seu modo. Muitos de nós brincávamos de bola querendo ser Pelé, Garrincha, Messi, Ronaldinho Gaúcho, dentre outros. A bola é, para a criança, o brinquedo por excelência, capaz de transportá-la para um mundo extraordinário de fantasias. Ao Impedir que ela viva o jogo de bola dessa maneira, transformando-a em miniatura de adulto, estamos prejudicando, não só a criança, mas, no âmbito do futebol, nos afastando cada vez mais do “jeito brasileiro de jogar bola”.  

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