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Não dormi com o alvoroço. Em dois dias chegaria Raimundo, primo de Oto. Vinha de Coxixola, assim mesmo, com dois xis, uma cidadezinha de dois mil habitantes, sertão do Cariri; Paraíba, é claro. Oto, doido por festa, mobilizou todos os morceguinhos da caverna. Botou-os para caçar mariposas, a iguaria do evento, um verdadeiro banquete para a comitiva de Coxixola. Raimundo não viria só, portanto.

Contou-me Oto que seu primo era poeta, violeiro dos bons, e repentista. Imaginei um morcego de chapéu de couro, gibão e viola. Na comitiva coxixolense, uma equipe completa de Fruitbol, aquele jogo estranho jogado com uma frutinha redonda em vez de bola, passada de bico em bico, até que a fruta seja encaixada num buraco da parede da caverna. Detalhe: essa partida contra o time de Coxixola seria jogada no escuro do fundo da caverna, variação possível somente aos mais habilidosos.

De vez em quando Arnaldo emergia do lago e tragava alguma mariposa desorientada que se desprendia das garras dos quirópteros. Raimundo chegaria dois dias depois.

– Tudo certo? – Perguntei ao morcego.

– Só falta decidir quem será o juiz do jogo. – Ele respondeu.

– E a cantoria, quando?

– Depois do banquete, no mesmo dia do jogo.

Os morcegos da comitiva, como Oto, jogavam Fruitbol, mas eram fanáticos por futebol. Uma parte deles torcia para o Campinense, outra para o Treze, equipes de Campina Grande, já que em Coxixola não havia futebol profissional.

Lá pelas quatro da madrugada os morcegos sossegaram e pude dormir um pouco. Acordei com o sol alto e encontrei Aurora em plena atividade lá fora. Contei sobre a festa que dariam para o primo do Oto. Ela se alvoroçou, perguntou se seria convidada; tive que decepcioná-la. Melhor não, ela não resistiria aos próprios instintos.

No dia seguinte, fim de tarde, aquela revoada de morcegos. Um barulho medonho. Era a comitiva de Coxixola. Bandeiras, apitos, guinchos. Aurora se horrorizou e quis atrapalhar a festa, mas intervim, impedi uma tragédia, tirei um coxixolense do bico da coruja. Os sertanejos se revoltaram, queriam invadir a toca de Aurora. Tive que ser diplomático para acalmar os ânimos. A paz voltou. No fim, foram todos dormir. Morcegos não têm problemas com espaço; penduram-se de cabeça para baixo grudados uns aos outros, sem aquela coisa de se arrepiar ao contato de macho com macho, mesmo sendo paraibanos.

O fruitbol foi marcado para as nove da manhã. Os morcegos contrariam seus hábitos noturnos quando se trata de festa. Os de Coxixola, menos habituados ao esporte, perderam, 6 a 5, para os locais. Tudo bem, não foi uma derrota desonrosa. Animados, foram para o banquete, uma profusão de mariposas, quase mortas. Os locais, capitaneados por Oto, tiveram o requinte de deixar as coitadinhas apenas semi-adormecidas, o suficiente para que voassem, mas presas fáceis dos bicos afiados dos coxixolenses. Em seguida, armou-se a roda, era fim de tarde, hora boa para os violeiros, improvisadores de versos, ágeis na música e na palavra.

A cantoria foi longe, entrou madrugada adentro. O repente juntou Raimundo, grande improvisador e Manoel Osório, morcego que passava as madrugadas dedilhando sua viola e era famoso em todas as cavernas do Cariri. Passaram pelas sextilhas, pelo gênero das sete sílabas, o Brasil Caboclo, o Martelo Alagoano, o Quadrão Perguntado, o Galope à Beira-mar, terminando com o Decassílabo. Transcrevo, de memória, só o finalzinho, um Decassílabo; o mote era “Futebol no Brasil é quase um vício / Nem de longe é o reino da verdade”. Raimundo e Manoel Osório não tocavam em violas, aquelas de cinco cordas que os repentistas usam; raspavam as asinhas, mas o som era idêntico aos dos melhores violeiros. Raimundo começou.

Raimundo

Futebol nesta terra é uma alegria
Vez por outra ele vira uma desgraça
Para alguns ele é como a cachaça
E tem quem ache que é pura fantasia
Quem não gosta dessa tal filosofia
E acha nele só motivo de maldade
Engana o povo de todas as idades
Pão e circo é de tudo só o início
Futebol no Brasil é quase um vício
Nem de longe é o reino da verdade.

Manoel

Volta e meia o juiz mostra o cartão
O povo cala, ele usou o regulamento
Acredita que o tal do elemento
É o homem mais justo da nação
Há quem grite, o sujeito é um ladrão
Traidor, vai perder a liberdade
Foi honesto quando tinha mocidade
Envelheceu, fez do roubo um ofício
Futebol no Brasil é quase um vício
Nem de longe é o reino da verdade.

Raimundo

Veja a vida lá em casa, que tristeza
Falta carne na mesa todo dia
Nem pro trabalho eu tenho energia
Mas o Treze jogando é só beleza
Meu senhor, me desculpe a franqueza
Não há time melhor nesta cidade
Se eu não fosse um homem de idade
Eu jogaria até com sacrifício
Futebol no Brasil é quase um vício
Nem de longe é o reino da verdade.

Manoel

O rubro negro é que faz minha alegria
O Campinense é meu time meu irmão
Meus problemas eu esqueço no Amigão
Mas envergonha a falta de decência
Pelas ruas eu só vejo violência
Tem político que finge honestidade
Jogador que falsifica a identidade
Dirigente que é o rei do malefício
Futebol no Brasil é quase um vício
Nem de longe é o reino da verdade.

Aplausos, todos se diziam vencedores, delírio de alguns, bebedeira, cansaço. Dormiram felizes. Morcegos não podem voar de dia; aguardaram o fim da tarde e, alguns entre lágrimas, despediram-se, os de cá prometendo visita, os de lá cheios de saudades do Cariri.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br  

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