No futebol, o moderno é atemporal

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Reprodução: Youtube

 
Períodos como este, em que nos deleitamos com o mais alto nível do futebol mundial, costumam também ser períodos das mais diversas teorias, algumas delas elogiáveis, outras nem tanto.
Neste segundo caso, me chama a atenção um discurso bastante evidente, muito repetido nas últimas semanas, embora não exatamente detalhado, que diz que somos testemunhas do nascimento de algo novo no futebol contemporâneo, uma nova ordemum novo jeito de se jogar e, consequentemente, de um futuro próspero e irrefreável, que deveria ser seguido à risca por nós, profissionais do futebol brasileiro, sob risco de vivermos atrasados.
Da minha parte, admito que tenho enorme cuidado com tudo aquilo que se apresenta como novo. Os leitores e leitoras haverão de concordar que uma das premissas do novo é associar-se, ainda que implicitamente, à ideia de progresso: o novo sempre surge como uma ruptura do velho, mas não é uma ruptura qualquer. É uma ruptura marcante, decisiva, uma negação do passado travestida de passaporte para o futuro, que deve ser comprado rapidamente, ainda que o itinerário não seja exatamente claro para os compradores e, inclusive, para os próprios vendedores. Como bem sabemos, uma das nossas atribuições, em favor da melhora do futebol (e da sociedade), é olhar para além das aparências, olhar em busca da essência, da natureza de um determinado objeto. Há várias formas de se fazer isso. Mas todas elas demandam tempo.
Nessas horas, me lembro imediatamente de dois autores. O primeiro é Heráclito, que advogava em favor da percepção do ser como devir, como movimento, ou seja: as coisas não são estáticas, perenes, elas estão em mudança constante. É por isso que um homem nunca se banha duas vezes no mesmo rio: porque o homem é diferente e porque o rio é diferente. Sendo mudança constante, perceba que as coisas não podem ser novas por muito tempo. Elas só podem ser novas por um instante, mas logo depois dele, o novos e dissolve.
Ao mesmo tempo, me lembro de Jean-Jacques Rousseau, que no auge do Iluminismo, na flagrante influência das luzes sobre o pensamento ocidental (tendo na razão, diga-se, uma grande aposta para a felicidade humana – o que não parece ter se confirmado), questionou se o progresso das ciências e das artes seria sinônimo de progresso moral. A resposta? Não
Neste sentido, mantendo aqui nossa estreita relação com o futebol, me parece absolutamente importante que sejamos cautelosos nas nossas incursões relativas ao novo. Veja bem, existe alguém mais moderno do que Óscar Tabárez? As rugas sob a pele e a moléstia que agora lhe acompanha representam um passado a ser negado ou uma rara sabedoria conferida pelo tempo? Tabárez e o Uruguai não se apoiaram em um modelo de jogo inédito, não parecem vítimas de dispositivos tecnológicos mirabolantes, não estão, em absoluto, interessados em prescindir de um certo tipo de ideal uruguaio descrito em quatro linhas. O Uruguai, neste sentido, é uma espécie de contracultura do futebol contemporâneo: um treinador em nada jovem, mas absolutamente respeitado, uma estrutura tática rara de ser vista (que outra equipe de alto nível joga, em uma base regular, com um losango no meio-campo?), dois atacantes consagrados ao lado meias ainda muito jovens, mas absolutamente confiáveis, um zagueiro gigante que chora, mesmo antes do apito final, pelo jogo e pelo seu povo. A contracultura pode ser absolutamente competitiva. E não há nada mais moderno do que a competitividade. O espírito é atemporal, os valores também.
Me parece necessário questionar seriamente o que significa dizer que o futebol brasileiro (e o Brasil, como um todo) estaria atrasado com relação ao que se pratica em outros lugares. Este pode ser um exemplo de um discurso que soa moderno, mas que, na essência, talvez não seja. Dizer que uma determinada manifestação cultural estaria atrasada em relação a outra significaria dizer (e me lembro aqui de Carlos Walter Porto-Gonçalves), que é como se houvesse um relógio universal, que determina a correta passagem do tempo para todos os povos, e que as culturas que não acompanham este relógio são simplesmente defasadas, retardatárias, atrasadas. Mas o tempo não é absoluto, o tempo passa de maneiras diferentes para povos, culturas e pessoas diferentes. Aliás, poucas coisas serão mais modernas do que a arte de trabalhar com a duração do tempo alheio.
Voltando ao exemplo anterior, se existe um relógio universal, quem dita o seu ritmo? Para descobrir a resposta, basta olharmos para o grande relógio futebolístico mundial. O tempo deste relógio é o tempo do capital. Time is money– ainda que, no futebol, essa afirmação seja feita em vários outros idiomas. A narrativa que guia o futebol contemporâneo é eurocêntrica, e talvez aqui esteja uma das razões que nos fazem crer que há uma nova ordem no futebol mundial. Talvez não seja, em absoluto, porque eles são melhores do que nós. Mas sim porque é lá que se escreve o enredo do futebol contemporâneo (especialmente a partir da imposição econômica) e, mais do que isso, porque talvez nós aceitemos, com alguma passividade, um discurso inclusive violento, que parece emular, no futebol, um sentimento colonialista razoavelmente familiar. Nós somos atrasados ou somos diferentes?
Assim, convido a todas e a todos os treinadores, treinadores assistentes, preparadores físicos, analistas de desempenho, gestores e afins a pensarmos com absoluto cuidado sobre o novo. Nós seremos meros importadores de ideais alheios, adequados para aqueles povos, naqueles contextos, ou nós seremos observadores mais tenazes da realidade, que reconhecem a evolução alheia e as nossas lacunas, e que lutam por um futebol maior e melhor, mas sem prescindir, em hipótese alguma, do nosso povo e do nosso tempo?
Pois nosso sangue é brasileiro e o nosso futebol também precisa sê-lo.
Diferente, sem deixar de ser moderno.

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