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Bielsa, nos tempos de Marselha. (Foto: Eurosport)

 
Neste fim de semana, às vésperas da estreia do Leeds United na Championship (segunda divisão inglesa), houve alguma comoção quando soubemos que Marcelo Bielsa, novo treinador da equipe – e de quem sou profundo admirador – lançou mão de outro dos seus métodos razoavelmente originais. Bielsa procurou, junto à diretoria, saber quanto tempo o torcedor médio do Leeds precisaria trabalhar para conseguir comprar o ingresso para um jogo qualquer. Quando soube da resposta (são três horas), fez com que seus jogadores passassem o mesmo tempo recolhendo o lixo das dependências do clube, para que eles sentissem, de alguma forma, o sentimento dos torcedores. No mínimo, um exercício de empatia.
Medidas como essa não são exatamente novas. Na verdade, elas não apenas existem desde sempre, como existem, muitas vezes, longe dos holofotes. Mas me parecem substancialmente importantes na formação do caráter do jogador. Rapidamente, me lembro de Per Mertesacker, respeitável zagueiro alemão, que trabalhou em um hospital para doentes mentais quando ainda jogava nas categorias de base do Hannover (anos mais tarde, Mertesacker admitiria que o futebol profissional feriu os seus próprios limites mentais). Repare a importância dessa educação na transição da adolescência para a vida adulta, pois nesta fase há fortes traços de idealismo, ao lado de uma percepção razoavelmente autocentrada da vida, que faz com que cada atleta, no seu íntimo, sinta que está destinado para o sucesso e que este surgirá, inevitavelmente, em algum lugar do futuro. Mas para treinadores e treinadoras, além das atribuições tático-técnicas que nos cabem, é preciso trabalhar, ainda que sutilmente, o mundo real que está para além do ideal, o mundo do fracasso, da moléstia, dos limites. O mundo da vida, se você preferir.
Neste sentido, Bielsa me parece grande. Me lembro de uma fala, nos tempos de Marselha, apresentando aos jogadores as contradições entre o sucesso e a felicidade. A essa altura, é provável que alguém pergunte se isso ganha jogos (ou algo do tipo), mas não é disso que se trata: este tipo de fala – que ilustra parte das minhas próprias pretensões como treinador – não parece exatamente interessado em um fim, mas denota uma preocupação latente e sincera com o humano que se esconde no atleta, dele indissociável. Agir apenas sobre o atleta é importante, mas também é como deslizar pela superfície: para respostas profundas, me parece imprescindível superar a barreira do atleta e chegar ao humano, ao emaranhado de contradições e possibilidades que estão adormecidas em cada ser, e que podem levá-lo à plenitude caso sejam despertadas, descobertas! Mas isso é uma arte, e treinadores e treinadoras precisam ser trabalhadores diligentes, que exercitam sua arte com refinamento, para não vitimar nossos atletas nem pela falta, nem pelo excesso.
Para além de um treinador, Bielsa me parece um educador. Na verdade, treinadores e treinadoras são educadores da mais fina espécie. Seja na iniciação, na especialização ou no rendimento, estamos no domínio de um processo educativo, que evidentemente objetiva o melhoramento esportivo mas, para tanto, não pode perder de vista a humanidade dos atletas. Quando entra em campo, o jogador não entra pela metade (não deveria), ele entra inteiro. Ele carrega suas crenças, seus valores, seus medos, sua história e todas as variáveis que, ainda que não estejam visíveis (nem para ele próprio), fazem dele único e, assim, um mistério a ser desvendado pelos treinadores e treinadoras e por todos os envolvidos no processo. Como afirmamos recentemente, o jogo real não tem uma bula, um password que nos leve ao seu final, pois o jogo é jogado por gente, e gente, na sua complexidade, não se define em frases feitas.
Para além de um humanista, Bielsa me agrada por ser atemporal. Acompanhei com atenção o ótimo trabalho feito no Athletic Club, quando transformou um clube tradicionalmente conservador em pura coragem e risco, que envolveu o Manchester United, no Old Trafford, como raras vezes se viu. Para além da tática, as boas equipes carregam um espírito, um sentimento coletivo que vive em cada parte e que vivia naquele tempo, na sua alternância entre uma linha de quatro ou de cinco defensores, de acordo com o adversário (dois centroavantes, linha de cinco, para sempre ter sobra), no movimento puro desde os primeiros instantes da temporada, nos desmarques ininterruptos, no pressing inegociável. Mas aquela equipe também era, em diversos momentos, marcação individual, era ligação direta para Fernando Llorente e Gaizka Toquero, era o que deveria ser, porque Bielsa, em alguma medida, me parece um poliglota, um treinador que sim, valoriza um determinado idioma (o idioma da posse), mas que sabe vários dialetos dentro dele, pois o jogo não se encerra em vocábulos restritos, mas exige léxico variado, para momentos diferentes. É preciso que não sejamos apenas um, é preciso ser vários, de acordo com o contexto, com o adversário, com nós mesmos. Bielsa me parece fazer isso bem.
Ao mesmo tempo, nossos elogios não são míopes e aqui também ressalto o outro lado de Bielsa: o perfeccionismo eventualmente constrangedoras exigências em todos os níveis, um sentimento razoavelmente controladoros valores inegociáveis e diversas outras características que não são apenas passíveis de crítica. Elas fazem dele humano. Como treinadores e treinadoras, é preciso que saibamos lidar com o outro lado, com as sombras que nos acompanham onde vamos, pois elas também são parte do nosso ser. Embora sejamos escravos da força, me pergunto se alcançar o humano (de que falei acima) também não significa a vulnerabilidade, a percepção de que, embora grandes, somos possíveis, e este sentimento pode ser o que nos une como indivíduos e como equipe. Não sei se são essas as intenções de Bielsa, mas sei que ali, como em qualquer outro ser, também há fraquezas, sejam elas perceptíveis ou não.
Por fim, falamos de um treinador idolatrado, referência para vários colegas de ótimo nível (Mauricio Pochettino, Eduardo Berizzo, Diego Simeone, Pep Guardiola, Mauricio Pellegrino…), mas que não traz consigo o argumento dos títulos – no profissional, são poucos. Ou seja, pode ser que no resultado não esteja nossa principal mensurável de sucesso, afinal, só há um vencedor, mas bons trabalhos não faltam. O jogo tem razões que nos escapam, e talvez nelas esteja o motivo porque mesmo os bons (eventualmente os ótimos) podem não estar amparados pelo resultado – ao menos pelos títulos.
O que não significa que eles não estejam amparados. Talvez por algo maior.

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