Sobre o que falamos quando falamos de jogo

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O rondo espanhol, bobinho brasileiro: antes e acima de tudo, um jogo. (Reprodução: the18.com)

 
Há algumas semanas, escrevi sobre alguns dos espaços do futebol de rua. Naquele texto, propus discutirmos a rua como espaço de metáfora, de liberdade e de descoberta.
Descoberta, para mim, é descoberta de si e descoberta do jogo. Afinal, aqui está uma das grandes divergências recentes entre os profissionais do futebol, especialmente quando pensamos no treinamento. Alguns dos colegas defendem um olhar que coloca a técnica no centro do processo (podemos chamar de tecnicismo), outros colegas colocam a tática no centro do processo, enquanto outros colegas, dentre os quais eu me incluo, colocam o jogo no centro do processo – jogo este contempla a tática, a técnica, tudo o mais.
É claro que não precisamos de muitas teorias para pensar o óbvio: o futebol é jogo. Mas, sendo jogo, o futebol não é tão óbvio assim. São muitos os autores que se dedicaram, por vezes durante toda a vida, a pensar e trabalhar com a compreensão do jogo e do ato de jogar: Johan Huizinga, Roger Caillois, Tizuko Kishimoto, Ludwig Wittgenstein, João Batista Freire, Alcides Scaglia – apenas para citar alguns.
Hoje, escrevo sobre o jogo, especialmente na lembrança da disciplina Pedagogia do Jogo, ministrada pelo professor Alcides Scaglia, aqui na FCA Unicamp. Por enquanto, deixo três pontos iniciais para pensarmos melhor sobre que falamos quando falamos do jogo.

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O jogo, em primeiro lugar, é suspensão. Suspensão do quê? Suspensão temporária da realidade. Quando jogamos, quando nos entregamos ao jogo, entramos em um outro estado, que podemos chamar estado de jogo, e fazemos uma breve pausa no real. Entramos portanto em um outro mundo, em um tempo e um espaço bastante particulares, mas fazemos isso com uma condição: nós levamos conosco elementos do real. Ou seja, nós saímos do real, entramos em uma espécie de ficção, mas fazemos isso a partir do real. Não por acaso, quando jogamos por inteiro não sentimos a passagem do tempo, ou então sentimos uma outra passagem do tempo, uma outra dimensão, sobre a qual não temos muito controle – ainda que pensemos o contrário. Na verdade, não é que nós jogamos o jogo, parece mais que o jogo joga conosco, parece que Senhor do Jogo (como nos disse João Batista Freire) é quem está no domínio, e é a ele que nos reportamos, deliberadamente ou não.
Pensar no jogo como suspensão temporária do real tem uma implicação pedagógica bastante importante, pois quem joga não joga com uma ou outra parte do corpo (como pensa o tecnicismo), mas joga por inteiro, joga como se é. Por isso, como defendi neste texto, processos formativos baseados no jogo tendem a ser humanizadores, porque exigem do jogador que se revele por inteiro, nas suas qualidades e defeitos. Por isso, treino e jogo devem falar uma língua parecida.

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Em segundo lugar, o jogo é incerto, é imprevisível. Quem aceita jogar o jogo aceita entregar-se à incerteza, à contingência, à surpresa, à dúvida, à novidade, ao caos, ao equilíbrio caótico, à ordem nascida do caos. Este é um dos motivos, dentre tantos outros, por que uma excelente semana de treinamentos, conduzida por um excelente treinador e uma excelente comissão, pode terminar em um jogo terrivelmente ruim. Porque o futebol é modalidade coletiva de invasão (ou seja, existe um adversário interessado em nos anular inteiramente) e porque no jogo não há relações causais – as relações são outras. A não é causa de B. A narrativa do jogo é menos causal e menos antrópica (menos controlada pelo homem) do que nós imaginamos.
Sendo incerto, o jogo não está definido por antecipação. Não existe uma forma (ao menos legítima) de antecipar o que irá se passar no jogo, pois o jogo é construído ao vivo, por quem joga e pelo próprio jogo. Ou seja, o jogo é histórico, ele se faz ao longo da história, inclusive da história que se constroi naquele tempo/espaço específicos. Ao mesmo tempo, isso não impede que uma dada equipe, quando joga, apresente padrões, e aqui entra o trabalho, por exemplo, da análise de desempenho. A análise não diz o que irá, com certeza, acontecer no jogo, pois o jogo é imprevisível, mas a análise identifica padrões e, em certa medida, aposta, investe que esses padrões possam aparecer durante o jogo. Quando? Não sabemos.
Este é um motivo importante porque não basta dedicar-se aos pormenores do futebol. É preciso, antes, dedicar-se ao jogo. É preciso abrir-se à incerteza, é preciso respeitar o jogo, é preciso caminhar junto do jogo – e não tentar domesticá-lo. Não são poucos os colegas que desejam adestrar o jogo, educá-lo como se ele fosse um animal qualquer, e nesses casos costuma ser mais pesada a mão do jogo – que pode até nos dar algo hoje ou amanhã, mas que também nos cobra mais adiante.
Como ocorre na vida vivida, aliás.

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Por fim, o jogo é regulamentado. Ou seja, o jogo tem regras. São elas que nos dizem até onde podemos ir, quais são nossos limites.
Acho essa ressalva particularmente interessante porque nela mora uma característica pedagógica séria: se decidimos adotar uma metodologia baseada no jogo, precisamos ter muito cuidado com as regras dos nossos jogos. Você e eu já nos deparamos com colegas que, muitas vezes com a melhor das intenções, lotam o jogo de regras, criam inúmeras restrições para nossos jogadores, às vezes ainda pequenos, que querem apenas jogar, mas que se perdem em um mar de referências do que se pode e, especialmente, do que não se pode (ou não se deve) fazer dentro do jogo.
São essas sutilezas que agridem, em certa medida, a imaginação dos nossos jovens jogadores, para quem o jogo deve servir como estímulo e não como obrigação. Nossos pequenos e pequenas carecem de jogos que estejam vinculados a um certo modelo, a um determinado perfil de pessoa/jogador que gostaríamos de formar, mas eles não chegarão nestes lugares mais facilmente se estiverem entupidos de regras, mas sim se escolhermos as regras certas, as regras centrais, as regras mais importantes (com as devidas variações) para chegarmos juntos onde queremos. O fato de ser regulamentado não significa que um maior número de regras nos dará maior controle sobre o jogo.
Em razão da suspensão e da incerteza, inclusive.

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Por enquanto, ficamos por aqui. Mas vamos conversando mais isso em breve.
Falar do jogo é agradável e, desconfio, é cada vez mais necessário.
 

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