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‘E você, jogou aonde?’

Em nossa última conversa, retomamos brevemente o conceito de epistemologia e como essa ciência se articula com os processos didáticos e metodológicos no ensino e treinamento do futebol. Falamos também sobre o quanto a teoria do conhecimento inatista, àquela que concebe o mundo – e o esporte – entre aqueles e aquelas que receberam alguma dádiva dos céus ou receberam vultuosa herança genética e são, portanto, essencialmente talentosos e talentosas, especiais, os e as que passam a vida tentando encontrar o dom que lhes foi atribuído e os e as pobres mortais.

No papo de hoje, apresentamos uma outra teoria do conhecimento, a empirista, que mesmo sustentada pelas mesmas lentes paradigmáticas do inatismo, concebe os processos de aprendizagem de maneira totalmente oposta. Expliquemos.

O inatismo pressupõe que todos os nossos saberes, competências, habilidades são determinados, concebidos para, durante a vida, serem aperfeiçoados: conhecimento é manifestado, assim, de dentro para fora. O Empirismo inverte os sinais. Empirismo faz alusão à empiria, termo que remete ao grego experiência, mas não àquela de sentido larrossiano – muitas vezes evocada neste espaço pelo Hudson Martins. Trata-se da experiência-vivência, mesmo: aquilo que passa.

O modo ‘empírico’ de conceber as relações humanas é tão antigo quanto à teoria do conhecimento inatista. O Empirismo foi impulsionado lá no Século XVII e teve como icônicos entusiastas dois britânicos: Francis Bacon, político, ensaísta e tido como um dos fundadores da ciência moderna e John Locke, filósofo, tido como ‘pai’ do liberalismo econômico. Ambos rejeitavam a incerteza e reduziam os fatos e saberes ao real e ao palpável, àquilo que poderia ser comprovadamente enxergado com os olhos e experimentado: um literal ver para crer, de fazer inveja ao Tomé bíblico.

Locke, inclusive, considerava a alma humana uma tábula rasa: vazia, desprovida de impressões ao nascer, que seria escrita de acordo com nossas vivências.  Quanto mais velhos ficamos ou maior quantidade de situações vividas em determinado contexto, mais sábios, fatalmente, seremos. O conhecimento é adquirido, portanto, de fora para dentro.

O Empirismo, durante os três séculos seguintes, firmou as bases do modus operandi de vida ocidental, seja na política, na economia, na saúde, nas relações sociais e, claro, na educação. Ofereceu uma roupagem moderna à visão de mundo fragmentada e dicotômica: a existência do certo ou errado, o bom e o mau, o vencedor e o perdedor, a teoria e a prática, os que sabem e os que não sabem, o que muito bem convinha num mundo repartido por muros ideológicos de concreto e cortinas de ferro. No Século XX.

No contexto educacional, o Empirismo sustenta abordagens pedagógicas que se pautam em modelos de produção industrial (sim, falo do fordismo e do toyotismo) e da psicologia comportamentalista – vale uma pinçada em ‘Sobre o Behaviorismo’,

obra de Burrhus Frederic Skinner. Superá-las pressupõe um rompimento epistemológico (ou brusca mudança das lentes de contato) que tem exigido, há décadas, constantes esforços de pedagogos e pedagogas globo afora, materializados pela busca de caminhos, na relação de aprendizagem, em que o(a) professor(a)/treinador(a) não mais seja o ‘senhor(a) do ensino’ e o(a) aluno(a), colocado em plano de protagonismo e nobreza deixe de trabalhar de forma mecânica. 

Na cultura esportiva e no futebol, o Empirismo é soberano. O(a) treinador(a), mais velho, mais experiente, ensina ao jogador(a), mais novo, tido como menos capaz, ao mesmo tempo em que é julgado(a) como mais competente que o outro através, e tão somente, dos resultados (como pede o produtivismo industrial). Para consegui-los rapidamente, fraciona, mecaniza e induz comportamentos nos treinamentos através do mecanismo punição-recompensa (olha a psicologia comportamentalista, aí), mesmo que descontextualizados às tarefas do jogo – essencialmente imprevisível e caótico.

São esses os pressupostos que regem posturas banais no mundo da bola. O treinamento baseado em repetições de gestos é o que deve nortear a formação do(a) atleta para que os gloriosos tempos de ‘futebol-raiz’, com ênfase desenfreada na técnica, torne a dar as caras. Afinal, hoje ‘tá chato’ ver jogo. O Fulano, que nunca jogou profissionalmente, não pode ser melhor treinador que o Siclano, ídolo, ex-jogador consagrado, que chupou milhares de laranjas no vestiário e vai transmitir, quase que por osmose, tudo aquilo que fez e viveu em campo. E se não der certo Siclano, chame Beltrano porque ele, sim, bota ‘ordem’, (esse belo eufemismo para medo) e vai fazer com que o time corra mais e jogue ‘com empenho e vontade’. Puro empirismo.

Já corroboramos, em algum momento, com esses exemplos bobos – e é bastante possível que sejam centenas de dezenas de milhares os/as ainda concordaram. Porque, como dissemos, o Empirismo cumpre muito bem o que presume muitas das concepções do paradigma analítico-sintético, colocado à mesa desde o início de nosso processo de formação – na escola, na igreja, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê.  Questionarmos tais concepções no momento em que o Interacionismo, terceira das três teorias do conhecimento que compõem a série, está posto e consolidado em outros lugares da Terra, a redonda e não a plana, é um dever pedagógico:

– teçamos críticas ao tecnicismo e não à técnica. O tecnicismo é a concretização industrial-produtivista chancelam ações repetitivas e descontextualizadas nos treinamentos, dentre outros motivos porque ‘sempre foi assim’, A técnica, fundamental ao jogo, pode e deve ser trabalhada junto à tática;

– vivência, em qualquer área, é importantíssima. Aprendemos a jogar, jogando e a treinar, treinando. Parece-nos importante, no entanto, nos atermos à qualidade, e não à quantidade, das experiências e tarefas que constituem nossos saberes, que adquirem novos sentidos a todo momento;

– há grande diferença entre ‘correr certo’ e ‘correr mais’. A ‘vontade’, desprovida de processos bem definidos na estruturação de modelos de jogo que potencializem rendimentos dos(as) atletas, tem prazo de validade curto.

O Empirismo carece de desconstrução – e toda a desconstrução envolve processo. Demanda, de acordo com o contexto, respeito ao tempo e a história do próximo. Não nos custa, porém, dizer que tal qual o mullet no cabelo, o discman, o computador com o sistema operacional Windows 95, a Brasília amarela e o voto impresso, o Empirismo na pedagogia, no esporte e na Pedagogia do Esporte foi tendência, teve lá sua utilidade e até parece tentador saudá-los em favor de um romantismo – às vezes mal-intencionado.

Mas no frigir dos ovos, é apenas cafona e sem sentido.

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