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Crédito imagem – Cesar Greco/Palmeiras

Elaborado por: Diego Mello com a colaboração de Alessandro Langone e Marcelo Moraes.

Empresas existem para gerar valor a seus acionistas. Mais especificamente, a criação de riqueza através da operação dos mais distintos negócios é, há séculos, o objetivo primordial de sociedades empresárias em todo o mundo. É chamado de Governança Corporativa o conjunto de mecanismos e práticas criados para otimizar o desempenho de uma companhia e garantir aos provedores de capital retorno sobre seus investimentos. As práticas de Governança portanto representam o modo pelo qual as empresas são dirigidas e controladas, a fim de preservar e otimizar seu valor.

Como aplicar esses conceitos ao contexto do futebol brasileiro no qual, para a grande maioria dos clubes, constituídos como associações civis sem fins lucrativos, a criação de valor não está diretamente relacionada à obtenção de lucros? Quais os principais elementos do sistema de Governança de empresas privadas e clubes do exterior aplicáveis a nossos clubes e até que ponto tais práticas contribuem para que eles se beneficiem dos recursos públicos e privados agregados à cadeia de valor da indústria esportiva? Quais os dispositivos legais já existentes sobre o tema e de que forma as mudanças advindas do Fair Play Financeiro proposto pela CBF e da Lei do clube-empresa tramitando no Congresso Nacional poderão contribuir para, definitivamente, alçar a criação de valor ao cerne do processo decisório? 

Essas serão as principais questões abordadas nessa série de textos sobre Governança Corporativa no futebol preparada em parceria com a Universidade do Futebol. O desenvolvimento do futebol brasileiro como indústria passa necessariamente pela reflexão sobre a forma pela qual nossos clubes, federações e a CBF se organizam e são geridos, independentemente de sua natureza jurídica, e sobre o papel das diferentes partes interessadas (stakeholders) na construção de um ambiente de negócios favorável não apenas aos interesses de associados ou acionistas como também à longevidade das organizações.

Governança Corporativa no futebol – uma breve perspectiva histórica

A importância da Governança Corporativa no esporte deriva da sua relevância em empresas dos mais diferentes setores. As discussões sobre o tema adquiriram importante conotação mediante a deflagração na primeira década do século XXI de escândalos de corrupção em grandes empresas multinacionais nos Estados Unidos. Tornava-se latente a partir de então a necessidade por um sistema capaz de minimizar os inevitáveis conflitos de interesse entre os detentores de capital, donos das empresas, e os dirigentes por eles contratados para geri-las. Relatórios, guias, cartilhas e leis foram então elaborados para fundamentar princípios essenciais de ética e transparência aos negócios, disseminando a necessidade por práticas honestas e responsáveis na gestão das organizações. A partir desse mesmo período a matéria evoluiu também no Brasil como decorrência, não por acaso, do processo de abertura econômica e privatizações que estimulou a chegada ao país de empresas internacionais. 

Particularmente no cenário esportivo nacional o advento da discussão sobre Governança para clubes de Futebol teve como um dos mais importantes marcos a publicação da Lei Zico (Lei nº 8.672/1993), em 1993. Somente a partir de então inclui-se no arcabouço legal sobre o esporte elemento relacionado à organização de entidades esportivas como empresas, estabelecendo-se assim previsão legal para um modelo de gerência esportiva ainda incipiente.

Instituídos em momentos históricos bastante distintos aos de 1993, os dispositivos legais anteriores à Lei Zico que estabeleceram as bases de organização do desporto no Brasil, como o Decreto-Lei nº 3.199/194, primeira lei esportiva oficial do país, e a Lei nº 6.251/1975, refletiam, de forma clara, a intenção do Estado em manter controle sobre o funcionamento do esporte. Com efeito, apesar de relevantes para incentivo e regulamentação das práticas esportivas tais dispositivos pouco favoreceram para fomentar discussões sobre a Governança de associações esportivas na medida em que representaram, em última análise, mecanismos para reforçar a tutela do Governo sobre o esporte. A baixa autonomia conferida às entidades para decidirem sobre sua própria estruturação interna fica evidenciada nos artigos transcritos a seguir do Capítulo IX do Decreto-Lei nº 3.199/1941:

“Art. 48. A entidade desportiva exerce uma função de caráter patriótico. É proibido a organização e funcionamento de entidade desportiva, de que resulte lucro para os que nela empreguem capitais sob qualquer forma.

(…)

Art. 50. As funções de direção das entidades desportivas não poderão ser, de nenhum modo, remuneradas.

Art. 51. As diretorias das entidades desportivas serão compostas de brasileiros natos ou naturalizados; os seus conselhos deverão constituir-se de dois terços de brasileiros natos ou naturalizados pelo menos.

Parágrafo único. Poderá o Conselho Nacional de Desportos abrir exceção para o estrangeiro radicado no país, com relevantes serviços prestados à comunidade brasileira em geral ou aos desportos nacionais em particular.”

O paternalismo estatal e a subordinação das entidades esportivas ao Governo àquela época estavam também expressos nas formas previstas em Lei para intervenção e controle do poder público sobre as práticas esportivas, inclusive no que concerne a fiscalização da aplicação dos recursos financeiros das entidades esportivas, conforme corroborado pelos artigos 3º e 9º do mesmo Decreto:

“Art. 3º Compete precipuamente ao Conselho Nacional de Desportos:

a) estudar e promover medidas que tenham por objetivo assegurar uma conveniente e constante disciplina à organização e à administração das associações e demais entidades desportivas do país, bem como tornar os desportos, cada vez mais, um eficiente processo de educação física e espiritual da juventude e uma alta expressão da cultura e da energia nacionais;

b) incentivar, por todos os meios, o desenvolvimento do amadorismo, como prática de desportos educativa por excelência, e ao mesmo tempo exercer rigorosa vigilância sobre o profissionalismo, com o objetivo de mantê-lo dentro de princípios de estrita moralidade;

c) decidir quanto à participação de delegações dos desportos nacionais em jogos internacionais, ouvidas as competentes entidades de alta direção, e bem assim fiscalizar a constituição das mesmas;

d) estudar a situação das entidades desportivas existentes no país para o fim de opinar quanto às subvenções que lhes devam ser concedidas pelo Governo Federal, e ainda fiscalizar a aplicação dessas subvenções.

(…)

Art. 9º A administração de cada ramo desportivo, ou de cada grupo de ramos desportivos reunidos por conveniência de ordem técnica ou financeira, far-se-á, sob a alta superintendência do Conselho Nacional de Desportos, nos termos do presente decreto-lei, pelas confederações, federações, ligas e associações desportivas.”

Da mesma maneira, já na década de 1970, foi expresso de forma inequívoca nos artigos 8º, 17 e 18 da Lei 6.251/1975 o controle absoluto pretendido pelo poder público na gestão e financiamento do setor esportivo no país:

“Art. 8º O apoio financeiro da União somente será concedido a entidades que observarem as disposições desta Lei e de seu regulamento ou as normas expedidas por órgãos ou entidades competentes do Sistema Desportivo Nacional.”

(…)

Art. 17. Caberá ao Conselho Nacional de Desportos fixar os requisitos necessários à constituição, organização e funcionamento das confederações, federações, ligas e associações desportivas, ficando-Ihe reservado, ainda, aprovar os estatutos das confederações e federações e suas respectivas modificações.

Art. 18. Sob pena de nulidade, os estatutos das confederações, das federações e das ligas desportivas, obedecerão ao sistema de voto unitário na representação das filiadas em quaisquer reuniões dos seus poderes.

§ 1º O Conselho Nacional de Desportos padronizará o sistema de votação nos estatutos das confederações, federações e ligas desportivas.

§ 2º As confederações, federações e ligas desportivas terão, a partir da publicação do decreto de regulamentação desta lei, o prazo máximo, improrrogável, de 90 (noventa) dias para adaptarem os seus Estatutos ao presente artigo.”

Não obstante, ainda que de forma sucinta e pouco específica, os contornos a respeito de maior relevância na participação da iniciativa privada no esporte, em complemento ao incentivo estatal, passaram a ser delineados no artigo 4º dessa mesma Lei, segundo o qual: 

“Art. 4º Observadas as disposições legais, a organização para a prática dos desportos será livre à iniciativa privada, que merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos.”

O que então pensava-se representar a modernização definitiva do arcabouço legal a respeito da Governança no esporte, entretanto, foi verificada apenas em 1993 por meio da promulgação da Lei Zico. Dentre outros aspectos de significativa relevância para a gestão dos clubes de futebol, instituiu-se, como anteriormente citado, a possibilidade do gerenciamento do esporte através de empresas, em contraposição ao modelo associativo sem fins lucrativos então, e até hoje, vigente:

 “Art. 11. É facultado às entidades de prática e às entidades federais de administração de modalidade profissional, manter a gestão de suas atividades sob a responsabilidade de sociedade com fins lucrativos, desde que adotada uma das seguintes formas:

 I – Transformar-se em sociedade comercial com finalidade desportiva;

 II – Constituir sociedade comercial com finalidade desportiva, controlando a maioria de seu capital com direito a voto;

 III – Contratar sociedade comercial para gerir suas atividades desportivas.

Parágrafo único. As entidades a que se refere este artigo não poderão utilizar seus bens patrimoniais, desportivos ou sociais para integralizar sua parcela de capital ou oferecê-los como garantia, salvo com a concordância da maioria absoluta na assembleia geral dos associados e na conformidade dos respectivos estatutos.”

Os debates jurídicos acerca da personalidade jurídica dos clubes de futebol incitados pela Lei Zico adquiriram ainda maior importância pela promulgação da obrigatoriamente dos clubes tornarem-se empresas disposta no texto original da Lei Pelé (Lei nº 9.615/1998), de 1998:

“Art. 27. As atividades relacionadas a competições de atletas profissionais são privativas de:

I – Sociedades civis de fins econômicos;

II – Sociedades comerciais admitidas na legislação em vigor;

III – Entidades de prática desportiva que constituírem sociedade comercial para administração das atividades de que trata este artigo.

Parágrafo único. As entidades de que tratam os incisos I, II e III que infringirem qualquer dispositivo desta Lei terão suas atividades suspensas, enquanto perdurar a violação.”

A lógica havia sido portanto invertida: da proibição ao funcionamento de entidades esportivas direcionadas ao lucro, em 1941, à obrigatoriedade de sua constituição como sociedades com fins econômicos, em 1998, a legislação brasileira sobre Governança no esporte evoluiu como resposta às mudanças econômicas, políticas e sociais verificadas no período. Mas esse cenário durou pouco: em razão de controversas jurídicas acerca de sua constitucionalidade a alteração compulsória do modelo associativo estabelecida pela Lei Pelé foi posteriormente revogada, restaurando-se o cenário preconizado pela Lei Zico segundo o qual a conversão é opcional. Apesar disso o artigo da Lei Pelé que trata sobre esta matéria mantém no texto atualmente vigente de seu art. 27 a previsão legal de equiparação de clubes a empresas, particularmente no que concerne à responsabilização dos dirigentes esportivos prevista no Código Civil (Lei no 10.406/2002):

“Art. 27. As entidades de prática desportiva participantes de competições profissionais e as entidades de administração de desporto ou ligas em que se organizarem, independentemente da forma jurídica adotada, sujeitam os bens particulares de seus dirigentes ao disposto no art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, além das sanções e responsabilidades previstas no caput do art. 1.017 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, na hipótese de aplicarem créditos ou bens sociais da entidade desportiva em proveito próprio ou de terceiros.    

§ 11.  Os administradores de entidades desportivas profissionais respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados, de gestão temerária ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto, nos termos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.”    

Novas perspectivas – cuidado com o que deseja

A partir dessa contextualização histórica é possível compreender o panorama atual e os possíveis rumos para o nosso futebol a respeito das práticas de Governança Corporativa. Considerando-se que apenas a partir do início dos anos 1990, após quase um século do início da prática do futebol no país, os clubes passaram a dispor de autonomia legal para definirem sua forma de organização jurídica é de se esperar que seja longo e penoso o processo de ruptura com o cenário anterior de forte subordinação ao Estado e dependência de recursos públicos. Na medida em que se deparam com a possibilidade de abandonar o modelo associativo e buscar novas formas de financiamento de suas atividades, no entanto, as organizações automaticamente atraem para si maior compromisso com transparência, moralidade, impessoalidade, eficiência e outros temas inerentes a boas práticas de gestão. Seja para atender expectativas de parceiros comerciais, empregados ou órgãos dirigentes da indústria quanto ao uso consciente e efetivo dos instrumentos de Governança, ou mais especificamente para prestar contas a investidores ou acionistas, no caso daquelas constituídos como empresas, é ainda longo o caminho a ser percorrido pelas entidades esportivas na direção de um ambiente de plena confiança, credibilidade e ética nos negócios.

Apesar disso, no que pese o número ainda incipiente de clubes de futebol que formalmente constituíram-se como empresas no país, o notório aumento do nível de profissionalização verificado na última década na forma como nossos clubes e a própria CBF são geridos é indicativo da baixa tolerância do mercado em relação a práticas amadoras, antiéticas e pouco transparentes de gestão. Independentemente se em associações sem fins lucrativos ou em sociedades empresárias, anônimas ou limitadas, é crescente a percepção por parte de nossos dirigentes esportivos do dano ocasionado por irresponsabilidade e ineficiência administrativa e da forte relação causa-efeito existente entre as ações realizadas fora das quatro linhas com os resultados esportivos obtidos dentro delas.

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