Sobre o uso de coringas como recurso pedagógico

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Toni Kroos, nos tempos de Bayern: um coringa por excelência? (AP Photo/dpa, Thomas Eisenhuth, File| Divulgação: Sporting News)

 
O ofício de treinador – que se confunde com o ofício de professor– exige, como em qualquer outra arte, que se goste de fazê-lo. Neste caso, portanto, é preciso que se goste do ato de treinar. Mas não é só isso: é preciso também que se goste de planejar os treinamentos, que isso se faça com responsabilidade e diligência, assim como é preciso que se goste de pensar sobre o treino, desde as suas referências macro até os pormenores.
Neste sentido, proponho hoje conversarmos sobre um pormenor que já rendeu boas discussões com alguns colegas e que me parece um recurso pedagógico muito interessante: o uso de coringas em determinados exercícios.
Vejamos.

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Em primeiro lugar, qual é a grande vantagem de lançar mão de coringas nos nossos exercícios? É simples: com eles criamos situações permanentes de superioridade numérica. Mas não é uma superioridade qualquer. No caso dos coringas, as superioridades não se realizam de maneira estanque, mas fluida. Ou seja, uma mesma equipe não terá superioridade durante todo o exercício, mas terá superioridade em momentos específicos, cuja marcação não é exatamente cronológica, mas nasce do tempo do jogo: há superioridade quando se recupera e se conserva a posse da bola. Essa transitoriedade que caracteriza o exercício com coringas me parece importante, especialmente se pensarmos na condição igualmente transitória do jogo.
Neste sentido, talvez persista uma pequena confusão, sobre a qual podemos pensar agora: do que falamos quando falamos de coringas? Aqui, acho saudável estabelecer uma distinção entre os coringas e aquilo que prefiro chamar de apoiosUm coringa também será um apoio, mas um apoio não será necessariamente um coringa. Vejo dois tipos de apoios: I) aqueles que servem como opções ao portador da bola – como citado por Bayer, por exemplo – independentemente do setor do campo; II) aqueles que podem ou não servir às duas equipes em um dado exercício, mas cujas ações estão restritas a um determinado setor do campo, esteja ele próximo à linha de fundo (caso o objetivo do exercício seja, por exemplo, fazer com que a bola encontre apoios em profundidade), ou fixo nas laterais (em um exercício de progressão ao alvo ou manutenção da posse, por exemplo, em que apoios em largura estão disponíveis para a equipe que ataca).
Quando penso em um coringa, penso em um jogador que sempre estará a favor da equipe em posse da bola, mas que pode, durante o exercício, circular livremente, oferecer apoios ao portador da bola em quaisquer larguras/alturas do campo. Ao mesmo tempo, não sei se os colegas compartilham dessa impressão, parece haver no coringa uma certa tendência centrípeta, como se a partir do centro fosse mais provável equilibrar as ações ofensivas. E de certa forma, o coringa se torna uma espécie de atrator natural, uma vez que ele estabelece a diferença momentânea entre as duas equipes.
Ainda aqui, é importante considerar que um coringa não oferece apenas superioridades numéricas. Ele também pode oferecer outros dois tipos de superioridade: posicional (uma vez que, sendo o elemento distinto do jogo, pode e deve criar espaços), como também superioridade qualitativa, pois é o coringa, de acordo com o exercício, quem deve dar fluidez e movimento ao jogo através da bola. Na foto de capa deste artigo, escolhi uma imagem de Toni Kroos exatamente pela sua evidente potencialidade para a função. Kroos, afinal, é um exímio passador.
Mas da mesma forma, sabendo que jogadores mudam ao longo do tempo (muito em função da medicina do bom treinador) será que o coringa também não se torna um recurso interessante para a evolução do mau passador?

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Para além de uma utilidade funcional, repare que os coringas têm um importante apelo afetivo – nomeadamente para os colegas que trabalham na iniciação (iniciação tardia, inclusive). No caso das crianças, especialmente após o período pré-operatório piagetiano, já existe um certo senso de solidariedade, ao mesmo tempo em que ainda vivem, como expressões da humanidade que nos é comum, traços de egocentrismo, que também precisam ser afagados. Na minha experiência, percebo que as crianças adoram o papel de coringas, independentemente do jogo –  tendo em vista que o coringa é um atrator natural, como dissemos acima. Com alguma malícia, é possível criar estratégias para que todas as crianças experimentem o papel de coringas ao longo do tempo. Se quiser intensificar a afetividade, basta brincar junto. Por exemplo, quando dou meus treinos de boné, costumo emprestá-lo para as crianças como o objeto que irá distinguir o coringa. De alguma forma, além de estimular que as crianças do time que ataca mantenham a cabeça erguida (o boné está no alto), ali reside um certo peso simbólico, pois usar um dos objetos que diferem o treinador transmite alguma satisfação, ainda que temporária. Se o treinador (de propósito) usar o boné para trás, oferecendo a mesma possibilidade para as crianças durante o jogo, então além de satisfação talvez também se crie uma certa informalidade, um ar simbólico de relaxamento e liberdade – interessante para os mais tímidos, especialmente. Brincar com esses detalhes é parte central do nosso ofício.
Para além da questão afetiva, vejo outra possibilidade pedagógica importante a partir dos coringas. Especialmente na iniciação, tenho a impressão de que jogos em igualdade numérica podem ser fortemente complexos de acordo com o grupo, daí a importância das superioridades. Não por acaso, em exercícios de finalização, por exemplo, me agrada bastante criar situações muito mais limpas para o ataque, como 3 v 1, por exemplo, situações essas que modulo, para baixo, à medida que as crianças se mostram mais à vontade (quanto maior a superioridade, supostamente maiores serão as chances de se alcançar um objetivo como a finalização).
Mas essa mesma situação, repare bem, talvez não seja necessariamente aplicável aos coringas. Em jogos de manutenção da posse, por exemplo, caso utilizemos mais do que um coringa, entramos em um dilema importante, uma vez que uma das primazias do coringa é exatamente o cuidado posicional. Com as crianças, não se pode (e não se deve) priorizar a posição, as crianças precisam jogar. Coringas em excesso, portanto, podem até facilitar o alcance de um determinado objetivo dentro do jogo, mas também podem se chocar com os mesmos princípios da atração e das superioridades de que falamos anteriormente. Lidar com essas ambiguidades é outra obrigação importante do nosso ofício.

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Já nos cenários da especialização e do rendimento, talvez os caminhos sejam outros. Quais são as vantagens e, especialmente, quais são os limites do uso de coringas? Por ora, indico a reflexão do colega Eduardo Barros, em coluna publicada nesta mesma Universidade do Futebol.
Continuamos em breve.
 

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