Ciência canela de pau ajuda jogador canela de pau

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Entardecia com mais tranqüilidade que de hábito em minha caverna, geralmente ensandecida àquela hora com a movimentação dos animaizinhos voadores saindo para a caça. Os morcegos recuperavam-se do lauto banquete da noite anterior, quando uma nuvem de mariposas, vindas de não sei onde, atiravam-se como loucas contra a entrada da caverna, atraídas pela chama vermelha da tocha que mantenho acesa até a madrugada. Segundo Oto, bastava abrir a boca durante o vôo. De barriguinhas cheias, os pequenos quirópteros perderam a hora, esqueceram do entardecer. 

Sem nada para fazer, meu hábito mais constante, eu tomava um chá de jasmim. De repente eis que chega Oto, meu morcego confidente. Ainda esfregando os olhinhos perguntou-me do que era o chá, e eu disse – De jasmim. – Detesto – disse ele – não tem de outra coisa? Fez-me levantar e providenciar um de canela que eu guardava de minhas andanças pelo mundo. Sentei-me, ele pendurou-se, e iniciamos uma conversa sobre qualquer coisa, deixando-nos levar pelas palavras. Talvez inspirados pelo chá, o assunto pendeu para o futebol truculento, dos beques de fazenda, dos brucutus da bola. – Como aumentaram – disse Oto – há mais canelas de pau que craques. – Mais, bem mais – completei – aqui no Brasil então, nem se fala. Os poucos craques que restaram bandearam-se para a Europa. 

Enquanto a água fervia percebi a barriguinha saliente de Oto, vestígios do banquete de mariposas. 

– E a ciência Bernardo, ela não ajuda a formar craques? – perguntou o morcego, alisando o abdômen. – Parece que não – respondi – os craques dependem de habilidades especiais, de coordenações finas, de gestos sutis, de equilíbrio, de uma visão muito apurada do espaço de jogo, e disso a ciência pouco se ocupa. – É impossível! – disse Oto – Outro dia, estive na universidade e vi pilhas e pilhas de revistas com artigos científicos sobre esporte. 

Explico: Oto, como vocês sabem, é um morcego. Morcegos têm hábitos noturnos e gostam de, eventualmente, visitar bibliotecas. Meu quiróptero confidente descende de um vetusto patriarca alado que residiu por largos anos em Coimbra, donde a tradição familiar é de todos se interessarem pelas letras. Oto mata dois coelhos com uma só cajadada: alimenta-se de tenros papirógrafos, isto é, de piolhos, cupins e traças que destroem livros, enquanto folheia, com agilidade incrível, as obras que lhe interessam. Fanático como é por futebol foi aos papers e saiu de lá impressionado. – Bernardo – disse-me ele – se toda aquela pesquisa se revertesse em prol do bom Futebol, que maravilha! 

Senti desapontar meu amigo, mas tive que explicar-lhe que a tal ciência do esporte, com raros e esporádicos esforços, dedica-se, acima de tudo, a formar bólidos defensivos, que consomem suas vidas esportivas a destruir a refinadíssima arte de controlar a bola dos Pelés, Garrinchas, Zicos, Sócrates e seus congêneres dessa estirpe de craques que as ruas brasileiras produziram. 

– Que pena! – lamentou Oto – com tanta ciência, imagine se eles pudessem melhorar ainda mais essa arte. 

Na cabecinha do morcego, era difícil compreender o motivo que levava os pesquisadores a formarem exércitos de zagueiros e volantes truculentos. – Como fazem isso? – ele perguntava. 

Sem muita esperança de elucidar-lhe o dilema, falei que, nos últimos anos, uma verdadeira obsessão pelo desenvolvimento de força muscular, um pouco menos pelo da resistência, tomou conta da pesquisa no esporte; quem quiser confirmar, pode consultar as publicações, que estão todas à disposição por aí, nas revistas, nos congressos, nos seminários. Com o desenvolvimento de conhecimentos sobre como tornar os atletas mais fortes e mais resistentes, foi possível colocar para jogar em grandes equipes jogadores que, sem isso, não passariam da várzea. Fortes como touros, fazem frente aos melhores craques e anulam suas tentativas de praticar futebol. Os canelas de pau estão por toda parte, até nas melhores equipes do mundo, ganhando salários altíssimos. Além disso, os métodos para hipertrofiar os músculos podem ser aplicados indistintamente a todos, porém, quando aplicados aos craques, tornam-nos duros, desengonçados, lerdos; aos poucos vão ficando mais e mais parecidos com os zagueiros. Quando relaxam um pouco no treinamento, engordam, contundem-se e aí, nunca mais, nunca mais praticam sua arte. 

– E não daria para criar outra ciência, uma que favorecesse a arte do futebol? – perguntou, um tanto desconsolado meu pequeno amigo. 

– Não sei Oto – respondi – teria que ser alguma coisa mais humana, alguma ciência que enxergasse a pessoa que joga e não somente músculos, metabolismos, tendões. Essa outra ciência teria que ir às ruas, inquirir os peladeiros, as crianças, a cultura popular; talvez tivesse que vir do campo de futebol para o laboratório, e não ir do laboratório para o campo. As ruas e os campos de várzea do Brasil guardam o maior acervo de conhecimentos sobre futebol do mundo, ignorado pela ciência. Se ela fosse boa, de 1970 para cá teríamos produzido, nos gramados, verdadeiras obras de arte. Pelo contrário, incapaz de enxergar o refinamento do gesto, a visão de campo, a sutileza da finta, a perfeição do passe, produziu paredes de músculos, locomotivas de resistência, como se anular o bom futebol fosse um objetivo a alcançar. “Mas, assim é o homem Oto, assim é a ciência feita pelo homem. Não difere muito da indústria de bebidas ou de sanduíches; quanto mais tratam os diferentes como iguais, melhor, mais lucro.” Essa última parte eu apenas pensava, fechado em meu silêncio. Não quis dizer tudo isso para Oto, já bastante triste. Porém, era preciso dizer-lhe algo mais.

– A ciência do esporte também é canela de pau Oto, por isso ela só ajuda jogador canela de pau.

Nisso passou um bando de mariposas enlouquecidas pela luz das tochas e meu amigo quiróptero, carregando sua barriguinha ainda cheia, atirou-se com enorme desenvoltura sobre o que prometia ser mais um banquete de luxo.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br

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