A despedida do Fenômeno

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Nem lhes conto! Um sonho terrível tirou-me o sono. Sufocava! Levantei-me e saí à procura de ar puro fora da caverna, era madrugada, o silêncio pesava, nem uma vivalma àquela hora, exceto Aurora, que, à minha direita, fitava o céu, de tal maneira absorta, que sequer me percebeu. A coruja admirava Dalva, a estrela, Vênus para alguns. Aguardei os clarões do sol apagarem o brilho da estrela da manhã, e chamei a atenção de Aurora; toquei-lhe o ombro. Ela, que não dormia, acordou. E disse:
 
– Pensava no Ronaldo, no que aconteceu naquele jogo do Corinthians com o Palmeiras. Inacreditável! Será o rapaz uma Fênix ressurgida? Três cirurgias depois, fintas, passes, bola na trave, e aquele gol, logo de cabeça, que não é seu forte. Mais parecia um programa do canal Z33, da TV da minha toca, aquele que só mostra o que a gente quer ver. Deu-me a sensação, quando ele pegava na bola, de estar misturando fantasia com realidade. Terá sido apenas um suspiro do Fenômeno, um raro momento em que ele acordou de um sonho? Ou posso continuar sonhando?
 
E Aurora falava como se olhasse, dentro dela, num écran imaginário, Ronaldo e suas obras, pintadas nas telas verdes do mundo e gravadas para sempre na lembrança das pessoas. Assim é o futebol, dizia ela, arte para muitos, ricos e pobres, milionários e miseráveis; obras efêmeras, performances, pincéis de pernas suadas, bolas, corridas, carrinhos e canelas quebradas, saltos, composições inimagináveis até que surjam. Pelé e Garrincha, Ronaldo e Maradona, Monet, Matisse, Picasso e Gauguin, com a diferença que os da bola todo o povo os entende. Em seguida ela se calou um instante, respirou fundo, e disse:
 
– Eu gostaria que a gente promovesse uma despedida para o Ronaldo. Que ele se despeça, que nunca mais participe de jogo algum, que só reste a imagem do rei, do artista, a marca do raro jogador que sempre foi.  
 
Interrompi-a:
 
– Como faríamos isso, Aurora? Ele jamais aceitaria, muito menos o Corinthians ou a Nike.
 
Não importa – ela disse – com a ajuda de Oto e seus milhares de amigos morcegos, espalharíamos convites pelo país inteiro, anunciando que seria aqui, na entrada da caverna, no momento exato do pôr-do-sol, a cerimônia em que o craque daria seu derradeiro chute na bola. Faríamos como se fosse algo consolidado, irreversível, de forma que não seria possível ao Ronaldo ou a quem quer que fosse recuar.
 
– Discordo, Aurora, mesmo que conseguíssemos. Ronaldo deveria ter feito isso há quase sete anos, logo após a Copa de 2002. Quem sabe o desastre de 2006 não tivesse acontecido.
 
– Ainda que tardia, quero vê-lo se despedir dos gramados – insistiu a coruja.
 
– Você está impressionada, como todo mundo, pelo que aconteceu naquele clássico contra o Palmeiras – eu disse – mas aquilo foi um suspiro, e não mais. De resto, qualquer coisa que ele faça em campo, daqui por diante, por mais normal que seja, será proclamada pelos arautos da bola como façanha heróica… não mais um homem, mas um semi-deus, um titã.
 
– Sim, eu temo por ele, pelo que venha a acontecer daqui por diante. Não quero vê-lo como a última chama da vela que se extingue, aquela que cresce subitamente antes de se apagar para sempre – gemeu Aurora.
 
Prossegui com meu arsenal de razões contra os sentimentos da coruja.
 
– Você sabe como ele se excede; com as mulheres, com os carros, com a festa. Como se nada tivesse valor.
 
– Sim, Bernardo, Ronaldo é em excesso. Ou você queria que ele se excedesse só no futebol? Há homens e mulheres que são assim, e você os conhece na música, no cinema, no teatro, onde são todos perdoados. O futebol não é feito só de bons moços.
 
Meus argumentos eram vãos. Enfim, que são as idéias ante as emoções! Esgrimi meus últimos cartuchos. Ronaldo era só um garoto propaganda, um outdoor ambulante, um menino bobo que calçava chuteiras da Nike e que vendia qualquer coisa que mencionasse, porque seu número nove estava nas camisas dos meninos bobos do mundo inteiro, porque seus dentes à mostra ficaram na lembrança das pessoas bobas de todos os povos, e porque seu retrato estava nas paredes dos barracos, das mansões, e dos mosteiros tibetanos.
 
– Vamos perguntar ao Oto – sugeri, confiando que meu amigo morcego poderia ficar ao meu lado – quem sabe ele, que não é corintiano, muito menos palmeirense, possa nos ajudar.
 
Não foi preciso. O morcego ouvia atentamente nossa conversa, pendurado de cabeça para baixo no teto da entrada da caverna. Assim que Aurora se aproximou, ele fugiu alvoroçado. Alcancei-o pouco depois, mas já encontrei a confusão formada. Arnaldo, o bagre cego, vestia uma camisa amarela número nove e cabriolava nas águas do poço. Uma multidão de morceguinhos, liderados por Oto, meu morcego confidente, e traidor, de cabeça para baixo gritava em uníssono: Ronaldo, Ronaldo… Voltei à companhia de Aurora.
 
– Vamos fazer a despedida – falei.

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