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Não recebo e-mails. O que me chega vem no bico de Oto e seus morceguinhos-correio, em papel. Tem de tudo: alguns missivistas curiosos duvidam que eu seja de fato um eremita vivendo no fundo de uma caverna. De quê eu viveria? Afinal, dizem, um homem precisa comer. É porque não conhecem do que é capaz a terra quando bem tratada. Meus tomateiros e pés de couve alimentariam bem mais que uma família. Inhames e carás nunca me faltam, além da frondosa árvore de fruta-pão. Nasceu-me, perto daqui, sem que a plantasse, uma pitangueira.
 
A jabuticabeira já existia quando para cá me mudei. Tenho os pequis e as gabirobas, e até melancias, eventualmente, uma ou outra. As mangas fazem lama no chão. Já me perguntaram se sou vegetariano. Respondo que vegetariano fui ficando, pois que não há açougues por perto, e animais, onde vivo, são companhia, não comida.
 
Tenho amigos, mas não os quero próximos. O jovem João Paulo manda-me cartas convidando-me para deixar o exílio. Não, eu não deixaria a companhia de Aurora, de Oto e Arnaldo. Fazem-me bem, e bastam-me. Ao João Paulo respondo que não foi algum mal que me expulsou da cidade, mas apenas a caverna que se mostrou mais atraente que todas as luzes, todos os carros, todos os shopping centers.
 
Nem deixar os estádios de futebol lamento. Já não os frequentava há muito quando vim para cá; violência em excesso, sabem? Do futebol sinto falta, ah, isso sinto! É só o que explica eu ter na caverna uma televisão, alimentada a duras penas por uma bateria solar. Por sorte, onde vivo, há sol quase todo o ano. Como consegui uma televisão alimentada por bateria solar? Por aqui os mistérios são muitos.
 
Aurora chegou depois de mim. Antes, viveu à beira de muitos gramados. Um dia teve o marido morto por uma bolada, um petardo que, errando o alvo, atingiu-o quando estava pousado lá, onde, dizem os cronistas, a coruja mora. Os filhos, ah, os filhos!, os das corujas emplumam e saem por aí, as mães nunca mais os veem.
 
Aurora, depois da morte do marido, abandonou os campos de futebol, voou a esmo, pensou mesmo em fazer como os condores machos quando perdem suas fêmeas. Aqui ela desceu para descansar e se encantou com o lugar. Sabe tudo de futebol. Arguta, acompanhou-o, desde o 1, 2, 3, 5 até o 1, 4, 5, 1. Desdenha de todos.
 
Um dia chegou uma carta de um missivista dizendo achar absurdo alguém se encerrar no fundo de uma caverna, abandonando o convívio com os humanos. Que pode fazer um homem de bom pelos outros quando corta os laços com os amigos, com as crianças, com as pessoas na rua, com os parentes? Respondi-lhe perguntando: que diferença faz isolar-se em uma caverna ou em um apartamento no vigésimo quinto andar de um edifício? Entre os dois isolamentos, prefiro o do campo. Uma sobrinha confessou-me, pouco antes de eu vir para cá, que participava de novecentos e setenta e seis comunidades no Orkut; nunca conheceu uma alma das milhares que se somavam em todas as comunidades. Seu Messenger estava cheio de endereços, centenas, catalogados, fichados, rastreados, todos de ilustres desconhecidos. Ela tinha dois telefones celulares, três amigas e um amigo de carne e osso. Não perco meu tempo combatendo as cidades ou as pessoas que nelas moram. Apenas gosto do campo.
 
Arnaldo, o bagre cego que me faz companhia no fundo da caverna, nunca viu a luz, e não sente falta dela. Os bagres cegos vivem todos em lugares assim, onde não precisam da luz. Alguns correm risco de extinção; não é o caso de Arnaldo. Ele não sabe quando chegou aqui e nem porque chegou. Sua percepção de tempo não lhe permite saber nada do que veio antes e nada do que vem depois, donde sua falta de religiosidade. Apesar de não crer no sobrenatural, tem uma fé cega nas pessoas, especialmente naquelas que ocupam cargos de mando. Não sabe sua idade, obviamente, mas acredito que seja muito velho. Gosto dele, mesmo sabendo que guarda relíquias do General Garrastazu. Cultua, acima de tudo, dedicação e fidelidade a duas proeminentes figuras do esporte brasileiro: o presidente da CBF e o presidente do COB. Arnaldo acha que os maiores problemas brasileiros são: faltar com o respeito às instituições, não saber de cor o hino brasileiro, e a supressão, nos currículos escolares, da disciplina Educação Moral e Cívica.
 
O que mais me perguntam é de onde vem minha paixão pelo futebol. Há algo em todos nós que de nós toma conta, diante do que, somos passivos. Supera a razão. Está além do bem e do mal, do amor e do ódio, e os mobiliza. Conheci Pelé menino, eu, ele, adolescente. Eu o odiava mais que tudo na vida. Desde que Pelé chegou ao Santos, meu time passou a ser surrado pelo dele. Tudo que eu queria era que ele parasse de jogar. Vocês conhecem ódio de menino, daquele tipo que faz a gente querer que o outro morra, até a mãe e o pai. E o pior é quando eu me pegava, secretamente, admirando as jogadas dele; é quando eu também me odiava.
 
Ninguém fazia o que ele fazia, mas ele não era do meu time. E eu sabia que, por melhor que meu time jogasse, ainda seria pior que o dele. Minha paixão pelo futebol, portanto, não nasceu de uma relação de amor, mas de uma relação de amor-ódio de menino, que negava e admirava o que aquele jogador número dez fazia sem ser do meu time. Foi Pelé quem me fez amar o futebol, mesmo sendo ele a pessoa que eu mais odiava no mundo depois de cada gol que fazia contra o meu time. Que jogadas, que gols! Custava estar do meu lado?
 
Oto é um morcego que mora no fundo de minha caverna, entre milhares de outros. Seu maior prazer é perseguir revoadas de mariposas que chegam aqui em bandos no começo de algumas noites. Depois vem o futebol, que ele discute com entusiasmo. Tem pavor de Aurora; corujas adoram ratos e seus parentes. Há pessoas que me escrevem perguntando por que Oto é especial, se há tantos milhares de outros morcegos na caverna. É porque ele fala. A exemplo de Arnaldo, Oto tende a acreditar nas pessoas, mas ele não é cego, e isso faz muita diferença.
 
Temos, aqui na caverna, um grupo de morcegos-correio, que levam e trazem correspondência. As iniciativas de Oto são fantásticas; adoro seu entusiasmo. Ele organizou várias equipes que jogam um joguinho muito interessante, parecido com futebol, só que os morceguinhos ficam todos de cabeça para baixo.
 
Nem sempre minha paciência é suficiente para explicar minha amizade com Oto, Arnaldo e Aurora. Morcegos, bagres e corujas não falam, dizem as pessoas, e mandam cartinhas ironizando o que chamam de minha senilidade. Não respondo; certamente não conhecem a amplitude da linguagem, muito além das palavras e frases que proferimos uns para os outros. A solidão revela outros poderes de comunicação. Os incrédulos também não devem acreditar na linguagem dos pés que pessoas do mundo todo praticam em qualquer lugar que se jogue futebol. Na última Copa do Mundo, na Alemanha, França e Itália disputaram a partida final assistida por chineses, indianos, brasileiros, peruanos, croatas e todos os outros povos da Terra. Se reunidos em um galpão, representantes desses países, cada qual em sua língua, formariam uma Babel incompreensível. Em torno do futebol, entendiam-se todos; falavam a mesma língua, tão surda aos ouvidos, tão sonora aos sentidos.
 
Durante
o dia, os morcegos dormem, a coruja dorme, Arnaldo dorme. Fico só, e, às vezes, também durmo. Nosso dia começa quando o dia acaba e a noite vem. Ligamos a televisão quando tem jogo, conversamos e, às vezes, saio da caverna e entro pela madrugada conversando com Aurora, especialmente quando as nuvens passeiam longe daqui e a gente pode falar de futebol e outras coisas, e olhar as estrelas e a lua. É quando, no céu, alguém joga futebol. Sei disso porque, de vez em quando, esse alguém dá um chute e uma bola de fogo risca o céu, em direção ao gol. Sem saber disso, as pessoas dizem que é uma estrela cadente; a ciência diz que é um meteorito.         

*Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.
 

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