O poder da palavra

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Patrícia Moreira é torcedora do Grêmio. No dia 28 de agosto de 2014, foi ao estádio de seu time, em Porto Alegre, para acompanhar a derrota para o Santos por 2 a 0 em duelo válido pela Copa do Brasil. Foi flagrada pelo canal fechado “ESPN Brasil” chamando o goleiro santista Aranha, que é negro, de “macaco”. A partir disso, tudo que ela disse ou fez foi resumido a um rótulo: Patrícia Moreira virou “a torcedora racista”.

Em tempo: Patrícia Moreira cometeu ofensa racista, sim, e isso é crime. Crime grave. Ainda que ela tenha negado isso e que tenha dito que o intuito era apenas provocar Aranha, o fato é que ela usou a cor da pele do jogador do Santos para tentar diminui-lo. Isso é deplorável e inaceitável, e é bom deixar isso muito claro.

Logo depois do episódio, Patrícia foi afastada do trabalho no Centro Médico e Odontológico da Polícia Militar – ela era funcionária de uma empresa terceirizada e prestava serviços de auxiliar de odontologia. Além disso, a casa da família da torcedora chegou a ser apedrejada.

Aranha registrou boletim de ocorrência na 4ª Delegacia de Polícia. No dia 5 de setembro, acompanhada de um advogado, Patrícia concedeu entrevista coletiva para falar sobre o caso. Pediu desculpas ao goleiro e ao clube do coração.

“A Patrícia já sofreu ameaças. Só não vem sofrendo mais ameaças porque saiu de redes sociais e saiu de casa. Ela perdeu a vida que levava”, disse o advogado Alexandre Rossato.

Mais uma vez: as imagens são muito claras, e Patrícia cometeu um crime. O ponto em discussão não é esse, e tampouco a gravidade do fato. A questão aqui é que existe um inquérito, e a torcedora vai responder na Justiça por tudo que fez. Aranha falou sobre o caso no último sábado (06) e disse que perdoa a gremista. Então, por que ela precisa ser resumida a um rótulo (racista) e condenada por isso?

Outro exemplo vem da política. A edição desta semana da revista “Veja” tem reportagem sobre Paulo Roberto Costa, ex-diretor de refino e abastecimento da Petrobras. Segundo a publicação, ele teria afirmado em depoimentos à Polícia Federal que três governadores, seis senadores, um ministro e pelo menos 25 deputados federais foram beneficiados por propinas oriundos de contratos da estatal.

Foi o suficiente para o caso ser tratado como “escândalo”. Em redes sociais – no Twitter, principalmente –, o caso foi chamado de “mensalão 2” e “marca indelével para a administração federal”. Principalmente porque atingiu a maior empresa estatal do país.

Parênteses, mais uma vez: se Paulo Roberto Costa tiver feito exatamente essa denúncia, trata-se de algo muito grave. E algo grave precisa ser investigado até virar de fato um escândalo, assim, de forma peremptória.

Até agora, contudo, o que existe é uma reportagem sobre uma denúncia. Ou uma denúncia composta por nomes e detalhes sobre esquema de fraude. Ainda que os indícios sejam consistentes, eles não provam nada.

O uso de rótulos e de reducionismos mostra o quanto nós precisamos amadurecer. Patrícia Moreira não “é racista”, ainda que tenha cometido uma ofensa racista. Ninguém “é ladrão”, ainda que tenha desviado dinheiro ou roubado algo. Rótulos não ajudam e não dão complexidade a nenhuma discussão.

Dizer que a torcedora “é racista” é extremamente restritivo. Trata-se de uma pessoa comum, que tem arroubos e que comete erros. Isso não é uma defesa de Patrícia Moreira, mas da complexidade. Se quisermos tirar algo de episódios como o que ela protagonizou, precisamos urgentemente ultrapassar conceitos tão definitivos e tão rasos.

O pior é que usamos esse raciocínio com muita frequência. Um jogador é volante ou é atacante, e a posição que consta na ficha cadastral é o que determina se um técnico é ousado ou conservador ao colocá-lo em campo. Um julgamento sobre o treinador parte de um julgamento sobre o atleta. O rótulo do rótulo.

O esporte é uma seara em que muitas pessoas têm acesso às informações. Dados circulam entre empresários, jogadores, dirigentes, treinadores e funcionários de clubes, por exemplo. É relativamente fácil ouvir denúncias e histórias totalmente absurdas sobre qualquer assunto.

Pense em quantas teorias da conspiração surgiram desde 1998, quando Ronaldo passou mal antes da decisão da Copa do Mundo. Pense em quantas vezes você ouviu alguém dizer que um campeonato foi “armado”, “comprado” ou “arranjado”. Afinal, quantas dessas histórias se provaram?

Em contrapartida, informações têm grande valor. Ainda que não sejam comprovadas, denúncias sobre uma empresa afetam diretamente o valor de suas ações. Essa lógica é menos clara no esporte, mas exemplos mostram a capacidade que esse ambiente tem de impingir rótulos.

Já citei esse exemplo anteriormente, mas acho que nunca é demais: em 1994, a Escola Base, em São Paulo, foi fechada porque pais de alunos acusaram proprietários de abuso sexual de alunos que tinham quatro anos. A vida dessas pessoas foi destruída, e depois foi provado que a denúncia era falsa.

O caso da Escola Base é um dos mais emblemáticos da história do Brasil. Trata-se de algo que recebeu enorme cobertura da mídia, e os proprietários da instituição foram julgados pelo público muito antes de serem inocentados pela Justiça. É algo que eu sempre uso como exemplo e como aviso. Como jornalista, não quero que ninguém seja “a minha Escola Base”.

Muitas vezes não damos conta, mas a palavra tem enorme poder. Muitas vezes não damos conta, mas temos uma tendência ao julgamento. Isso vem desde os primórdios da humanidade, e é um ranço que ainda não conseguimos extirpar.

Para evoluirmos como sociedade – e como analistas de esporte, por consequência –, é necessário que deixemos para trás os rótulos. Precisamos superar as histórias esquematizadas de bandido e mocinho e entender que pessoas são complexas. Pessoas cometem erros – alguns mais graves, outros menos –, e nós não podemos classificá-las por isso. Ainda mais quando nem os erros são confirmados. 

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