Precisamos falar sobre interacionismo I – O modernismo de Taubaté

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Crédito imagem: Lucas Figueiredo/CBF

‘Migalhas dormidas do teu pão,

raspas e restos, me interessam,

pequenas porções de ilusão,

mentiras sinceras me interessam’

Nas últimas conversas – o leitor e a leitora devem se recordar – falamos de conceitos que parecem mais convenientes ao meio acadêmico do que o chão de quadra ou campo, do tipo paradigma ou epistemologia. Termos, contudo, um tanto importantes para compreendermos os porquês, os comos e quandos de ações e intervenções tomadas na vida vivida e, por tabela, da associação entre método e didática que compõe o fazer pedagógico em treinamentos e jogos no esporte e no futebol.

Ressaltamos as diferenças entre as teorias do conhecimento inatista, empirista e interacionista e suas consequências práticas, sem perder de vista que, seres humanos complexos que somos, somos influenciados, em maior ou menor medida, por cada uma dessas correntes epistemológicas. Mesmo assim, o(a) professor(a)/treinador(a) não deve jamais se furtar perseguir mais fortemente uma delas para embasar seu fazer docente. Não existe prática, afinal, sem teoria. As teorias existem como ‘farol’ às práticas.

Tentamos deixar claro, também, o apreço ao interacionismo, teoria epistemológica descendida do paradigma emergente e que norteia abordagens didático-metodológicas voltada ao ensino, aprendizagem e treinamento esportivo – e ao futebol, mais especificamente. Modelos de ensino interacionistas tem ecoado com alguma força, pelas palavras de pedagogos e pedagogas no Brasil e no exterior, mesmo que distantes, evidentemente, da unanimidade (e Nelson Rodrigues respira, em algum lugar, aliviado). Se o tradicionalismo, no jogo e na vida, insiste em resistir à fórceps, sob batuta, às vezes, de gente grotesca, não são poucos e poucas os e as que sabem que as relações humanas e o ato de jogar ganharam novas conotações e não podem ficar presos ao passado. 

Toda essa estima por condutas interacionistas não pressupõe cegueira crítica. Enquanto pedagogos e pedagogas do esporte precisamos nos ater ao interacionismo educacional que vislumbramos e dizemos praticar. Existem várias ramificações dele, alicerçados por autores, linhas de pensamentos e, mesmo, intencionalidades que possuem diferenças significativas. Trocando em miúdos, tem muita coisa aí por que até parece, mas não é. Falando de futebol, tenho, de modo particular, notado certa confusão retórica: como se a confirmação de uma conduta interacionista não-tradicional passasse, necessariamente, pela aplicação rasa de termos como moderno, jogo, lúdico e, principalmente, aos pertencentes ao ‘tatiquês’ – e, então, enche-se a retórica de basculações, amplitudes, organização funcional, jogo posicional, entre tantos outros.

O interacionismo que defendemos é aquele que, sim, fundamenta o jogo, ou melhor, a Pedagogia do Jogo, dotada, por sua vez, de uma conceito-chave: intencionalidade. A natureza de uma prática pedagógica, em qualquer contexto e, principalmente, no futebol, é regida por intenções – e lá se vão quase três décadas que intelectuais do esporte, como o francês Claude Bayer e o português Júlio Manuel Garganta, para não citar o Prof. João Batista Freire, reverberam essa ideia.

Se tens a intenção de controlar e prever todas as condutas de seus ou suas atletas em campo ou quadro, trago notícias não tão boas, camarada. Interacionista não é aquele ou aquela que simplesmente baseia suas aulas e treinamentos a partir das matrizes de jogos, supostamente contextualizados. A não aplicação de sessões de atividades analíticas e o aposentar das filas indianas e dos cones marcadores podem representar nada mais que uma ingênua pseudo-fuga aos métodos tradicionais se a essência imprevisível, caótica, sistêmica e incontrolável do jogo não for contemplada. É, como a gente diz no interior paulista, comida requentada.

Boa intenção nem sempre é sinônimo de intenção adequada. O ato de condicionar comportamentos, ações e jogadas pré-estabelecidas – gatilhos estimuladores – a todo momento, ainda que pelo jogo, é clássica representação do behaviorismo ou comportamentalismo pedagógico. O jogo, que deveria ser fim, é meio para se praticar o comportamentalismo, abordagem derivada da psicologia positivista do início Século XX, essencialmente técnica e empirista. Trata-se de querer pintar uma parede com cor azul, utilizando tinta vermelha.

O comportamentalismo, de modo bastante objetivo, possui duas vertentes: uma tida como ‘metodológica’, atribuída ao estadunidense John Watson, e outra entendida como ‘radical’, fundada por Burrhus Frederic Skinner, já citado em conversas anteriores. Esta última dá o tom às práticas pedagógicas tecnicistas pela noção de condicionamento operante: estimulo uma ação desejável através de reforços negativos (punição) ou positivos (premiação). O bicho pós-vitória ou as intermináveis corridas ao redor do gramado dos(as) jogadores(as) atrasados(as) no treinamento são exemplos corriqueiros de posturas comportamentalistas, mas não nos apeguemos apenas a eles.

Condicionar a atuação de jogadores(as) de acordo com as zonas que ocupam no campo de jogo e impor a execução de um mesmo sistema de jogo, sem levar em consideração as especificidades dos contextos e circunstâncias enfrentadas, são ações que evidenciam uma perigosa armadilha a que, desconfio, não nos damos conta: é relativamente fácil nos tornarmos escravo(as) de padrões táticos imutáveis, de certo fetiche pela ordem e controle das condutas de quem joga (como se estivéssemos no Play Station) e vestirmos a carapuça de senhores do jogo e reproduzem, didática e metodologicamente, o tecnicismo behaviorista. Que também é refletido por aqueles ou aquelas que, à beira do campo ou da quadra, gritam, esperneiam, berram e narram o jogo aos(às) atletas, ditando, com detalhes, o que cada um deve fazer. E, que fique claro, não me refiro diretamente às cobranças, usualmente feitas com vocabulário não muito sereno e, sim, às instruções fechadas e impositivas. 

Não há nada de interacionismo nisso tudo. O que existe, no máximo, é uma maquiagem pedagógica que rebusca mais do mesmo: o neo-tecnicismo. Expõe, na verdade, o conflito do profissional que almejo ser, o dito ‘moderno’, que rompe paradigma, e o que, de fato, sou, contraditório, imperfeito e que leva consigo, sim, alguma bagagem do tradicionalismo pedagógico – internalizado depois de tantos anos de influência. Por essas e outras, (re)conhecermos nossas próprias epistemologias da prática é crucial porque elucida muitas de nossas crenças e concepções que interferem nos processos relacionais, de aprendizagem e ressignificação do conhecimento – qualquer conhecimento. 

O neo-tecnicismo passa, primeiro, pela cultura sebastianista e messiânica que ronda o cotidiano de treinadores(as) de futebol: acima do bem e do mal, validam heteronomia demais e autonomia de menos neste meio. Segundo, pelo profundo (des) conhecimento de instâncias conceituais do fenômeno jogo. Quando o Prof. Alcides Scaglia clama pela necessidade de que se devolva o jogo ao jogador, há um pedido implícito e urgente de que reconheçamos nossas limitações frente a ele e deixemos de tentar domar seu caráter anárquico. E que, fique claro, não extingue, em hipótese alguma, nossas responsabilidades em organizar e sistematizar processos de ensino, aprendizagem e treinamento, para alcançar determinado objetivo ou estrutura de jogo. 

Não tenho a intenção aqui de imputar juízo de valor às condutas tomadas como exemplos do comportamentalismo pedagógico. No altíssimo rendimento, treinadores(as), reféns do resultadismo tresloucado, das exigências absurdas de performance a curtíssimo prazo, de condições estruturais e financeiras pouco viáveis e do calendário de jogos irracional, optam por salvar a própria pele a partir do, supostamente, convencional. É legítimo, dado que os gatilhos proporcionados por esse tipo de abordagem são capazes de atender as necessidades imediatas do contexto. No fim das contas, funciona como um extintor, que até ajuda a apagar o incêndio em uma casa.

O problema é que o condomínio, o bairro e a cidade seguem todos em chamas.

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