Precisamos falar sobre o interacionismo III – A Pedagogia do Jogo

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‘O correr da vida embrulha tudo,

a vida é assim: esquenta e esfria,

aperta e daí afrouxa,

sossega e depois desinquieta’

O que ela quer da gente é coragem. Nossas últimas conversas buscaram evidenciar que mesmo a pedagogia aplicada ao esporte não está imune à ‘teoria da curvatura da vara’: ela, que antes pendia às abordagens do paradigma tradicional, de conotações inatistas e empiristas, parece ter sido encurvada a 180º e chegou tão ao outro lado, a ponto de flertar com a revirada a curva e retornar à origem. Por isso, a teoria do conhecimento interacionista se não bem cuidada, refletida e interpretada na prática, materializa outra coisa que não seus pressupostos e, então, o que vigoram são mutações didáticas e metodológicas, como o neotecnicismo e o neoescolanovismo. Embora saibamos que os opostos costumam se atrair, os extremos não são, exatamente, atraentes – no futebol, na pedagogia, na vida. Existem termos (que nem precisam ser meios) que soam mais interessantes.

Estudos mais recentes voltados à subárea da Pedagogia do Esporte consideram que abordagens pautadas no jogo constituem um grupo denominado ‘Game-Based Approaches’, as GBAs. Este grupo reúne modelos de ensino de esportes que abarcam preceitos teóricos do interacionismo pregando superação das dinâmicas previsíveis e analíticas do ensino-aprendizagem tradicional, cada qual com suas especificidades: existe um que se escora nas bases do Ensino dos Jogos Desportivos, elaborada pelo Prof. Júlio Garganta em Portugal; outro, denominado TGfU, ou Teaching Games for Understanding, de origem britânica; há também a Iniciação Esportiva Universal, estruturada pelo Prof. Pablo Juan Greco, da Universidade Federal de Minas Gerais; o CLA, ou Constraints Led-Approaches, braço da pedagogia não-linear; e a Pedagogia do Jogo, tema do papo de hoje.

Nem todo o jogo, na aprendizagem esportiva, caracteriza a Pedagogia do Jogo. Mas a Pedagogia do Jogo preza, em primeiro lugar e, com o perdão da redundância, pelo jogo ‘jogado’, devidamente contextualizado, dotado de um processo organizacional sistêmico, que propicie ambientes de jogo e de aprendizagem pela interação mútua entre o(a) jogador(a), ambiente e as tarefas da atividade. Que requer, por sua vez, empenho – e não desempenho. O jogo é assim, esquenta, esfria, afrouxa, sossega, embrulha, desinquieta, porque o que ele quer da gente é coragem, afinal. Se a licença poética afoita faz Guimarães Rosa se revirar no túmulo, serve (ou tenta), ao menos, para afastar a ideia de que a Pedagogia do Jogo deve ser ‘lúdica’ ou ‘legal’ e abraçar, a todo o custo, a positividade pedagógica, que enxerga qualquer tipo de incômodo como ameaça ao ensino ou o neotecnicismo resultadista e precoce. 

Os ambientes de jogo e de aprendizagem, conduzidos didaticamente pelo(a) treinador(a), devem fomentar tomadas de decisão e autonomia a quem joga pela lógica da imanência: é ela quem, por meio do princípio metafísico da transcendência, que configura a natureza autotélica do jogo. O jogo, pela Pedagogia do Jogo, não tem um fim em si mesmo: vislumbra, antes de mais nada, explorar o que está por vir, imprevisível que é. Ao jogar, (nos) descobrimos.

Ok, muito bonito. Mas como construir esses ambientes ‘na prática’? Identificar as ‘fontes’ de onde a Pedagogia do Jogo ‘bebe’ nos parece um caminho. O Prof. Roberto Rodrigues Paes, uma das grandes autoridades dos estudos sobre Pedagogia do Esporte em âmbito nacional costuma dizer que, além de intervém no ensino, vivência, aprendizagem e treinamento das práticas esportivas em suas várias manifestações e sentidos, o(a) pedagoga(a) esportivo(a) tem a incumbência de interpretar as teorias do conhecimento que sustentam as práticas pedagógicas, de forma minimamente coerente.  O que significa que a aplicação da Pedagogia do Jogo – como de qualquer outro modelo de ensino – pressupõe compreender que epistemologias, teorias, autores e autoras a sustentam e quais as nuances de sua origem.

A Pedagogia do Jogo, pois bem, nasceu no meio da rua e nela muitas das respostas à sua aplicabilidade são encontradas. Lá se vão quase quatro décadas desde a hipótese aventada pelo Prof. João Batista Freire nos corredores da, então recém-construída Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas: a rua como riquíssimo ambiente de aprendizagem esportiva. Dos jogos e brincadeiras tradicionais, pertencentes à cultura lúdica infantil, desprovida de regras, havia algo ainda não identificado pelo pragmatismo da intervenção adulta: uma pedagogia. A pedagogia da rua.

Atenção, contudo: a rua, propositalmente em itálico, não é, simplesmente, aquela da minha ou da sua casa, a via pública de circulação, rodeada de casas, prédios e estabelecimentos comerciais. Pode até ser, mas não necessariamente. A rua, na verdade, é o terreno baldio. E a garagem. E o quintal. E a terra batida. E o mato abandonado. E o asfalto remendado. E o campinho de areia. Até a quadra da escola ou de condomínio fechado pode ser rua. Porque ela, no fim das contas, não é lócus e, sim, metáfora. A rua é o ambiente informal, construído pelos(as) próprios(as) jogadores(as), que contempla desequilíbrio, imprevisibilidade e desafio inerentes à natureza do jogo. Desconfio que o Hudson Martins tenha falado algo parecido por aqui, dia desses.

A pedagogia da rua, portanto, está no Henrique, quando ele rebate a bola na parede para agarrá-la, na sequência, como o goleiro do seu time. Ou quando ele propõe à sua irmã, Maria Júlia, uma competição de embaixadinhas. Da informalidade, significativas oportunidades de aprendizagem emergiram e contribuíram um bocado para formação e constituição de saberes dos atletas de futebol, de Pelé a Neymar, de Sissi à Marta.

O anseio em controlar o incontrolável e racionalizar e simplificar o complexo faz com que, mesmo os(as) bem-intencionados(as) deturpem o sentido da rua e das

pedagogias de conotação interacionista. O ambiente informal da rua não é reproduzido, pura e simplesmente, nas categorias de base de um clube voltado ao alto rendimento esportivo – nem tanto pela qualidade do terreno, o gramado aparado, por vezes sintético, bem menos problemático, bastante pela vigilância simbólica do(a) treinador(a) que violenta a espontaneidade. Há também quem associe a rua, de forma pejorativa, ao anarquismo pedagógico. Conceitualmente, nem seria tão errado fazê-lo, visto que o jogo, em essência, é anárquico, caótico e sistêmico, como alude a pedagogia não-linear.

A rua é, sim, libertária: porque articula, entre os pares, possibilidades tático-técnicas ilimitadas e experiências que inflamam, também, a formação moral. Delas, a Pedagogia do Jogo fundamenta seus vínculos com a pedagogia freiriana, não a do supracitado João Batista e, sim, a de Paulo, patrono da educação brasileira, pelo conceito dos ‘temas geradores’, oriundos do método voltado ao processo de alfabetização.

Aí, entra o(a) treinador(a): a partir dos jogos tradicionais de bola com os pés, levantar competências e habilidades demonstradas neste universo conhecido e cheio de significados para, em seguida, imprimir a compreensão dos princípios operacionais ofensivos e defensivos e as invariantes que regem um jogo esportivo coletivo, como o futebol. Mais: estar comprometido(a) com a democratização do ensino e com a práxis (prática pedagógica intencional, provida de diálogo, afeto e sentido teórico) para que os indivíduos não apenas joguem futebol, mas pensem, ajam, sintam melhor, entendendo a realidade social, econômica e histórica da qual os(as) jogadores(as) fazem parte. Que contribua para que encontrem, em suma, seu lugar no mundo.

Por fim, qualquer conotação idílica e romântica atribuída à Pedagogia do Jogo, é descabida: o que foi, por muito tempo, hipótese, está hoje em ‘outro patamar’, chancelada que foi pela ciência. A mais recente das investigações científicas, inclusive, ratifica as possibilidades e potencialidades técnico-táticas advindas do bobinho, da rebatida e do artilheiro, jogos e brincadeira tradicionais da cultura lúdica. Uma pedagogia esportiva, portanto, regido pela teoria epistemológica interacionista, centrada no aluno, pautada no jogo e inspirado na pedagogia da rua é factível. 

O que ele quer da gente é coragem.

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