Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira | Tópico 2.5 – Perceber e reagir ao entorno

Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade
Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade

Pelo fato de encararem julgamentos públicos e internos com alta frequência, os treinadores do futebol brasileiro devem tomar cuidado ao observar as operações que rodeiam a sua prática profissional, demonstrando cautela para perceber e reagir ao entorno, pois “ainda existem muitas demandas amadoras no futebol”. Conforme afirmou um dos profissionais, “os clubes de futebol no Brasil ainda mantêm uma estrutura política em que os seus presidentes dependem de votos para serem eleitos e, portanto, eles são influenciados por resultados o tempo inteiro”. Ainda nesse raciocínio, outro entrevistado reforçou que os clubes são “administrados pela gestão política, que por sua vez se baseia no que pensa a oposição, a mídia, as áreas externas, sem uma estrutura para avaliar o trabalho do treinador”. Preocupados com a pressão externa e alheia ao treinamento e ao desenvolvimento coletivo, os profissionais revelaram como os seus pensamentos expandem o âmbito esportivo no exercício da profissão de treinador no Brasil. Para perceber e reagir ao entorno, os treinadores devem fortalecer a sua habilidade política e as suas relações públicas

“Há o cenário externo da torcida junto ao cenário político interno de quem está contra a atual administração. Na verdade, as relações e as decisões sobre o trabalho do treinador giram em torno desse cenário. Há uma crise constante, mesmo quando se tem resultados. Por exemplo, influência de empresários ou algum jogador reserva de um empresário que é alinhado com a diretoria, então você começa a ser questionado. Por não existir uma estrutura profissional, há coisas que circulam o clube e que acabam influenciando decisões internas.” 

Em termos de sua habilidade política, os treinadores devem procurar demonstrar um senso de juízo, ainda que discreto, em torno dos movimentos políticos que imperam dentro do clube, “mantendo um bom diálogo com os dirigentes e presidentes, coexistindo bem com eles”. Tal capacidade não necessariamente se volta a um envolvimento direto com ações internas, mas sim pelo benefício do equilíbrio que pode ser proporcionado ao cargo de treinador e ao trabalho da comissão técnica mediante uma consciência política sobre o que acontece internamente e no extra-campo. Contudo, um dos profissionais reconheceu que “a situação mais estranha que existe é saber medir e lidar com a política no clube”. Ao considerar que os assuntos políticos aparentam ditar a norma e afetar decisões sobre o trabalho dos treinadores em clubes brasileiros, dois entrevistados compartilharam uma revolta compreensível: 

“Isso é muito contraditório aqui porque o futebol brasileiro está submetido a uma série de ingerências de pessoas que não são exatamente as mais habilitadas para comandarem o nosso futebol. A gente sabe que o dirigente comanda muitas vezes pela paixão e por outros interesses também. Da minha maneira de ser é difícil conviver com essa turma. Isso acaba interferindo na fidedignidade da concepção do que é um bom treinador no Brasil, o que um treinador precisa ter para ser bom aqui no país, para ele ter longevidade, para ele conseguir desenvolver o trabalho dele. Essa instabilidade da administração dos clubes põe em cheque a capacidade de muitos treinadores. Do meu ponto de vista é difícil você reunir somente a competência técnica do treinador. Ele deve, acima de tudo, saber lidar com a administração do clube, porque senão ele não vai conseguir dar continuidade ao trabalho dele.” 

“É preciso ter o conhecimento de como funcionam os clubes no Brasil. Não adianta chegar ao clube e apresentar metodologias de treinamento, treinos com qualidade, propor mudanças na estrutura do clube. Os clubes brasileiros têm uma estrutura totalmente política. Um presidente para ser eleito depende dos votos e depois há a participação dessas pessoas que o colocaram na presidência. Sabendo que as pessoas que avaliam o trabalho no dia-dia na realidade não têm o conhecimento técnico ou tático do seu trabalho, não adianta chegar e querer fazer reunião com o presidente e até com o diretor de futebol explicando como você joga. Conhecer esse sistema e se adaptar a ele às vezes vale muito mais do que o seu conhecimento técnico, a sua preparação. É uma coisa muito do lado emocional.” 

Tal cenário desafiador se assemelha a depoimentos coletados junto a treinadores da Escócia, cujo contexto laboral também demonstrou uma nítida dependência à política interna dos clubes empregadores, enquanto os profissionais alegaram não estar necessariamente preparados ou equipados para tratar de assuntos fora do âmbito esportivo com os seus dirigentes. Inevitavelmente, o rendimento esportivo de uma equipe profissional também está relacionado a uma complexa rede de agentes que cedem à paixão emocional mesmo em posições de liderança na instituição. Como consequência dessa realidade, a natureza do treinamento passa a ser contestada no momento em que implicam-se relações micropolíticas nas tarefas do treinador, que pode se ver forçado a manipular impressões a fim de adquirir apoio, espaço e tempo de trabalho. 

Levando em consideração como os treinadores de futebol profissional atraem uma atenção significativa da opinião pública mediante as suas ações, espera-se que eles também saibam enaltecer as suas relações públicas, conectando-se bem com os canais de comunicação e com a mídia em geral, a fim de transportarem uma imagem institucional positiva aos seus clubes. Para ser valorizado como competente, “um treinador precisa se fazer entender através da mídia sobre como ele pensa o jogo, compartilhando suas ideias e estratégias para a competição”. Cientes de que “atualmente a internet amplifica e prolonga debates que afetam o processo diário do treinamento”, os treinadores devem cultivar um bom “relacionamento com a imprensa e com os torcedores”. Um dos profissionais inclusive admitiu o porquê das relações públicas terem se tornado uma competência de alta relevância ao treinador no país: 

“O relacionamento com a mídia é importante porque ela é uma formadora de opinião e tem um peso enorme no Brasil até pela falta de critério de quem gere o processo. A imprensa é uma forte condutora e indutora dos nomes, sugerindo e alavancando treinadores. Eu acho que é importante você conseguir se relacionar bem, saber atender bem, responder bem, ‘jogar o jogo’, porque muitas vezes você é colocado contra a parede e tem que saber responder de forma inteligente, sem criar atrito, sem divergência, mas conseguindo colocar as suas ideias.”

Ao estudar a evolução do ofício, o treinador de futebol profissional realmente se tornou o protagonista de uma incômoda cultura de celebridades cujo nível de visibilidade sob intensos questionamentos ajudou a transformar o futebol em uma novela masculina que prioriza manchetes sensacionalistas, opiniões superficiais e constante especulação. Coincidentemente, os entrevistados reconheceram que “o futebol parece ter virado um reality show onde o treinador carece de autonomia” enquanto “os dirigentes são torcedores misturados com a paixão”. Sobretudo devido a novos meios de comunicação e plataformas online disponíveis à opinião pública, o grau de fiscalização midiática se elevou de forma exponencial, consequentemente exigindo dos treinadores um maior cuidado em termos de suas exposições públicas. 

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email
Share on pinterest

Deixe o seu comentário

Deixe uma resposta

Mais conteúdo valioso