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Às primeiras luzes da madrugada, Aurora me visitava. Não era sempre, pelo contrário, era raro. Mas valia a pena, tão ricos e memoráveis foram nossos encontros. Refiro-me, não à hora do dia, mas à ave; Aurora era uma coruja.  Morava à direita de quem sai da caverna, bem ao pé de uma árvore. Fazia o ninho no chão. Não tinha autorização para circular pelas galerias da caverna, por razões óbvias. Todos sabem que as corujas são aves de rapina. Oto, o morcego, arrepiava-se só de me ouvir dizer Aurora. Por isso, e por causa da aurora, nossas conversas ocorriam do lado de fora, às vezes até o sol caminhar mais de um metro no céu.
 
Numa dessas conversas, contou-me a coruja de sua afinidade com o esporte bretão. Durante anos fez seu ninho à beira de um campo de futebol, próximo à bandeira do córner. Ali ela foi feliz com seu companheiro. Tiveram muitas ninhadas. Tornou-se íntima de jogadores famosos, que chegaram a tê-la como mascote. Aurora adorava pousar sobre o travessão, no ângulo superior direito. Desse hábito nasceu a expressão ninho da coruja, quando um chute bem dado por um craque se aninha nos noventa graus entre o travessão e uma das traves. Seu marido, afoito e aventureiro, pousava no ângulo superior esquerdo durante os treinamentos de cobranças de faltas, servindo de referência aos cobradores. Numa fatídica tarde de maio, o petardo de um meia canhoto pôs fim às suas aventuras e Aurora viu-se repentinamente viúva, com três filhotes para criar. A vida não foi mais a mesma. Quando os filhotes amadureceram, abandonou o ninho e veio para cá.
 
Azar dela, sorte minha, que ganhei uma interlocutora à altura dos grandes especialistas no jogo da bola. De Aurora ouvi mais casos sobre futebol do que o tanto que pude contar a ela. Um deles tocou-me muito de perto.
 
Aurora admirava de maneira particular um treinador da equipe que lhe emprestava o gramado. A elegância, os modos gentis, a inteligência aguda desse treinador era de chamar a atenção. Quando ele chegou à agremiação, o time ia mal das pernas. A ameaça de rebaixamento rondava a equipe. Em pouco tempo, competente, ele baniu tal ameaça. A imprensa não poupava elogios ao trabalho do jovem técnico. E então vieram as cobranças. Já não podiam ser aquele time médio de sempre. As vitórias se sucederam e teria que continuar sendo assim. Mas, eis que num arroubo de ousadia, a equipe toda à frente buscando confirmar o favoritismo contra um time menor, a defesa desmorona, toma dois gols e o esquadrão sai derrotado, o treinador vaiado, uma semana inteira de imprecações. Estava em jogo a possibilidade de ascender à elite do futebol brasileiro, de disputar as finais de um grande torneio nacional, e só faltavam seis rodadas. 
 

Nesse ponto fizemos uma pausa. Os olhos de Aurora ardiam, irritados pelo sol que já subia mais de meio metro. Buscamos um lugar protegido e prosseguimos nossa conversa. No meu tempo de menino, eu disse, ainda assisti a jogos em que a pirâmide formada pelos jogadores em campo era o inverso de hoje; a base era o ataque. Havia o goleiro e, logo em seguida, à sua frente, dois beques. Depois, um pouco adiante, guarnecendo a defesa e alimentando o ataque, ficavam os chamados médios, em número de três. E, lá na frente, cinco atacantes. No linguajar de hoje, seria um inimaginável 2-3-5. Mais tarde um dos médios virou beque também, pouco à frente dois médios, mais adiante dois armadores e, só então, os três atacantes. Depois apareceu o 4-2-4, sucedido pelo 4-3-3, ou seja, a pirâmide foi invertida.

 
É verdade, disse Aurora, eu acompanhei todas essas mudanças, inclusive, o chamado 3-5-2 e o 4-4-2. Hoje em dia é mais que comum a gente assistir a jogos em que as equipes colocam apenas um atacante.
 
Depois do tempo que fizemos para historiar a “evolução” dos sistemas táticos, minha amiga coruja prosseguiu. Seu amigo treinador, acossado pelas cobranças dos dirigentes, torcedores e imprensa, passou a temer cada vez mais as derrotas. Já não dormia direito. Acordava com pesadelos onde superatacantes desmoronavam seu esquadrão. Não perder jogos tornou-se uma obsessão para ele. Criticado pela imprensa como irresponsável por não guarnecer a defesa, mesmo assim insistiu no seu 4-2-4. E aí veio o desastre: certo é que o jogo era fora de casa, mas, depois de fazer 1 a 0, seu time tomou três. Os zagueiros pareciam baratas tontas dentro da área.
 
Na volta à cidade, o pelotão de choque da maior torcida organizada tentou linchá-lo, e aí ele não resistiu; montou um 4-3-3. Nem assim a imprensa lhe deu sossego: um louco jogando um título fora, diziam. Irresponsável, gritavam, como se alguma grande equipe do mundo ainda se arriscasse a usar três atacantes. Não adiantou ele explicar que seus três volantes eram duros na marcação.
 
O jogo seguinte era em casa e o adversário duro, ostentava dois títulos brasileiros. Jogava com dois atacantes altos e rápidos, um deles grande cabeceador, além de um armador talentoso. Com 20 minutos de partida as coisas até que iam bem: 0 a 0. Não tomar gols era fundamental. Porém, aos 26min veio o choque. O atacante mais alto subiu num cruzamento da direita, mais do que todo mundo, e testou para o fundo das redes. “Burro, burro”, o coro descia das arquibancadas. E o nosso técnico tremeu. Convocou seu volante mais duro, apesar de pouco técnico, e o colocou em campo, no lugar de um dos atacantes. Fortaleceu-se a defesa, os adversários paravam na muralha do meio do campo, a bola mal chegava à área. Agora, só faltava fazer o gol de empate. E foi no 1 a 0 que o primeiro tempo terminou.
 
Os 15 minutos de intervalo foram consumidos no vestiário com instruções para fortalecer a defesa. Tudo combinado, o segundo tempo começa, mas, logo aos 6min, o centroavante fez o pivô, rolou para o meia que veio de trás e a bola novamente se alojou nas redes do time da casa: 2 a 0. “Huuu, vai morrer, huuu, vai morrer”, o coro ecoou pelo bairro todo, não coube no estádio. Não tinha jeito: se o 4-4-2 não evitava os gols, a solução viria do último volante à disposição. O time tentaria o 4-5-1. Ora, bastaria um atacante, caso a defesa e o meio de campo cumprissem bem seus papéis. Afinal, 2 a 0 não era nenhum desastre para quem ainda tinha uns 40 minutos pela frente.
 
O time seguiu confiante: não havia como passar por seu paredão. Grande engano. Aos 15min do segundo tempo, o ala adversário entrou como um raio pela esquerda e cruzou. O centroavante subiu mais do que toda a defesa e guardou. A torcida ameaçou entrar em campo, sentenças de morte soavam a torto e a direito. O último atacante foi sacado. Armou-se um inédito, talvez, revolucionário, 5-5-0. O técnico adversário tirou dois volantes de sua equipe e colocou mais dois atacantes. O time da casa precisava marcar três gols; não havia quem os fizesse. O adversário também não conseguiu. Faltavam 30 minutos, que foram consumidos pelos visitantes com toques de bola da intermediária para trás.
 
“O que aconteceu depois desse jogo Aurora?”, perguntei à minha amiga coruja. Aconteceu, disse ela, que a equipe não perdeu mais nenhum jogo. Nos quatro jogos seguintes não tomou gols; terminaram, todos, 0 a 0. O plano zero do meu amigo treinador funcionou com perfeição. Não era possível a nenhuma equipe passar por seu paredão de volantes e zagueiros.
 
“E quanto ao resultado final do campeonato?”, insisti. A equipe não se classificou, prosseguiu a coruja, pois, sem marcar gol
s, não houve vitórias.
 
Aurora me disse que nos últimos 30 dias do campeonato ela acompanhou o drama de seu amigo no ocaso da profissão. Chegava ainda de madrugada ao estádio e caminhava sozinho pelo gramado, repetindo obsessivamente, como um mantra, “defesa, defesa, defesa…”. Depois do último 0 a 0 ela o viu sair com uma pequena mala em que deviam estar seus pertences. “Dizem”, ela me contou, que ele nunca mais foi visto, abandonou a profissão, retirou-se para algum canto de solidão habitado, talvez, somente por corujas e morcegos. Mas fez escola, concluímos.
 

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