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Nos dias 19, 20 e 21 de agosto a Universidade do Futebol promove o seminário “o ensino do futebol – uma alternativa à captação”, com o objetivo de propor uma reflexão sobre a formação de jogadores e a gestão sustentável das categorias de base no futebol.

Um dos aspectos fundamentais para o desenvolvimento de seres humanos, e consequentemente, jogadores e jogadoras mais preparados para os desafios do futebol do futuro é a garantia de seus direitos básicos nos ambientes e processo de formação.

Nesse sentido, uma das ferramentas que têm se mostrado mais promissoras para promover a melhora das condições de vida e treinamento de jovens jogadores é o Certificado de Clube Formador – o CCF. Entretanto, a análise de alguns dados sobre as emissões do documento e o número de clubes com categorias de base ativas pelo país acabam, na verdade, acendendo um alerta sobre o assunto no âmbito nacional.

Um exemplo de como apenas o certificado não garante que os direitos básicos de jovens futebolistas são respeitados, é o nome do Flamengo estar constando na lista de clubes formadores certificados pela CBF, divulgada quatro dias antes do incêndio que vitimou 10 jovens das suas categorias de base em 2019. O incêndio, além de ajudar a trazer à tona a discussão sobre as condições de vida e trabalho às quais milhares de jovens são submetidos por todo o país, também colocou uma lupa sobre a efetividade do certificado para assegurar direitos básicos de jogadores na base, razão pela qual o documento é frequentemente celebrado.

Afinal, o que é o Certificado de Clube Formador?

Regulamentado em janeiro de 2012 pela CBF, o CCF é um mecanismo previsto na lei Pelé que incentiva as confederações esportivas nacionais, no caso do futebol a CBF, a conceder uma certificação reconhecendo clubes e entidades esportivas filiadas como formadoras caso atendam requisitos mínimos. Como contrapartida, os clubes adquirem legalmente o direito à preferência na assinatura do primeiro contrato profissional dos jovens treinados na instituição ou à uma indenização caso ele chegue a um acordo com outra agremiação e também ao mecanismo de solidariedade da FIFA, muito comemorado por clubes brasileiros em grandes transferências internacionais como a de Neymar do Barcelona para o Paris Saint Germain e de Philippe Coutinho do Liverpool para o Barcelona, que geraram, respectivamente, R$ 33 mi para o Santos e R$ 15,8 mi para o Vasco. Em resumo, o CCF previne que a instituição que investiu tempo e dinheiro na formação de um jogador deixe de contar com seus serviços em um momento crucial, que é a assinatura do primeiro contrato de trabalho ou, ao menos, receba uma compensação financeira por isso. Algo muito relevante em um cenário no qual a maioria dos clubes do país tem dívidas significativas se comparadas a seus faturamentos anuais e tem na venda de jogadores uma das poucas maneiras de equilibrar as contas.

Apesar dessa garantia jurídica, o número de clubes com certificado de clube formador representa apenas uma pequena parcela dos filiados à CBF. Em agosto de 2019 eram 25 clubes com o certificado, na última lista atualizada pela CBF em abril do presente ano, o número de clubes que possuem o documento é de 33. De 2015, quando a CBF começou a divulgar a lista de clubes certificados, para cá o número variou entre 45, em 2018, e 25, em 2019.

Para Ivan Furegato, mestre em Gestão Desportiva pela Universidade do Porto, isso acontece, pois, poucos clubes têm expectativa de grandes receitas com a negociação de jogadores formados em sua base, “[quem busca o certificado] são aqueles clubes de médio ou grande porte, que vendem jogadores, ou que tem pretensões de vender. Essa pressão do mercado, vamos dizer assim, não chegou nos pequenos e médios de uma forma mais ampla”, analisa.

Pedro Smania, diretor do Movimento dos Clubes Formadores do Futebol Brasileiro e coordenador das categorias de base do São Paulo Futebol Clube, acredita que a pouca evolução no número de clubes certificados desde a regulamentação do CCF se dá por uma falta de conscientização geral sobre a relevância do documento por um lado e regras mais rígidas, que forcem sua obtenção, por outro, “o importante é que os clubes não busquem o certificado pelo certificado e sim que se tenha o entendimento da necessidade de se atingir os requisitos mínimos para uma criança estar morando em um ambiente diferente da sua casa, independentemente de sua origem ou classe social. Por outro lado, sua obrigatoriedade para participar de determinadas competições e outras medidas nesse sentido poderiam ser mais uma maneira de pressionar os clubes a buscar a certificação”, ressalta. O dirigente não acredita que flexibilizar os requisitos, como defendem alguns clubes, seja uma medida positiva “cada clube tem a responsabilidade de contemplar essas condições básicas, considero isso extremamente positivo. Um clube minimamente saudável tem condições de atingir os requisitos do certificado. Não vejo como solução abrandá-los para facilitar que outros clubes consigam se adequar. A gente precisa ter uma responsabilidade, e a responsabilidade precisa ser de todos. Se algum clube não consegue manter os requisitos ele não merece ter o certificado”, pontua.

O Estatuto da Criança e do Adolescente

Independente das pressões do mercado, um fato é que todos os clubes que se dispõem a alojar jovens em suas dependências devem respeitar o estabelecido no estatuto da criança e do adolescente, o ECA, que é uma lei federal e possui mais de 200 artigos. É o que afirma Thais Toledo, profissional do Serviço Social com 13 anos de experiência no futebol, “assim como qualquer outra instituição dentro do país que queira trabalhar com crianças e adolescentes é necessário que o clube de futebol, escolinha ou projeto social atinja requisitos mínimos, não tem como ser diferente disso”.

Um dado alarmante é que em 2019, ano pré-pandemia, 337 clubes disputaram competições sub-15 pelo Brasil sem possuir o certificado.

As condições de vida dos jovens que defendem esses clubes preocupam. O incêndio no Ninho chocou pela tragédia e atraiu holofotes pela dimensão do Flamengo, em clubes com menos recursos diversos tipos de violação são muito mais frequentes, “a gente vê muita coisa difícil de absorver. 14 meninos em um quarto, dormindo só em colchão, um banheiro para 30 garotos. Alguns clubes que só disponibilizam almoço e jantar, refeições sem nenhum valor nutricional, arroz feijão e salsicha ou coisas piores. Outros que não viabilizam a visita dos jovens às suas famílias, o garoto fica anos sem voltar para casa, isso ocorre até em alguns grandes. Sem falar dos desgastes físicos e emocionais sem que haja um responsável para zelar. Tudo isso é muito comum de ver por aí, com mais frequência nos clubes menores”, relata Thais.

CBF “certificado não substitui fiscalização”

Dias após o incêndio, a CBF divulgou uma nota afirmando que “cumpre rigorosamente suas atribuições”, ressaltando o aspecto esportivo do certificado, “a CBF atesta a qualidade dos clubes no desenvolvimento técnico de jovens atletas. Não participa, nem concorre com as funções dos órgãos públicos quanto à adequação e segurança de instalações”.

De 2012 para cá: a melhora nas condições de vida dos jovens jogadores após o CCF

Para Ivan Furegato, que acompanhou o processo de certificação do Botafogo de Ribeirão Preto, nointerior do estado de São Paulo, o documento trouxe benefícios para os jovens jogadores do clube, “foi possível perceber que não só os diretores, mas os próprios meninos da base diziam se sentir mais à vontade, render mais, depois ter acesso a psicólogo, acompanhamento social e educacional. Isso tudo aconteceu em uma época na qual o Botafogo teve resultados expressivos no campo, sendo vice-campeão sub-20 e chegando na final da Copa São Paulo, justamente com essa garotada, a primeira geração que se beneficiou da implementação do certificado”, conta.

Ivan ainda ressalta a importância do trabalho de profissionais das áreas da psicologia e do serviço social para a garantia dos direitos básicos dos jovens jogadores “se você contrata, por exemplo, uma psicóloga ou assistente social, por mais que o clube não siga o que determina o ECA, essas pessoas, até pela sua formação, acabam por conhecer essas exigências e colocando-as em prática. A existência de um profissional que está dedicado ao clube, fazendo um trabalho de prevenção é algo muito positivo. Supondo que alguém tente abusar desses garotos, se ele souber que existe um psicólogo lá dentro, um treinador profissional, que estão ali prestando atenção e conhecem o que podem denunciar, é possível inibir muita coisa e mostrar para os meninos que eles têm pessoas ali que se importam com eles e podem protegê-los”.

Thais Toledo também enxerga uma melhora na garantia dos direitos básicos após a regulamentação do certificado, “os aspectos positivos são fortes, os clubes que tem hoje o certificado estão em melhores condições, e os que não tem estão em movimento para busca-lo, isso significa que muita coisa está sendo mudada”, ela complementa destacando que o certificado também é benéfico no aspecto esportivo, “o indivíduo melhor formado vai render melhor em todas as áreas, tanto na parte pessoal, como profissional. Então, as chances dele conseguir um resultado em campo, um bom contrato e até uma transferência aumentam. Isso eu tenho visto acontecer, claro que não no ritmo que nós desejamos, mas me sinto satisfeita em sentir esse movimento”, comemora.

Possíveis caminhos

Apesar de proporcionar uma melhora nas condições de trabalho de jovens jogadores, o número de clubes certificado permanece estagnado. Em seu estudo sobre o tema Ivan Furegato traz algumas proposições que ajudariam a fazer com que mais clubes aderissem à certificação. Para ele, CBF e federações deveriam ser mais atuantes, padronizando o processo de certificação e buscando ativamente clubes que ainda não possuem o documento, incentivando a obtenção do certificado, “ajudaria muito na organização dos processos a criação de um departamento de categorias de base e ter uma pessoa responsável apenas pelo certificado, ter um maior controle, não ser uma coisa esporádica”, argumenta. Ivan acredita que as categorias do certificado e até a redação da lei podem ser aprimoradas para permitir que mais clubes busquem a obtenção do documento “uma ideia seria a de criar categorias de acordo com as possibilidades de cada equipe para fazer o certificado realmente funcionar em todo o território. Entendendo as diferenças, por exemplo, de um clube grande de primeira divisão e outro sem divisão. Hoje é muito fácil um clube pequeno falar que é impossível atingir as exigências e a CBF, por outro lado, aceitar isso e não cobrar. Aí entra um ponto que também acho fundamental que é a obrigatoriedade, se algo não é obrigatório no Brasil, e o futebol não foge à regra, a coisa não anda”, defende.

Para Thais, independentemente da certificação, a prioridade é fazer com que o clube seja um dos agentes a promover os direitos dos jovens jogadores, “o desafio é como se organizar para vincular o clube de futebol ao sistema de garantia de direitos. Para que o estado também se responsabilize por tudo isso. Para dar um tipo de registro, autorizando o clube funcionar, algo até anterior ao certificado. Afinal, se uma entidade quer trabalhar com crianças e adolescentes ela tem que desenvolvê-los de maneira responsável. O clube que tem recurso está se mexendo depois do incêndio, mas me pergunto o que está sendo feito nos clubes menores. Mesmo sabendo que vai ser fiscalizado eles não têm recursos para mudar sua realidade e os meninos continuam lá, em situação de risco”, analisa.

Thais Toledo e Ivan Furegato serão alguns dos palestrantes presentes no seminário “o ensino do futebol – uma alternativa à captação”, que será realizado nos dias 19, 20 e 21 de agosto de maneira remota. Fique atento às nossas redes sociais, é por lá que vamos divulgar todos os detalhes referentes à inscrição e participação no evento.

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