O magro das pistas

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Para os adeptos do uso de drogas, foi uma decepção: um magro ganhou a competição. Bolt, comprido e fino, não faz o modelito anabolizado dos sprinters; menos ainda o das ciências do esporte. E para os sisudos, sejam técnicos, pesquisadores ou dirigentes, outro recado: o esporte ainda diverte; o jamaicano Usain Bolt correu brincando. Nos próximos anos os laboratórios tentarão decifrar o fenômeno – ôpa, fenômeno não, dá azar e engorda, vamos chamá-lo de mago – que apagou a mancha produzida por seu compatriota Ben Johnson em Seul. Porém, como magia não é coisa de ciência, mas de inquisição, acho que vão deixar por isso mesmo. 

– Ele fez propaganda ostensiva da Puma –  interrompeu-me Aurora, e eu concordei.

– Foi isso mesmo, e daí? É a Puma que lhe paga o salário, e os artistas precisam de mecenas. Na Idade Média, o maior dos atletas foi Guilherme Marechal; o grande vencedor das justas terminou a vida dono de castelos – e Aurora ainda lamentou o futebol masculino, e eu lhe disse que não me causou surpresas.

– Foi o de sempre, letárgico, medroso, e nem deveria ser olímpico, tal o desinteresse que desperta, no público e nos jogadores; o feminino, ao contrário, é bonito de se ver.

Eu dizia essas coisas para Aurora, a coruja, que me ouvia com atenção olímpica, quando ouvi gritos entusiasmados no fundo da caverna; vinham de Arnaldo, o bagre cego. Surpreendi-o em lágrimas, sacudindo uma bandeirinha verde e amarela; na tela da TV a delegação brasileira desfilava no encerramento das Olimpíadas. Aguardei que o Ariidae se acalmasse e perguntei-lhe a razão de tamanha euforia.

– Porque somos uma potência olímpica – ele disse.

– Potência o quê? – insisti – ficamos pior que em Atlanta e Sidney. 

– Mas o Seu Nuzman disse que foi a melhor participação do país em toda a história – disse o bagre, agitando os bigodes. 

– Se houvesse competição de malabarismo o Seu Nuzman seria medalha de ouro – retruquei. 

– Mas temos que considerar – insistiu Arnaldo – os sacrifícios que nossos atletas fazem para chegar às Olimpíadas, verdadeiros heróis. Veja o número de participantes, um recorde. E as mulheres, cento e trinta e três. – e Arnaldo dizia isso brandindo a bandeirinha do Brasil. 

– Sabe Bernardo, a gente precisa aprender a reconhecer os méritos dos grandes dirigentes. 

– Mas, é só você olhar os números Arnaldo! Gastamos quase tanto quanto a Inglaterra e eles se deram bem melhor que nós – eu disse. Arnaldo, no entanto, não desistia, e com os olhos injetados despejou seus números. 

– Derrubamos o comunismo Bernardo. Em Pequim nossa delegação saiu-se melhor que Cuba, vencendo-os no ouro, e melhor ainda que a China, outro comunistão.

– Que a China? – indignei-me. 

– Sim, que a China – o bagre insistiu – para uma população de um bilhão e trezentos milhões de habitantes eles conseguiram 100 medalhas, uma para cada treze milhões de habitantes. Quanto ao Brasil, conseguimos 15 medalhas, uma para cada doze milhões e seiscentos mil habitantes. 

– Ora, mas se for para pensar assim – falei – a Jamaica arrebentou. Ganhou 11 medalhas para dois milhões e setecentos mil habitantes, basta fazer as contas. 

– E eu, que até chorei quando o Ciello chorou! – guinchou Oto, entrando na conversa.

– Ele vale nossas lágrimas, falei; a Maurren também. 

– Mas, e o futebol masculino, que vergonha! – indignou-se Oto. O Dunga não é técnico, não sabe mexer no time! 

– Sem dúvida – eu disse – ele é só um estagiário da CBF. 

– Estágio na seleção? – espantou-se Oto. 

– Sim – respondi – a CBF pensa no futuro. 

Nesse ponto notei, na expressão de Arnaldo, tons de entusiasmo misturados aos de loucura. 

– O que você me esconde? – perguntei-lhe. E ele me disse que era segredo, mas que para mim ele dizia, pois precisava reparti-lo com alguém; o bagre estava escrevendo, há algum tempo, a biografia do presidente da Confederação Brasileira de Futebol, seu ídolo, Sr. Ricardo Teixeira. Estupefato quis saber se ele ia escrever tudo, mas tudo mesmo sobre esse senhor, e ele disse que sim, que queria mostrar ao mundo a que ponto pode um homem se sacrificar pelo esporte de seu país. 

– Qual país? – perguntei ao bagre, mas ele nem me ouviu. Seu entusiasmo por essa tarefa era tanto que ele ainda me confessou que, motivado pelos feitos dos atletas brasileiros em Pequim, decidiu escrever também a biografia do Sr. Carlos Artur Nuzman, o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro. E, em seguida, desfiou todas as virtudes desse senhor, suas façanhas, seus méritos e contribuições inesquecíveis para a grandeza do esporte brasileiro. Percebi, com pesar, a incrível confusão mental de meu amigo bagre quando ele, entre outras coisas, disse que o ministro do esporte, Sr. Orlando Silva, era funcionário do Comitê Olímpico Brasileiro. 

Por mais que eu insistisse, o bagre não cedia. Cansado, a noite avançava, meus olhos teimavam em se fechar, declinei do debate. Já me retirava quando lembrei de perguntar. 

– Mas você acredita mesmo em tudo isso Arnaldo? – e ele me respondeu, um tanto constrangido. 

– Não é que eu acredite Bernardo, é que eu preciso acreditar.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br

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Uma questão de critério

Sem intenção

* Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batist
a Freire.

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