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Uma questão de honestidade

Uma coisa que é amplamente difundida no Brasil e ninguém faz mais muita questão de esconder é a chamada ‘propriedade de terceiros’ de um jogador de futebol. Aquele esquema: o clube tem um pedaço, um agente tem outro, uma empresa tem outro. E assim por diante. É fácil achar declarações na imprensa sobre isso e até extensas matérias sobre o assunto. E ninguém reclama.

Essa prática foi utilizada, explicitamente, pela MSI, que comprou diversos jogadores e colocou no Corinthians, mas nunca chegou a dar ao clube a propriedade sobre esses jogadores. Logo, os jogadores do Corinthians eram propriedades de terceiros. E eles chegaram e foram embora quando a MSI bem quis, o mesmo acontecendo em diversas outras situações, envolvendo outros clubes e outras empresas.

Pois eis que os jogadores da MSI foram a Inglaterra, que – a princípio – não aceitava muito bem a idéia da ‘propriedade de terceiros’. A Premier League defende que ninguém além do clube deve ter o direito de dizer como, quando e por quanto um jogador poderá ser transferido. É a tal da regra U-18, que não adiantou muito, porque o Tevez e o Mascherano foram pro West Ham e acabaram salvando o clube do rebaixamento. Mais o Tevez do que o Mascherano, bem verdade. Tanto que o Tevez fez um dos gols que salvou a pátria.

Mas quando um não é rebaixado, outro é. No caso, foi o Sheffield United. Acho que eu já contei toda a história aqui antes, então não vale muito a pena cair em detalhes. Fato é, porém, que o Sheffield reclamou que o Tevez estava registrado irregularmente e que quem devia ser rebaixado era o West Ham, e não eles. A Premier League até aceitou os argumentos do Sheffield, mas disse que tava tudo muito perto do final do campeonato e que seria injusto punir os torcedores com o rebaixamento do West Ham, então aplicou uma multa de uns vinte milhões de reais pro clube, que pagou sem reclamar.

Mas eis que o Sheffield não se deu por satisfeito e buscou seus direitos na Federação Inglesa. Processou o West Ham em uns cento e poucos milhões de reais. E ganhou. Afinal, o jogador tem contrato com o clube, e este – e mais ninguém – tem o direito sobre este contrato. Pelo menos na Inglaterra é assim.

Obviamente que o processo ainda vai longe. Existem agora discussões sobre a jurisdição da corte, sobre os precedentes e assim por diante. O negócio ainda vai longe, mas certamente esse novo fato fomenta ainda mais a discussão sobre o modelo que tem tomado o mercado de transferências.

Obviamente, também, que muita coisa ainda acontece na Premier League por baixo dos panos. Alguns empréstimos de off-shores aqui, algumas hipotecas sobre os próprios jogadores acolá, e assim por diante. Muda na fachada, mas no fundo continua quase tudo igual.

Pelo menos nós por aqui somos mais sinceros.

Para interagir com o autor: oliver@universidadedofutebol.com.br

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O magro das pistas

Para os adeptos do uso de drogas, foi uma decepção: um magro ganhou a competição. Bolt, comprido e fino, não faz o modelito anabolizado dos sprinters; menos ainda o das ciências do esporte. E para os sisudos, sejam técnicos, pesquisadores ou dirigentes, outro recado: o esporte ainda diverte; o jamaicano Usain Bolt correu brincando. Nos próximos anos os laboratórios tentarão decifrar o fenômeno – ôpa, fenômeno não, dá azar e engorda, vamos chamá-lo de mago – que apagou a mancha produzida por seu compatriota Ben Johnson em Seul. Porém, como magia não é coisa de ciência, mas de inquisição, acho que vão deixar por isso mesmo. 

– Ele fez propaganda ostensiva da Puma –  interrompeu-me Aurora, e eu concordei.

– Foi isso mesmo, e daí? É a Puma que lhe paga o salário, e os artistas precisam de mecenas. Na Idade Média, o maior dos atletas foi Guilherme Marechal; o grande vencedor das justas terminou a vida dono de castelos – e Aurora ainda lamentou o futebol masculino, e eu lhe disse que não me causou surpresas.

– Foi o de sempre, letárgico, medroso, e nem deveria ser olímpico, tal o desinteresse que desperta, no público e nos jogadores; o feminino, ao contrário, é bonito de se ver.

Eu dizia essas coisas para Aurora, a coruja, que me ouvia com atenção olímpica, quando ouvi gritos entusiasmados no fundo da caverna; vinham de Arnaldo, o bagre cego. Surpreendi-o em lágrimas, sacudindo uma bandeirinha verde e amarela; na tela da TV a delegação brasileira desfilava no encerramento das Olimpíadas. Aguardei que o Ariidae se acalmasse e perguntei-lhe a razão de tamanha euforia.

– Porque somos uma potência olímpica – ele disse.

– Potência o quê? – insisti – ficamos pior que em Atlanta e Sidney. 

– Mas o Seu Nuzman disse que foi a melhor participação do país em toda a história – disse o bagre, agitando os bigodes. 

– Se houvesse competição de malabarismo o Seu Nuzman seria medalha de ouro – retruquei. 

– Mas temos que considerar – insistiu Arnaldo – os sacrifícios que nossos atletas fazem para chegar às Olimpíadas, verdadeiros heróis. Veja o número de participantes, um recorde. E as mulheres, cento e trinta e três. – e Arnaldo dizia isso brandindo a bandeirinha do Brasil. 

– Sabe Bernardo, a gente precisa aprender a reconhecer os méritos dos grandes dirigentes. 

– Mas, é só você olhar os números Arnaldo! Gastamos quase tanto quanto a Inglaterra e eles se deram bem melhor que nós – eu disse. Arnaldo, no entanto, não desistia, e com os olhos injetados despejou seus números. 

– Derrubamos o comunismo Bernardo. Em Pequim nossa delegação saiu-se melhor que Cuba, vencendo-os no ouro, e melhor ainda que a China, outro comunistão.

– Que a China? – indignei-me. 

– Sim, que a China – o bagre insistiu – para uma população de um bilhão e trezentos milhões de habitantes eles conseguiram 100 medalhas, uma para cada treze milhões de habitantes. Quanto ao Brasil, conseguimos 15 medalhas, uma para cada doze milhões e seiscentos mil habitantes. 

– Ora, mas se for para pensar assim – falei – a Jamaica arrebentou. Ganhou 11 medalhas para dois milhões e setecentos mil habitantes, basta fazer as contas. 

– E eu, que até chorei quando o Ciello chorou! – guinchou Oto, entrando na conversa.

– Ele vale nossas lágrimas, falei; a Maurren também. 

– Mas, e o futebol masculino, que vergonha! – indignou-se Oto. O Dunga não é técnico, não sabe mexer no time! 

– Sem dúvida – eu disse – ele é só um estagiário da CBF. 

– Estágio na seleção? – espantou-se Oto. 

– Sim – respondi – a CBF pensa no futuro. 

Nesse ponto notei, na expressão de Arnaldo, tons de entusiasmo misturados aos de loucura. 

– O que você me esconde? – perguntei-lhe. E ele me disse que era segredo, mas que para mim ele dizia, pois precisava reparti-lo com alguém; o bagre estava escrevendo, há algum tempo, a biografia do presidente da Confederação Brasileira de Futebol, seu ídolo, Sr. Ricardo Teixeira. Estupefato quis saber se ele ia escrever tudo, mas tudo mesmo sobre esse senhor, e ele disse que sim, que queria mostrar ao mundo a que ponto pode um homem se sacrificar pelo esporte de seu país. 

– Qual país? – perguntei ao bagre, mas ele nem me ouviu. Seu entusiasmo por essa tarefa era tanto que ele ainda me confessou que, motivado pelos feitos dos atletas brasileiros em Pequim, decidiu escrever também a biografia do Sr. Carlos Artur Nuzman, o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro. E, em seguida, desfiou todas as virtudes desse senhor, suas façanhas, seus méritos e contribuições inesquecíveis para a grandeza do esporte brasileiro. Percebi, com pesar, a incrível confusão mental de meu amigo bagre quando ele, entre outras coisas, disse que o ministro do esporte, Sr. Orlando Silva, era funcionário do Comitê Olímpico Brasileiro. 

Por mais que eu insistisse, o bagre não cedia. Cansado, a noite avançava, meus olhos teimavam em se fechar, declinei do debate. Já me retirava quando lembrei de perguntar. 

– Mas você acredita mesmo em tudo isso Arnaldo? – e ele me respondeu, um tanto constrangido. 

– Não é que eu acredite Bernardo, é que eu preciso acreditar.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br

Leia mais:

Espírito olímpico
Trocando as bolas
Aurora
Uma questão de critério

Sem intenção

* Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batist
a Freire.