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Elementos para diagnósticos e avaliações no futebol em uma perspectiva sistêmica

Crédito imagem: Ricardo Duarte/SC Internacional

Em pleno século XXI, quando os estudos e pesquisas sobre pensamento sistêmico, complexidade, inter e transdisciplinaridade, entre outros conceitos, estão cada vez mais disponíveis no universo de conhecimento do futebol, não podemos mais continuar pensando em entender e avaliar atletas (e equipes) pelos critérios tradicionais, já que neles os pressupostos básicos da simplicidade, estabilidade e objetividade, característicos do paradigma cartesiano-mecanicista, infelizmente ainda predominam. É com esse olhar que ainda se consideram as clássicas e obsoletas “partes física, técnica, tática e psicológica” do desempenho esportivo, tratadas, quase sempre, de forma isolada, fragmentada e descontextualizada do todo.

Em uma nova perspectiva, alicerçada por uma visão sistêmica do futebol, o atleta deve ser visto na sua integralidade e totalidade, ou seja, na sua relação consigo mesmo (enquanto ser humano que é), na sua relação com a natureza e com o meio cultural ou social onde vive concretamente (i.e., em sociedade).

Sabemos que esta pretendida mudança cultural não é algo simples de ocorrer, uma vez que o paradigma tradicional, cuja metodologia indica que precisamos, em primeiro lugar, conhecer as partes para depois entender o todo, está arraigado em nossa cultura desde que René Descartes (1596-1650) estabeleceu os princípios dessa visão mecanicista, tornando-se hegemônico em nossa sociedade. É desde os séculos XVI e XVII, portanto, que este modo de interpretar a realidade procura dar destaque ao particular, às partes, à especialização, em detrimento de uma compreensão mais holística ou sistêmica dos fenômenos naturais, humanos e sociais.

Um exemplo bem claro deste modelo, em que o domínio da parte antecede obrigatoriamente o domínio do todo, é a crença de que para se aprender a jogar futebol, primeiro precisamos aprender as partes; em outras palavras, aprender os seus fundamentos (passe, chute, domínio da bola etc.), para só depois ter condições de jogar o jogo, propriamente dito, com mais qualidade. Este é um modelo questionado pela abordagem sistêmica, que trabalha com outros pressupostos.

É nesta perspectiva que propomos que o diagnóstico e a avaliação de um atleta (e mesmo de uma equipe) devem ser realizados de forma distinta da tradicional. Nesta proposta, consideramos níveis e dimensões ou estruturas de análise que refletem ou levam em conta toda a complexidade da realidade esportiva e existencial, da forma mais ampla possível. Neste sentido, consideramos cinco níveis e seis dimensões ou estruturas de análise, explicitadas na sequência.

Os cinco níveis de análise seriam os seguintes: o(a) atleta, o(a) treinador(a), a equipe, o treino e o jogo.

Vamos tentar entender cada um dos níveis sob o olhar sistêmico:

  • 1. O(A) ATLETA não pode mais ser visto(a) apenas como uma máquina capaz de produzir resultados esportivos, como faz a visão mecanicista ou cartesiana. Um indício de que ainda adotamos este paradigma é quando nos referimos a atletas como sendo “peças de reposição”, como partes de um mecanismo ou engrenagem. Na verdade, um(a) “jogador(a) de futebol” é, antes de tudo, um ser que pensa, que sente, que se movimenta, que chora, que tem dúvidas, procurando dar algum sentido humano a tudo que faz. Esse ser humano (futebolista) é movido pela “faísca” do sonho de se tornar um excepcional jogador ou jogadora de futebol. Podemos dizer que é a partir de seus propósitos (objetivos, metas, sonhos) que ele se movimenta, trazendo consigo uma determinada intencionalidade, que o faz tentar se superar a cada dia para atingir seu sonho. Muito longe, portanto, de ser uma máquina ou peça de uma engrenagem. Na perspectiva sistêmica, o atleta é, ele próprio, um sistema, condicionado por diferentes subsistemas: biológico (anatômico, fisiológico, biomecânico, bioquímico), psicológico, emocional e social; todos eles funcionando de forma integrada, indivisível e complexa.
  • 2. O(A) TREINADOR(A), não é somente aquele(a) que define a escalação do time ou substituições, escolhe a tática a ser utilizada no jogo e os tipos de treinamentos técnico-táticos que devem ser ministrados durante a semana. É preciso superarmos a visão tecnicista, ainda prevalente, sobre o seu papel na equipe. O treinador ou treinadora, na verdade, deve ser aquele(a) que inspira todos a se superarem a cada momento, alinhados aos propósitos dos atletas e aos seus próprios, devidamente acordado com os objetivos e metas da instituição em que trabalha (no caso, o seu clube). Para isso, é necessária uma visão muito mais ampla a respeito dessa liderança inspiracional.
  • 3. A EQUIPE, dentro dessa mesma abordagem, é também um sistema complexo, que se constitui como tal pelas relações dinâmicas de seus subsistemas – atletas, comissão e staff -,  cujo trabalho (treinamentos, jogos, entre outras atividades) determina ou condiciona o desempenho individual e coletivo dentro de todas as suas inter-relações, em que a intersubjetividade, a instabilidade e a imprevisibilidade são suas características básicas.
  • 4. O TREINO, por sua vez, é o ambiente de aprendizagem, onde os(as) atletas se exercitam, sob o comando do(a) treinador(a). Busca-se alcançar permanentemente a melhoria do rendimento esportivo, este visto de maneira complexa (multifatorial e interdependente), simulando o ambiente e a realidade do jogo sempre que possível. Caso contrário, as ações fragmentadas, características dos treinamentos tecnicistas, correm o risco de se descontextualizarem da própria realidade do jogo e, portanto, perderem muito do seu sentido.
  • 5. O JOGO (EQUIPE A X EQUIPE B) é, por fim, o grande sistema que conecta todos os anteriores, colocando os(as) atletas e as equipes em um sistema de colaboração e confronto permanentes. O “sistema jogo” é condicionado por vários aspectos, como as regras (regulamento), o tempo, o espaço, entre muitos outros elementos, objetivos e subjetivos, que caracterizam toda a complexidade do jogo.

Agora vamos considerar as dimensões ou estruturas de análise do(a) atleta, como um microssistema que estabelece relações com outros sistemas. Para esta fundamentação, apoiamo-nos em estudos desenvolvidos e aplicados pelo respeitado Professor Francisco Seirul-lo, Diretor de Metodologia do Treinamento do F.C. Barcelona. Seirul-lo inspirou o trabalho de inúmeros profissionais do futebol, entre eles Pep Guardiola, que não esconde sua admiração pelo mestre e que contribuiu de forma decisiva nas ideias de jogo e preparação de suas equipes.

São seis as estruturas de análise dos(as) atletas:

  • 1. ESTRUTURA COGNITIVA – responsável pelos atos ou processos de aquisição de conhecimento, que ocorrem por meio da percepção, atenção, memória, associação, raciocínio, juízo, imaginação, pensamento e linguagem, e que produzem os estímulos necessários às tomadas de decisão. 
  • 2. ESTRUTURA COORDENATIVA – responsável pelos atos ou ações motoras simples e complexas, que são realizadas pelos atletas geralmente de forma aberta, com e sem bola.
  • 3. ESTRUTURA CONDICIONAL – responsável pelos estímulos que exigem a manifestação de qualquer das capacidades físicas (ou atléticas) básicas, tais como velocidade, resistência, força, potência em suas diferentes especificidades e processos metabólicos próprios.
  • 4. ESTRUTURA SOCIOAFETIVA – responsável pelos estímulos que regulam as relações sociais (entre os indivíduos), tais como a cooperação, a solidariedade, o respeito, a compaixão, a coesão entre os atletas, entre outros.
  • 5. ESTRUTURA EMOCIONAL-VOLITIVA – responsável pelos estímulos que controlam as emoções e a motivação (vontade), envolvendo os desejos, as necessidades e os interesses dos sujeitos ou indivíduos. No esporte de alto rendimento, esta estrutura demanda uma força mental especial, muito vinculada a seus propósitos.  
  • 6. ESTRUTURA CRIATIVA-EXPRESSIVA – responsável pelos estímulos que exigem respostas que fogem dos padrões estáveis preestabelecidos, que só podem ser desenvolvidos em ambientes de aprendizagem próprios, onde a possibilidade e a aceitação do erro e de transcender certas regras são essenciais dentro do processo de desenvolvimento dos(as) atletas.  

Portanto são os cinco níveis de análise do jogo e estas seis estruturas (ou dimensões) de análise dos atletas que constituem os elementos que permitem substituir o olhar tradicional, fragmentado, mecanicista, ainda hegemônico, por uma visão mais sistêmica e complexa do futebol e do esporte em geral.

A proposta aqui defendida é que nos preparemos para superar o paradigma mecanicista com o qual avaliamos os fenômenos ocorridos no futebol (e na vida), em que a parte – muitas vezes – é confundida com o todo, levando-nos a interpretar equivocadamente a realidade, dificultando um melhor diagnóstico e uma melhor avaliação e, consequentemente, dificultando a necessária integração de todas as ações voltadas ao ótimo desempenho esportivo. Este é o convite!

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Investimento de curto ou longo prazo no futebol

Crédito imagem: Rafael Ribeiro/Vasco.com.br

Temporada afunilando, campeonatos já com cenários bem definidos e clubes tendo resultados do trabalho plantado lá atrás. Sim, porque a vitória e a derrota de hoje demonstram o planejamento de ontem. Apesar de toda a imprevisibilidade que o jogo carrega por si só, a lei da vida vale para a temporada de uma equipe: não dá para colher sucesso se o que foi plantado não teve organização, coerência e conhecimento.

Ainda temos no futebol brasileiro a ideia de que basta ter dinheiro para a conquista de títulos. Claro que quanto maior o poderio financeiro mais jogadores de qualidade podem ser contratados. E no final das contas a parte técnica tem uma influência enorme no resultado final. Porém há outras variáveis que se bem controladas podem ter igual ou até maior influência no desempenho de um clube ao longo não só de dez meses de disputa, como também no médio prazo.

Formatação homogênea de elenco é uma das peças chaves para o sucesso no futebol, mas ainda desprezada por muitos clubes. Buscando atender uma demanda momentânea dos apaixonados torcedores, dirigentes apostam em contratações faraônicas que dão mídia por alguns dias, mas que oneram as contas por vários anos. Não sou contra grandes reforços. Reconheço que nomes famosos atiçam a curiosidade de todos e fortalecem o produto. Entretanto o que já está provado e comprovado que não funciona é o batido argumento de “oportunidade de negócio” para trazer jogadores em final de carreira que não atendem as necessidades de um elenco.

Na esteira de jogadores com muito nome e salários maiores ainda, mas que pouco entregam dentro de campo, vale falarmos da estrutura física e de pessoas em departamentos estratégicos de um clube. Talvez com a soma dos vencimentos mensais de um jogador voltando da Europa fosse possível investir em um departamento médico de ponta, com tecnologia e profissionais da mais alta qualidade, para que não só houvesse uma mais rápida recuperação, mas também um trabalho de prevenção de lesões. Ou quem sabe esse dinheiro pudesse ser investido em análise de desempenho, para melhorar aspectos coletivos e individuais do time e até mesmo um aporte na análise de mercado para que o processo de recrutamento fosse mais assertivo. Ou até mesmo valesse mais uma estruturação maior nas categorias de base, formando mais e melhores jogadores para que houvesse tanto entrega no time profissional como também boas vendas, fazendo com que esse modelo se retroalimente.

Reconheço que no imediatista futebol brasileiro o dirigente – que muitas vezes não é profissional e sim um ‘torcedor abnegado’ – se vê tentado a contratar um jogador renomado ao invés de investir em uma estrutura, que pode demorar alguns anos para dar resultado. No viés político dos clubes, como segurar a vaidade desse cartola para plantar algo que talvez o seu sucessor colha os resultados… Assim, seguimos com os clubes cada vez mais endividados, transportando a aleatoriedade do jogo para a gestão. Enquanto o que importar for o próximo jogo e não o médio prazo o caos seguirá dominando.

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Qual é o melhor caminho para ser treinador no Brasil?

O futebol brasileiro está muito atrasado taticamente. Essa afirmação vem se tornando cada vez mais frequente em qualquer conversa ou discussão quando se fala da evidente grande crise que nosso futebol vem enfrentando nos últimos tempos.

Muito desse atraso apresentado no nosso jogo está sempre relacionado ao treinador de futebol e à necessidade de renovação e atualização dos profissionais para que nossa forma de jogar se modernize.

Treinador de futebol no Brasil: a renovação é fundamental

Essa renovação dos nossos técnicos é saudável e que muitas vezes se mostra necessária. No entanto, quando esta é defendida, pouco se discute uma questão muito importante: como se formam os treinadores no Brasil?

Apesar de existirem bons cursos de treinadores de futebol a serem feitos por quem tem interesse (a própria Universidade do Futebol disponibiliza vários deles) e uma regulação para se tornar treinador profissional, ainda não há um “caminho único”.

Atualmente, para se tornar treinador de futebol profissional no Brasil, é necessário se formar em Educação Física – exceto para quem já foi jogador profissional – e realizar o curso ofertado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Nele, existem quatro módulos de formação: licenças A, B, C e Pro.

Como ser um treinador de futebol: a importância da formação

Então se realmente temos a intenção de evoluir e voltar a ser o melhor futebol do mundo, com toda a certeza um dos passos mais fundamentais é o exercício de programas robustos de capacitação para quem quiser ser treinador de futebol no país, com módulos bem desenvolvidos e gerando um padrão obrigatório de formação.

É importante ressaltar, porém, que isso não significa que a faculdade de educação física deveria ser obrigatória para o cargo, pois o futebol exige que quem trabalhe com ele tenha uma formação específica para isso, de acordo com suas particularidades, algo que a formação em educação física talvez não abrange totalmente.

Como ouvimos frequentemente, apesar de existirem algumas exigências, a formação do treinador de futebol no Brasil ainda é algo novo. 

Existem inúmeros países que realizam a formação dos treinadores de maneira ainda mais profissional e servem de exemplo para nos inspirarmos para que, por meio de debates e ações, possamos desenvolver urgentemente nosso próprio padrão de formação de técnicos e, assim, avançarmos rumo à recuperação do nosso futebol.

Enquanto essa necessidade não vira realidade, fica a pergunta: qual é o melhor caminho para ser treinador de futebol no Brasil? Capacitação!

Você sabia que a Universidade do Futebol oferece o Programa de Capacitação para Treinador de Futebol?

No curso, os alunos são apresentados a todos os aspectos do jogo, sendo ideal para as pessoas que desejam se tornar treinadores de futebol ou que já atuam na área e visam aprofundar ainda mais os seus conhecimentos.

Entre em contato conosco agora mesmo e saiba mais informações.

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Por uma pedagogia da realidade no futebol – Tenhamos menos, sejamos mais

Crédito imagem: Gustav Schultze, 1882/Wikimedia Commons

Na segunda metade do Século XIX, na fadada Alemanha Imperial, existiu um camarada chamado Friedrich Nietzsche, que, matuto das ideias, passou boa parte da vida escrevendo um número interessante de textos e que cento e tantos anos depois continua a impactar, do ponto de vista filosófico, o modo como você, corajoso e corajosa que insiste em gastar os olhos com a falação pedagógica deste escriba, e eu, obviamente, concebemos a linda – e absurda – existência humana. Nietzsche foi e continua sendo um dos baluartes da filosofia contemporânea e qualquer tentativa de sintetizar, em centenas de palavras, uma de suas reflexões que seja é um tanto pretensiosa. Ainda assim, vou ter a pachorra (qualquer coisa é culpa do Paulo) de aproveitar certo conceito de nosso amiguinho germânico para levantar a bola e continuar a discussão sobre treinadores, treinadoras e autonomia.

Nietzsche cunhou o termo übermensch, em português, ‘super-humano’ ou algo parecido, para ressaltar nossa fome de transcendência – a todo o tempo abafada. O ‘super-humano’ não é alguém dotado de poderes, inequívoco, perfeito. Está mais próximo, sim, de que alguém que, ao fugir de pragmatismos e convenções morais e compreender suas limitações, se liberta pelo devir: passa se afirmar na diferença entre o que se tornou e o que foi e entre o que será e o que é agora. ‘Torna-te quem tu és’ – desconfio que você, corajoso e corajosa, já deve ter ouvido, lido ou até mesmo se apropriado dessa expressão, ainda que apenas pela retórica. Eis uma explicação violentamente rasa do conceito – por isso, nada como a própria leitura das obras do filósofo alemão ou explicações conceituais um pouco mais densas, a exemplo do que faz o ótimo livro Razão Inadequada, mas suficientemente útil, creio, para darmos sequência ao raciocínio.

O ‘super-humano’ nietzschiano não tolera o conformismo. Por mais contraditório que seja, há um bocado dele no que tem sido vendido como revolucionário. Que atire a primeira pedra quem nunca idealizou algum estereótipo para si. Fiquemos com os treinadores e as treinadoras de esportes: quase que platonicamente, parecem correr atrás, o tempo todo, para alcançarem um certo tipo de arquétipo profissional, que tenha isso, aquilo e aquilo outro, que aja assim e assado e, claro, no fim das contas, vença. No mundo acadêmico, a busca por um modelo ‘ideal’ me parece traduzida pela quantidade voraz de produções científicas sobre quais competências são necessárias para que sejam, esses pobres indivíduos à beira do campo e da quadra, bem-sucedidos.

Que não confundamos alhos com bugalhos. A aproximação entre ciência e prática é tão necessária quanto os estudos que aprofundem o ato de treinar e a profissão treinador. Para desespero de viralatistas e negacionistas e apesar dos pesares, universidades públicas brasileiras – cito aqui, correndo o enorme risco de cometer injustiças, UNICAMP, USP, UFSC, UFG e UFAM – tem conduzido investigações sobre o desenvolvimento e prática profissional de treinadores e treinadoras, a partir de seus laboratórios e grupos de pesquisa, com primazia e sofisticação ímpares. Cabe ressaltar: a pedra fundamental desses estudos, que constituem o cerne da Pedagogia do Esporte, enquanto subcampo da Educação Física, foi assentada graças ao pioneirismo gnosiológico do Prof. Roberto Rodrigues Paes, lá nos anos 80.

O que não significa que todos eles estejam imunes a problematizações aqui e acolá.

Nossos bate-papos pedagógicos, vocês sabem, partem d’um ponto de vista ou da vista d’um ponto, que, se não presumem almejar a verdade absoluta, parece suficientemente relevante para ser destilado em palavras e causar uma ou outra disjuntura intencional. Pois bem: a noção de que treinadores e treinadoras devem refletir sobre suas ações, práticas e condutas, constitui grande parte dos programas de formação e chancelada por importantes autores e autoras da ciência pedagógica. Tais processos reflexivos, porém, correm riscos de sequestro epistemológico e serem guiados por um pensamento linear, racionalista e fechado, mesmo que diga confrontar pressupostos tradicionais de ensino, aprendizagem e treinamento. Isso porque esse ‘estado de consciência’, se enjaulado por um tipo de abstração que não desemboca em ação real contínua ou numa prática minimamente espontânea e intencional pode tanto beirar o infrutífero, quanto acabar desmascarado no médio prazo. O Paulo, o cara do texto passado, chamaria de ativismo.

O refletir sobre a própria prática, da parte de treinadores e treinadoras, não envolve apenas o ‘apagar de incêndio’, que caracteriza a perseguição pela coerência pragmática, na aula, no treinamento ou jogo. Nem deve carregar consigo uma espécie de auto panóptico – desculpe, Foucault, este escriba não sabe o que faz – para designar uma paranoia vigilante de dentro para dentro. Fiz isso. Mas poderia ter feito aquilo. Não, aquilo, não. Aquilo outro é o melhor. Mas antes tenho que refletir sobre. Preciso parar e pensar. Paro. Penso. Mas será que minha reflexão é correta? Devo, mas será que faço? Faço, mas será que devo?

Não faço. Quem sabe amanhã, porque o treino já acabou.

As reflexões são guiadas por certo fetiche à racionalização de competências basilares, visando uma dita excelência performática. Do hemisfério norte, emergiram importantes pesquisas que ressaltam a importância de conhecimentos de natureza interpessoal (ligada aos relacionamentos e conexões estabelecidas com os indivíduos ao redor), profissional (vinculada aos elementos tático-técnicos do jogo) e intrapessoal (atrelada ao relacionamento consigo mesmo ou mesma) ao treinador e treinadora de esportes.

A elaboração dessa tríade de conhecimentos tem enorme valor para a organização de ideias e procedimentos voltados ao desenvolvimento profissional de treinadores e treinadoras. Este que vos escreve, inclusive, fez uso proveitoso dela em uma investigação com jogadores e jogadoras de futebol profissional para levantar quais competências são mais apreciadas pelos protagonistas do jogo, que pode ser acessada gratuitamente aqui. Nos parece indiscutível que aptidões como liderança, gestão de pessoas e de relacionamentos, empatia, amor ao jogo e repertório tático sejam caras à profissão: elas, todavia, não são adquiridas com uma simples ‘googlada’, com um livro, um curso ou uma graduação completa no ensino superior.

O conformismo, a quem Nietzsche declarou ranço, adquiriu novos contornos sob a égide da positividade. Nos conformamos em parecer que estamos saindo da casca, sem, de fato, rompê-la de verdade – dentre outras coisas, porque é um processo não exatamente confortável. Ao invés de tornarmos quem somos, como sugeriu o germânico, fingimos vir a ser o que o convencional requer. Assim, treinadores e treinadoras buscam o elixir da boa vida pedagógica, em forma de competências, como se pudessem ser compradas em prateleiras de supermercado, como itens de uma lista de compras aguardando o check-list da caneta. Tenha isso, tenha aquilo, faça assim, faça assado.

E ser, será que alguém está sendo? No ‘Pedagogia do Esporte’, canal digital dirigido pelo amigo Lucas Leonardo, vi uma provocação interessante: será que tamanho número de diretrizes, determinações, passos e deveres não estão pasteurizando o ato de treinar? E os afetos e contextos, inerentes à ação pedagógica, não estão sucumbindo às generalizações das competências e reflexões a serem seguidas?

Desconfio que uma das saídas para essas armadilhas esteja no autoconhecimento. A noção crítica – e não idealizada – sobre o contexto real de trabalho e da infinidade de contradições que treinadores e treinadoras evocam a partir de suas crenças, concepções e valores: sobre quem são, porque são e como forjam seus conhecimentos. Por essas e outras, insistimos na epistemologia como preponderante nos processos de construção e relação com os saberes no campo pedagógico (levando em conta que o ensino é uma prática social viva e complexa) e, portanto, da prática – em consonância a que pedagogos importantes como o canadense Maurice Tardif e a brasileira Cecília Borges defendem. Entre o ter e o ser, a linha não é exatamente tênue e o fato d’os processos de formação voltarem-se mais ao primeiro verbo do que ao segundo é digno de sinal amarelo.

E isso sim, é ‘falação’.

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Análise complexa de desempenho

Crédito imagem: Bruno Sarraf/EC Vitória

A aleatoriedade do jogo de futebol seguirá intacta até o fim dos tempos. É isso que dá graça ao espetáculo! Uma partida começa e não sabemos o que pode acontecer. As infinitas possibilidades de ação entre vinte e dois jogadores manipulando um objeto pequeno (a bola) em um terreno proporcionalmente imenso ( o campo), coordenando dois alvos (os gols) durante mais de noventa minutos fazem do futebol o esporte mais praticado e amado do mundo!

Mas como algo inserido dentro de um contexto maior o jogo passa constantemente por evoluções. Não se joga mais como há dez, vinte, trinta anos. A essência do jogo é a mesma, porém como exemplo, trago as implicações do VAR ao esporte: não dá mais pra ludibriar a arbitragem com simulações. Ou o jogador que não tiver noção de tempo e espaço ficará impiedosamente impedido a todo momento. 

E mais do que dentro de campo, a tecnologia traz inúmeras implicações fora dele. São ferramentas que surgem a cada dia, semana e mês com a difícil missão de prever toda essa aleatoriedade e fazer com que uma equipe tenha mais chances de êxito. 

Eu poderia enumerar vários novos elementos e situações, mas vou focar na ciência disponível atualmente para a contratação de jogadores. No futebol “antigo” valia aquele olhar “sobrenatural” de um dirigente e de um olheiro. Hoje a base de dados disponível a um custo relativamente baixo faz com que diversos clubes tenham acesso não só a performance de um jogador com e sem a bola, como também a dados físicos e até ao perfil psicológico de quem se busca contratar.

Neste novo mundo do futebol, que movimenta milhões e até bilhões de reais, não dá para contratar com base no achismo ou no gosto pessoal de algumas poucas pessoas. Claro que já citei a aleatoriedade do esporte e vale pontuar que estamos tratando de seres humanos e que por isso não conseguiremos jamais prever elementos como adaptação, problemas pessoais que possam surgir e etc. Contudo, recrutar jogadores com base em memória afetiva ou até índices muito antigos de performance, sem mensurar o presente e projetar o futuro, simplesmente para “dar uma resposta pra torcida”,  não cabe mais no futebol profissional de hoje.

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Dedicação além das quatro linhas

Crédito imagem: Ricardo Duarte/SC Internacional

O futebol mudou porque o mundo está constantemente mudando. Como algo inserido dentro de um todo maior, que é a sociedade e sua evolução, o jogo não pode e nem deve ser como era há vinte, trinta anos. Se nós não vivemos da mesma forma, porque o futebol deveria ser imutável?!

E se o jogo é outro, quem o pratica também é. O atleta profissional de futebol de 2021 não é o mesmo de 1991, por exemplo. E em muitas coisas saímos perdendo atualmente. O principal é a diminuição do amor pelo futebol, do gosto pela bola.

Gosto sempre de contextualizar e já reconheci que o mundo mudou e admiti que o futebol não pode ser igual para sempre. O jovem de hoje tem milhares de opções de lazer e variados estímulos que o levam a não ficar focado cem por cento no futebol. E nem quero entrar na seara da falta de campinhos, da ausência da rua na formação e etc. Não, o foco não é esse!

Falo de uma geração que tem pouco apreço pelo jogo. Que não gosta muito de assistir futebol, que acha noventa minutos longos e chatos…uma geração que já não fala tanto de futebol, que não respira o jogo como gerações anteriores…

Venho detectando essa regra – claro que há exceções – e percebi que isso impacta diretamente na qualidade de todas as partes da pirâmide do futebol brasileiro.

Como em qualquer profissão, jogadores mais apaixonados pelo que fazem seriam mais competitivos. Se eles tivessem mais dedicação aos detalhes do esporte poderiam performar melhor. Se eles entregassem mais horas do dia ao jogo e não apenas o período em que estão obrigatoriamente treinando, talvez tivessem mais soluções para resolver os problemas do jogo. 

O ambiente à nossa volta é determinante e condiciona nossas ações. Se o futebol já não é tão único e atraente como já foi para muitos, a força pessoal em focar e se dedicar tem que ser ainda maior. Nunca foi tão difícil pensar só em futebol. Entretanto, também nunca foi tão fácil se destacar por simplesmente amar e se dedicar ao jogo.

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Sobe o nível do futebol brasileiro

Crédito imagem: Ari Ferreira/Red Bull Bragantino

A renovação é algo normal em qualquer atividade profissional. Ciclos acontecem de maneira natural – idade e seleção do próprio mercado, por exemplo – ou até intencional – a pessoa decide por si só encerrar uma trajetória laboral.

No caso dos treinadores de futebol profissional no Brasil estamos passando nitidamente por uma mudança de safra. Na elite, nos quarenta principais clubes – Séries A e B – apenas dois técnicos têm mais de sessenta anos: Luiz Felipe Scolari no Grêmio e Vanderlei Luxemburgo no Cruzeiro. E aqui se apresentam dois casos bem simbólicos; ambos têm um passado incrível, repleto de conquistas, mas estão em contextos de evitar rebaixamento.

Que fique bem claro: não acredito em rótulos! Jovem, velho, estrangeiro, etc… as competências sempre foram e sempre serão as maiores norteadoras de qualquer análise. Mas chama a atenção que alguns técnicos que foram vitoriosos no passado não estão conseguindo mercado. Nesse mundo atual sem fronteiras e globalizado é claro que vamos absorver profissionais de outros países. E novamente vale a máxima das habilidades e não do passaporte, por mais que para alguns dirigentes valha mais surfar na onda dos estrangeiros do que avaliar, de fato, o trabalho em si. Mas tendo elementos que elevem a qualidade é bom para todos! Subindo o ‘sarrafo’, no final das contas, todos ganham! Se antes a zona de conforto imperava, vejo hoje uma busca por conhecimento altamente positiva!

Dentro de uma visão sistêmica, o técnico é um elemento inserido em um ecossistema maior. É claro que não é bom pra ninguém a média de permanência de um profissional ser de apenas três meses. Neste contexto, evidentemente, o treinador vai buscar primeiro sobreviver. Depois, se der, ele pensa em um jogo mais elaborado…entretanto mesmo diante desse caótico cenário já consigo ver o nível subindo no futebol brasileiro. Já dá para notar ideias e conceitos interessantes sendo implementados. Há uma luz no fim do túnel. Depois de anos de acomodação, estamos melhorando! Para a primeira divisão do campeonato brasileiro ser uma das melhores do mundo leva tempo e depende de uma centena de fatores. Mas o que vemos hoje em campo é certamente melhor do que há cinco anos…

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O fim do preparador físico no futebol?

Uma reflexão crítica sobre a visão tradicional da preparação física no futebol no século XXI

Crédito imagem: Felipe Oliveira/Esporte Clube Bahia

Desde que o futebol começou a se estruturar profissionalmente, em meados do século passado, surgiu a necessidade de se desenvolver abordagens mais científicas que dessem sustentação ao trabalho com atletas e equipes pelo mundo afora.

Neste percurso histórico, é inegável o papel ocupado pelo preparador físico em sua evolução, desenvolvendo a pedagogia do esporte e suas metodologias e, assim, qualificando os treinamentos que repercutiram também na qualidade do jogo em várias de suas dimensões.

Com o suporte de áreas específicas e gradativamente mais especializadas das ciências do esporte, tais como a fisiologia, a biomecânica, a nutrição, a bioquímica, entre outras, a preparação física desenvolveu-se de forma extraordinária.

Porém, com o passar do tempo e à luz dessa mesma evolução, outros aspectos – além do “físico” – foram ocupando espaços igualmente relevantes, contribuindo para os processos metodológicos do treinamento, notadamente os aspectos técnico-táticos e, mais recentemente, os mentais, emocionais e socioculturais.

Somado ao esgotamento das abordagens exclusivamente especialistas (mecanicistas, cartesianas) que insistem em separar as inseparáveis “partes física, técnica, tática e psicológica” na preparação de atletas, tudo isso fez com que muitos profissionais, atentos à evolução das ciências do esporte e do conhecimento de forma geral, começassem a fazer revisões substanciais e conceituais de suas práticas.

Hoje em dia, é evidente a busca por novos caminhos que substituam o modelo fragmentado e demasiadamente especialista do treinamento, adotando-se abordagens mais integradas e sistêmicas que contemplem toda a complexidade do treinamento e do jogo, favorecendo uma preparação mais adequada às novas exigências competitivas.

Desta forma, as abordagens tradicionais dos profissionais de preparação física, focando seus conhecimentos científicos quase que exclusivamente na compreensão e desenvolvimento dos aspectos biológicos do rendimento esportivo, expressos em mais força, mais velocidade, mais resistência, entre outras valências físicas ou fisiológicas específicas e complementares, começaram a se esgotar e já não conseguem atender plenamente às demandas que o alto rendimento no futebol (e em outras modalidades) exigem.

Atualmente, o futebol altamente competitivo pede outros conhecimentos, habilidades e, fundamentalmente, atitudes deste novo profissional especialista, não só para o futebol masculino, como também para o emergente futebol feminino. O principal deles refere-se ao entendimento mais ampliado do próprio jogo de futebol, dos aspectos humanos da motricidade esportiva, cuja performance atlética é apenas um de seus elementos, e onde todas as nuances técnico-táticas, mentais, emocionais, culturais e sociais não podem ficar de fora das suas intervenções, por mais específicas que possam parecer.

Portanto faz-se necessário compreender a performance atlética de forma muito mais ampliada do que se fez até aqui. Impõe-se, enfim, um novo olhar, uma nova visão, uma verdadeira mudança de paradigma.

O novo “preparador físico” ou a nova “preparadora física” (não seria o momento de mudar o nome destes profissionais?) devem possuir competências que permitam compreender a complexidade que é desenvolver o atleta e a atleta de forma integral e plena, dentro das características da equipe pela qual trabalha e devidamente balizadas por uma abordagem a mais interdisciplinar (ou transdisciplinar) possível (*).

Afinal, os jogadores e as jogadoras de futebol – condicionados(as) às regras e características do próprio ato de jogar – são seres humanos que se movimentam tendo como pano de fundo um propósito existencial (em que os profissionais se inserem) e que deve dar sentido a tudo que fazem. Este fenômeno precisa ser desvendado por todos os especialistas que trabalham com ele.

Dentro desta nova perspectiva, não se pode entender a preparação de atletas de futebol de forma isolada ou descontextualizada do ambiente onde a prática esportiva se realiza. Saber como se dão as relações do(a) atleta consigo mesmo(a), com seus companheiros(as), com o treinador(a) e sua comissão técnica, com o clube e, em última instância, com a sociedade e cultura em que vive, é fundamental para o resultado esportivo final que se busca em conjunto. Em outras palavras, não se pode mais pensar no específico, desconsiderando-se toda a complexidade que se constitui o(a) atleta em suas relações consigo mesmo(a) e com o mundo em que vive. Este é, talvez, o grande diferencial entre um preparador tradicional especialista e o novo ou nova profissional que começa a surgir; também especialista, mas com uma visão mais ampliada de seu papel diante do(a) atleta e da comissão técnica da qual é parte integrante.

Isto não quer dizer, entretanto, que este novo profissional deva abandonar certas especificidades, inerentes ao seu trabalho voltadas à performance atlética. Mas estas tarefas específicas devem vir sempre acompanhadas de uma abordagem que tenha como pressuposto uma sólida visão sistêmica ou abertura para entender, cada vez mais, toda a riqueza por trás da complexidade esportiva e humana, como também entender, em sua essência, o real significado ou sentido do ato de jogar futebol. Esta não é uma tarefa simples! Exige, sobretudo, muito esforço, com inteligência, maturidade, estudos e pesquisas. E mais: tudo isso devidamente alinhado ao seu próprio propósito de vida!

E se esse profissional não é mais o antigo preparador físico, como denominaríamos esse novo ou nova profissional emergente? Preparador(a) de performance atlética? Educador(a) do movimento? Motricista do esporte? O que você pensa sobre o assunto?

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(*) Se tiver interesse neste assunto, recomendo a leitura do texto “Multi, inter e transdisciplinaridade – Os caminhos da produção do conhecimento no futebol”.

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A criticidade e criatividade do jogador de futebol: O que a rua tem a ver com isso?

Crédito imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Quanto à indagação título deste artigo, adiantamos nossa resposta: TUDO! É fácil notar a atuação técnica e política dos jogadores de futebol brasileiros, e é praticamente consenso ver, cada vez mais, a perda de criatividade ou a privação dos jogadores de desenvolvê-la e exercê-la, assim como temos visto, também, o cerceamento de posicionamentos críticos daqueles poucos que se propõem a manifestar-se, eximindo-se da responsabilidade de contribuir com a formação de atletas e sujeitos críticos.

Comecemos pela criticidade… ou a falta dela. Em texto anterior, tratamos do descabimento da realização da Copa América de Futebol em solo brasileiro e, principalmente, da oportunidade perdida pelos jogadores da seleção de se posicionarem criticamente em relação ao contexto pandêmico, inclusive, negando a participação nessa absurda, imprudente e desrespeitosa competição esportiva. Faltou capacidade, ou coragem, para um posicionamento crítico desta ordem.

Há algumas semanas, os jogadores de uma das equipes da primeira divisão do Campeonato Brasileiro de futebol resolveram se posicionar publicamente em relação ao atraso dos salários. E foram duramente criticados por isso. Poucos dias depois, o principal jogador da seleção brasileira manifestou-se nas redes sociais esbravejando, grosseiramente, inclusive, contra a posição de alguns torcedores que afirmaram a intenção de torcer para a equipe adversária da seleção brasileira, a Argentina, na final da Copa América. Tal jogador, que inquestionavelmente tem poder altíssimo como formador opinião, colocou-se como patriota, mas em momento algum questionou as mortes decorrentes da pandemia, as faltas de vacinas, as denúncias de corrupção do atual governo. Enfim, a criticidade do jogador de futebol brasileiro é, infelizmente, assim: cerceada ou inexistente.

No contexto do Esporte Olímpico, mas ainda no âmbito do futebol, se por um lado presenciamos declarações altamente críticas, coerentes e certeiras das jogadoras da seleção feminina, Marta e Formiga, especificamente, na seleção brasileira masculina de futebol notamos, novamente, um comportamento como se os jogadores fizessem parte de outro mundo, com total falta de empatia pelos atletas olímpicos de outras modalidades da delegação brasileira, que subiram ao palco de premiação com o agasalho do COB. Ao receber as medalhas usando o uniforme de um patrocinador da CBF, descumpriram as regras e termos assinados, sem pensar que esse ato poderia prejudicar os atletas de outras modalidades. Um dos medalhistas brasileiros da natação afirmou, inclusive, que “A mensagem foi clara: não fazem parte do time e não fazem questão. Também estão completamente desconexos e alienados às consequências que isso pode gerar a inúmeros atletas que não são milionários como eles”. Em resposta, o capitão da seleção brasileira masculina de futebol afirmou, dentre outras coisas, que não aceitam certas imposições. Parece não ter sido o caso em relação à participação na Copa América. Não é?

Mesmo se extrapolarmos para outras modalidades, e até outros países, o número de atletas que de alguma forma se manifestaram criticamente sobre algum tema foi insignificante, ainda que seus respectivos posicionamentos sejam muito válidos e devam ser bastante valorizados.

Passando para a esfera técnica do jogo e do jogador de futebol, vemos cada vez mais jogadores pouco criativos, preferindo o passe burocrático ao drible, perdendo a capacidade de resolver ou desequilibrar uma partida. Aqueles poucos que ainda se destacam pela sua criatividade e pela capacidade de improvisar no ambiente de jogo, à exceção de Neymar e mais alguns, têm sua criatividade também cerceada, tanto pelos treinos atuais, quanto pelos esquemas táticos e treinadores. Os esquemas táticos, inclusive, precisam ser melhor compreendidos por todos. Não estamos nos referindo à forma de se posicionar em campo, mas ao próprio conceito de esquema. No entanto, isso é tema para um próximo texto.

Ainda assim, faremos uma breve interrupção para conceituar criatividade, visto que o termo, muito usado, costuma ser mal apropriado, exatamente por carência de conceituação.

Ensina o pensador Arnold Gehlen, que o ser humano é a única criatura capaz de, entre uma sensação e uma ação, ter um hiato para considerar, refletir, pensar, ter consciência. Nesse hiato, que é um nada-fazer extremamente ativo, o ser humano cria, corrige, refaz, confirma etc., o que gera um comportamento que talvez produza algo novo, algo para mudar o modo de viver. Ou seja, nesse hiato ele cria cultura. E essa cultura será seu meio ambiente, seu nicho ecológico. É da natureza do ser humano criar, sendo que essa criação se dá nos hiatos, nos intervalos entre ações necessárias. É na desnecessidade, no nada-fazer que nos tornamos humanos.

Carl Jung , um desbravador do inconsciente humano, afirmou que “tudo o que o espírito humano criou, brotou de conteúdos que, em última análise, eram germes inconscientes.” (JUNG, 1984, p. 379). Mais adiante ele diz: “Mas é também da fonte viva dos instintos que brota tudo o que é criativo; por isto o inconsciente não é só determinado historicamente, mas gera também o impulso criador” (JUNG, 1984, p.382).

Ou seja, é da natureza humana criar. É de nossa natureza, especialmente, porque nascemos e perduraremos incompletos por toda a vida. O que nos dá a natureza para realizar a experiência de viver, é insuficiente. Se, por um lado, somos conservadores, como toda criatura viva deste planeta, de outro somos obrigados a ser criativos para preencher essas faltas. Quando um jogador cria algo que não estava determinado, não faz mais que ser coerente com sua natureza humana. Reconhecer isso em um jogador é reconhecer sua natureza humana.

Voltemos à reflexão sobre a criticidade e a criatividade, mas, a partir de agora, sob o prisma da pedagogia da rua. Afinal, como a rua nos ensina a ser mais críticos e mais criativos?

A rua é um campo de disputa aberto e, como tal, é repleta de momentos de tensão e discórdia. É livre, mas não isenta de acordos. É auto-organizada e gerida, via de regra, pelas próprias crianças e jovens. No âmbito da rua, cabem a elas, crianças, a organização do jogo, a proposição das regras, as condições para que essas regras sejam cumpridas e a definição acerca do modo como jogarão. Por exemplo, são elas, crianças, que definem se irão atacar ou defender, se irão passar ou driblar, se foi falta ou não, se tal ação ou gesto vale ou não etc.

Os conflitos, diferenças de opiniões, pontos de vista e de repertórios, e a necessidade de tomar suas próprias decisões e resolver os próprios problemas inerentes ao jogo, sem a presença de um adulto, fazem com que os jogadores se tornem mais questionadores e desenvolvam um comportamento crítico. Entretanto, é justamente a “pedagogização” dessa prática, necessária ao “levarmos a rua para o âmbito escolar”, e a atuação dos professores e professoras, que contribuirão, de fato, para que os estudantes se tornem mais críticos e reflexivos.

Ao mesmo tempo, ao se dotarem dessa liberdade, podem criar à vontade, driblar à vontade, ocupar o espaço do jogo como melhor entenderem, imaginar suas jogadas e seus gols e se divertirem enquanto jogam futebol. Por sua vez, as responsabilidades num campo de pelada, ou na rua – as que ainda existem – são muito menores que aquelas atribuídas às crianças e jovens que iniciam sua prática esportiva em escolas de futebol e/ou clubes. Junto com essas responsabilidades, há ainda a censura aos comportamentos criativos realizada por treinadores e professores, fato que, futuramente, revelará atletas mais inseguros, com baixa autoestima e com medo de executar gestos criativos.

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[1] (A dinâmica do inconsciente. C.G. Jung. Petrópolis: Vozes, 1984).