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Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira | Tópico 2.3 – Construir relações

Em retrospectiva, os entrevistados destacaram acentuadamente a capacidade de construir relações como uma competência primordial ao sucesso dos treinadores no futebol profissional brasileiro. Especialmente quando “o calendário não permite que as equipes treinem muito”, torna-se fundamental ao treinador saber “gerir e se relacionar bem com as pessoas, sobretudo ao tratar com os jogadores, membros de comissões técnicas e dirigentes do clube”. Considerando a sua rotina de cooperação com os jogadores e funcionários do clube em um ritmo diário, os treinadores se comprometem ao aspecto humano do treinamento, cuja essência se sustenta em um sistema de interações sociais. A fim de estimular a competência em construir relações, os treinadores podem se atentar à disposição para trabalhar em equipe e aprimorar sua habilidade social

Desde que o treinador esteja disposto a contribuir com a promoção de uma mentalidade coletiva, trabalhar em equipe pode alicerçar o caminho para que o líder técnico intensifique suas ações em “confiar e delegar tarefas”, “valorizando os profissionais que possuem conhecimento científico para ajudar a integrar as áreas de trabalho” e “apoiar o treinador com sua expertise dentro do clube”. 

“O emponderamento dos profissionais na comissão técnica é fundamental para que o ambiente se torne mais tranquilo e produtivo, sem que eles fiquem com receio ou preocupação para seguir aquilo que já estavam fazendo. De forma resumida, tentar trazer esses profissionais para perto dando liberdade, empoderando-os para que eles continuem fazendo o seu trabalho, cada um no seu setor, e devagar ir vivendo o ambiente do clube para fazer com que isso se transfira para dentro do campo. Eu entendo que apesar de hoje o treinador ser um profissional que precise entender um pouco de cada área de funcionamento do clube, de cada setor, ele não vai dar conta se quiser cuidar de tudo. Portanto, empoderar esses profissionais, ter pessoas de confiança, pessoas leais, acho que é a maneira mais correta.” 

Os depoimentos acerca de como o esporte de alto rendimento demanda atenção ao trabalho em equipe reforçam a importância da comunicação interna entre treinadores e profissionais das áreas técnica e médica dentro de um clube de futebol, capturando a natureza híbrida do treinamento esportivo, cujas relações interpessoais devem ser diferenciadas dependendo do fluxo de diálogo e convivência entre os colaboradores da organização. Conforme ressaltado por um dos entrevistados, “hoje em dia há várias funções dentro de um clube e de suas comissões técnicas, por isso o treinador precisa gerir os atletas, as personalidades, os perfis diferentes, que envolve analistas de desempenho, fisioterapeutas, fisiologistas, auxiliares, preparadores físicos, nutricionistas, psicólogos, sendo que todas essas funções interferem em uma decisão”. 

Ao compartilhar o mesmo espaço interdisciplinar e multidimensional que fundamenta o seu processo de treinamento, o treinador também deve buscar alavancar a sua habilidade social de forma harmoniosa, demonstrando empatia, confiança e abertura a “um componente social que ainda não é bem descrito como uma função ao treinador no Brasil”. Simplificando, os treinadores devem se portar como “um gestor de pessoas em um ambiente onde os atletas possuem uma enorme autonomia”, reconfigurando possíveis conflitos a fim de “entender as necessidades dos jogadores, suas preferências e insatisfações”. Realçando como a interconexão entre treinadores e atletas se manifesta a favor da efetividade no processo de treinamento, um dos entrevistados defendeu que “um bom relacionamento faz toda a diferença, como é possível perceber até mesmo por meio de conversas informais com os jogadores”. Coincidentemente, dois profissionais apresentaram uma visão semelhante:

“Hoje é preciso se capacitar, se prestar habilitado, mas não adianta ter o conhecimento sem uma boa capacidade de gerir pessoas, porque para você fazer com que o ambiente esteja propício e favorável a receber os princípios de jogo, conceitos táticos e estratégicos que você deseja, você precisa gerir bem as pessoas, criar uma atmosfera que permita ao grupo absorver aquilo que você deseja. Nós temos vários exemplos de profissionais com bastante conhecimento, mas pela falta dessa gestão de pessoas eles não conseguem reproduzir aquilo que eles poderiam realizar com o conhecimento que têm. E também já vimos outros que não tinham tanto conhecimento, mas que pela capacidade de saber gerir bem o grupo e criar uma boa atmosfera eles tiveram sucesso. Portanto em qualquer situação, circunstância, momento, local, é fundamental você aliar o conhecimento à capacidade de gerir pessoas.” 

“Sendo bem informal, saindo dos livros e vindo à prática, eu divido os treinadores em dois grandes perfis: o treinador que é um bom gestor de pessoas e o treinador que entende muito de futebol. Na minha trajetória dificilmente eu vi treinadores que reuniram essas duas capacidades. Na minha opinião aqueles que se mantêm por muito tempo trabalhando e não somem do mercado são os melhores na gestão de pessoas. Às vezes eles nem entendem tanto de futebol, mas por serem bons gestores de pessoas eles conseguem se manter empregados e o mercado não os descarta tão rápido.”

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Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira | Tópico 2.2 – Adaptar-se ao ambiente

Parte 2 – A complexidade de um treinador no alto rendimento do Brasil

No território brasileiro, os treinadores profissionais também tendem a ser valorizados pela sua competência em adaptar-se ao ambiente. Segundo o que sugerem os entrevistados, “deve haver uma sabedoria para equilibrar e se adaptar”, “entendendo a realidade e as necessidades do clube de modo que seja possível conduzir o trabalho”, caso contrário o treinador pode se ver preso em meras repetições. Conforme defendido por um dos membros de comissões técnicas, “adaptar-se a diferentes cenários é algo inegociável, não necessariamente na competição mas em torno do clube, porque é muito comum encontrarmos treinadores que querem implementar as mesmas ideias, a mesma estratégia e se comportarem do mesmo jeito que fizeram em momentos de sucesso do passado”. Para demonstrar tal competência enquanto se ajustam ao seu respectivo ambiente profissional, duas condições foram identificadas entre as percepções dos entrevistados: compreender a região e compreender o clube

A capacidade para poder compreender a região se baseia nos aspectos socioculturais e geográficos que distinguem o vasto território da República Federativa do Brasil, cuja composição unifica o país em cinco regiões e 27 unidades federativas. Embora apenas uma parcela dos estados tenha representantes nas principais competições de futebol do país, os entrevistados deste estudo fizeram questão de esclarecer que os treinadores devem absorver as diferenças culturais e comportamentais em cada região onde venham a trabalhar, a fim de potencializarem o entendimento regional enquanto se adaptam ao ambiente onde o clube se situa. Afinal, como exemplificou um dos treinadores, “as dimensões continentais influenciam clubes com diferentes culturas no país”. Aliado ao raciocínio, outro entrevistado inclusive notou que eles devem constantemente “mudar segundo a cultura local, porque existem diferenças entre estados que forçam o treinador a saber lidar com distintos cenários”. Em face a tal diversidade regional no mesmo território, as experiências vividas pelos treinadores inevitavelmente tendem a variar: 

“Existe uma grande diferença comportamental entre uma região e outra e você tem que adequar o seu perfil a cada região em que for trabalhar. Um dos principais pontos que o treinador precisa apresentar para ter êxito no Brasil é o sentimento de que em cada região você deve trabalhar de uma forma diferente. Não me refiro só às relações com as pessoas, mas às características da região. Por exemplo, no Centro-Oeste você tem temperaturas muito altas ao longo do ano, inclusive com queimadas, poluição, fumaça. Os jogadores têm uma desidratação absurda, desgastando muito o aspecto físico. Você precisa ter uma sensibilidade muito grande não só na relação com o atleta pelo desgaste que ele tem, que traz uma queda de rendimento, mas principalmente na organização das cargas de treino, porque se você treinar muito o jogador vai chegar cansado para jogar. Por outro lado, já no Norte do país eu tive que ser flexível e mexer na estrutura do time devido às condições dos gramados onde nós jogávamos, mudando a minha visão e o meu modelo de jogo. Somente para pontuar exemplos de como cada local tem a sua peculiaridade.” 

Ainda de acordo com as percepções dos profissionais, os treinadores também devem fomentar, concomitantemente, a sua capacidade em poder compreender o clube, uma competência que estende o convite a “detectar a verdadeira identidade dentro do clube, assimilando a sua realidade”. Conscientes sobre a influência de aspectos internos e que são inerentes ao clube na condição de uma organização ampla, porém local, os treinadores devem buscar diagnosticar o clube onde trabalham a fim de se comportarem em consonância com a cultura organizacional identificada pelas pessoas já empregadas na instituição. Uma vez que o processo de treinamento se incorpora ao ambiente do clube, torna-se determinante “entender onde você está chegando, onde você vai trabalhar e como você se relaciona com as pessoas”, além de “tentar reunir o máximo de informações possíveis sobre o que o clube oferece, quem são as pessoas envolvidas e o que já está em funcionamento”. Tal reflexão em caráter antecipado convida os treinadores a demonstrarem maior flexibilidade profissional, ilustrando como o alto rendimento do futebol brasileiro requer um cuidadoso ajuste de atitudes, ideias e decisões dependendo de cada ambiente de trabalho em que a profissão do líder técnico é exercida. 

“Por mais que você tenha conteúdo e metodologia de treino, quando você é contratado no meio de um campeonato, qual é o método ou ideia de jogo que você consegue aplicar? É isso o que vai fazer a diferença? Ou é o seu processo de adaptabilidade em estar bem preparado para compensar e colocar as coisas mais simples e rápidas para que você reequilibre e dê resultado em curto prazo? Muitos profissionais têm conteúdo, mas sem nem conhecer os jogadores, as características, saber se os salários estão atrasados, o que está acontecendo no clube, se tem comida, não adianta entrar achando que é um mágico e vai resolver tudo porque tem bom conteúdo ou desenha um bom treino no papel. Não vai, não adianta. O treinador tem que estar aberto à adaptação ao processo. Se adaptar o mais rápido possível ao momento, à situação, às características dos jogadores. Depois, aos poucos, ele consegue inserir as suas ideias, a sua metodologia. É um processo de adaptabilidade para que se ganhe tempo sendo simples, direto, objetivo, se adaptando rápido ao clube. Não o contrário, esperando que o clube se adapte à sua ideia. Você não chega para curar a doença, apenas para dar um remédio. Portanto, simplicidade, objetividade e adaptação.” 

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O futebol e a física quântica, ou de como o Brasil pode ter sido derrotado pelo bater das asas de uma borboleta.

Texto: Valter Bracht, Mestre em Ciência do Movimento Humano e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

É bastante curioso, para dizer o mínimo, como após um determinado resultado de uma partida de futebol, milhões de analistas buscam argumentos e explicações para o sucesso ou o insucesso de determinada equipe, ou seja, buscam explicações para o resultado. Explicar o resultado significa identificar as causas que o determinaram. Na modernidade, as causas, diferentemente do pensamento mítico-religioso, são buscadas não em forças externas ao mundo concreto, ou seja, o mundo tem um funcionamento intrinsecamente lógico-racional. Assim, também o sucesso ou o insucesso num campeonato pode ser explicado buscando as causas dos mesmos. Poucos são os analistas que não partem (diga-se de passagem, na maioria das vezes de forma implícita) desses pressupostos. Um exemplo é Tostão, que tem falado em suas crônicas sobre o inexplicável e o imponderável presente no futebol, constituindo-se em exceção.

É também muito curioso ou mesmo paradoxal que sempre estejamos tentando “eliminar” a imprevisibilidade do (nosso) resultado em uma atividade cuja atração ou tensão prazerosa provém exatamente da sua imprevisibilidade. Como sabemos, essa é uma das características centrais do fenômeno do jogo. O que observamos, é um comportamento quase esquizofrênico ou ambíguo: me divirto com a tensão da imprevisibilidade do resultado, mas envido todos os esforços (racionais) para garantir um determinado resultado.

Olhando “de fora” o comportamento do torcedor de futebol é algo grotesco porque fica oscilando entre o apelo a todos os santos e divindades e ao mesmo tempo buscando causas/culpados. Aliás, ouve atentamente e julga os comentários dos “especialistas” e confere às causas identificadas por esses (e por suas próprias análises) credibilidade sem jamais, no entanto, atribuir à “forças ocultas” o resultado (apesar de, em caso de sucesso, agradecer aos “céus”). Embora possa parecer grotesco, esse comportamento também pode ser lido como uma espécie de resistência (não conscientemente assumida) à total racionalização do mundo vivido (mas esse é outro tema!).

Apesar de ambíguo, o nosso comportamento em relação à prática do futebol, ou de forma mais geral, em relação aos esportes competitivos (particularmente os de alto-rendimento) vem sofrendo cada vez mais a influência do afã racionalista moderno… mas… o acaso e o “sobrenatural” resistem!

Ao refletir sobre isso lembrei de um texto (talvez pouco conhecido ou citado) do filósofo brasileiro (falecido em 2002) Gerd Bornheim, intitulado “Racionalidade e acaso”.[1] Encontrei nele uma interessante análise do percurso da racionalidade no mundo moderno no seu afã de domar o acaso. Passo a resenhar suas reflexões.

Para o autor, já o pensamento filosófico inaugurado na Grécia antiga pretendia vencer a sujeição ao acaso, procurando estabelecer um comércio racional do homem com o seu meio-ambiente. Vale dizer, estabelecer uma relação de dominação para com a natureza. Esse passo, do acaso para a racionalidade, foi decisivo para a história do homem. O homem transforma o próprio planeta em objeto. A crítica que se fez a essa perspectiva não conseguiu prejudicar a crença na razão e seu sucesso fez surgir a ideia de que o todo da sociedade deveria ser reestruturado em conformidade com preceitos estritamente racionais. Para este pensamento a realidade é sistemática, ou seja, um composto de partes racionais.

Mas, “mil cabeças” se erguem contra a hegemonia do racional, seja pelo voluntarismo, ou pela vivência irracional, ou pelo inconsciente, ou pela história voltada ao particular, ou pela atenção ao homem enquanto singular concreto etc. No entanto, o “sistema” continuou exibindo uma impressionante força, em grande medida por causa da aliança entre o conhecimento e o poder: o sistema, que, lembremos, possui estrutura racional, tornou-se como que coextensivo à própria realidade social.

Nesse processo parece que o acaso simplesmente desaparece e não se percebe um lugar para ele. Ou sim? Mas onde? Para o autor no cerne do próprio sucesso do sistema volta a aparecer no século 20 a figura desconcertante do acaso impondo certo revés ao racionalismo, surgindo algo como uma “aurora do acaso” (p. 47). Cita a ironia de Pascal, que pergunta se a história não teria sido diferente se o “nariz de Cleópatra fosse mais curto”.

Várias foram as tentativas então de acomodar ou contemplar o acaso ainda ao pensamento racional, interpretando-o como algo que lhe escapa, ou seja, uma determinação às avessas. São explicações do acaso que não vão além de uma situação-limite da realidade de forma que “ainda” não é possível uma explicação racional.

Mas, também busca-se considerar “positivamente”, se assim podemos dizer, o acaso em algumas atividades humanas, ou, como diz o autor, tornar presente o acaso numa certa conjugação da previsibilidade com a imprevisibilidade, uma ambiguidade que está presente, por exemplo, no futebol. Vale aqui uma longa citação:

“…Um jogo é armado de maneira a garantir a máxima previsibilidade possível, sempre de olho firme nos resultados, e, em boa medida, de fato os sucessos são previsíveis. O técnico é um especialista que calcula todas as forças e os melhores efeitos. O corpo do atleta e suas resistências podem ser medidas, o tipo de talento ou aptidão de cada um deixa-se conduzir em função de estratégias calculáveis, os grupos também são organizados segundo táticas precisas, e por aí afora. Tudo se passa, portanto, como se o grau de racionalidade compatível com a organização de uma partida de futebol pudesse atingir um nível considerável – todo o afinco dos técnicos regula-se justamente por tal ideia. Essa racionalidade fortalece-se ainda mais dada a existência de regras convencionais, que devem ser obedecidas por todos. Na primeira metade do século, Brecht percebeu com muita argúcia uma certa dualidade que invade os espectadores de uma partida de boxe, o grande esporte de massa da época. O dramaturgo de Na selva das cidades chama a atenção para essa estranha espécie de contradição que determina o comportamento do espectador: de um lado, uma irracionalidade que chega à beira de um certo histerismo, e, de outro, a perfeita atenção ao cumprimento das regras do jogo, acusando a presença de um espírito crítico que não adormece jamais. Um espetáculo esportivo obedece, portanto, a diversas e exigentes formas de racionalidade. Contudo, parece que a própria vida do jogo decorre da exploração dos acasos, do imprevisível, a racionalidade tropeça em ardis que configuram precisamente as virtudes do acaso: nada mais enfadonho do que um jogo restrito a artifícios racionais.” (p. 48-9 – grifos meus)

Nos últimos anos acentuou-se no âmbito do futebol um processo que poderíamos chamar de “cientifização”, esforço destinado a “garantir um determinado resultado”, o que equivaleria a domar (ou eliminar) completamente o acaso. Para tanto, as equipes responsáveis pelo treinamento e performance dos times incluem cada vez mais profissionais de diferentes disciplinas: psicólogos, nutricionistas, fisiologistas, estatísticos etc. Aliás, as estatísticas talvez sejam a mais evidente tentativa de orientar “racionalmente” as decisões dos técnicos e também de identificar as “causas” dos resultados. Um dos primeiros comentaristas de futebol a se valer e dar ênfase às estatísticas foi o gaúcho Rui Carlos Osterman (Rádios Guaíba e Gaúcha), hoje seguido por Paulo Vinícius Coelho com sua “prancheta do PVC”. No último campeonato mundial, vimos na própria transmissão da FIFA novas estatísticas, como o tempo médio de recuperação da bola de uma equipe. Uma exceção é quando se fala e se considera o talento. Diz-se que o talento resolve onde a técnica comum e a tática não resolvem, mas quando isso não ocorre o diagnóstico é: não conseguiu mostrar o seu talento… e aí buscam-se novamente razões.

Mas além do futebol, o nosso autor também cita o exemplo de algumas ciências (física, biologia), como da psicanálise, da literatura e mais amplamente da filosofia. Embora todas sejam interessantes e importantes, destaco aqui particularmente o caso da física contemporânea.

A física clássica foi o grande modelo da ciência moderna com seu rigor e seu determinismo racionalista onde o acaso não possuía lugar. Mas, a famosa frase de Einstein, “Deus não joga dados”, com a qual se contrapunha aos colegas que falavam em “indeterminação”, talvez seja o último eco da física clássica. Para a física quântica no plano do infinitamente pequeno e do infinitamente grande o acaso passou a adquirir uma dimensão cósmica.

Por um bom tempo acompanhei as reflexões de um físico quântico que foi aluno de Werner Heisenberg (considerado um dos pais da física quântica) chamado Hans-Peter Dürr (falecido em 2014), particularmente suas palestras. Uma das mais famosas era intitulada Wir erleben mehr als wir begreifen (Nós vivenciamos mais do que apreendemos). Ele fazia um esforço de “traduzir” conceitos importantes da física quântica para nós os leigos e também discutia suas consequências para nossa cosmovisão e mesmo nossa forma de compreender e estar no mundo.

Pois bem, em suas palestras costumava usar como ilustração um pêndulo (pode ser encontrado na internet no Youtube – Hans-Peter Dürr Pendel). Ele colocava o pêndulo na posição vertical, mas invertida (o peso para cima) e buscava colocá-lo exatamente no eixo vertical. Perguntava, então, se era possível saber para qual dos lados que ele iria cair? Em princípio, se o colocássemos exatamente na vertical ele hesitaria um pouco, mas, por alguma influência ambiental ele acabaria se movendo para um dos lados. Bem, mas se incluíssemos no cálculo todos os fatores ambientais e os controlássemos (por exemplo, o vento, o calor dos corpos circundantes e todas as forças infinitamente pequenas) seria possível prever seu comportamento? Teríamos que incluir no cálculo todo o “cosmos”, já que, em última instância, o bater das asas de uma borboleta no outro lado do mundo poderia determinar para que lado o pêndulo iria cair. A conclusão do físico é a de que sistemas instáveis são extremamente sensíveis e que se considerarmos o cosmos como algo vivo, o pêndulo parece dizer em determinado momento “eu sou livre”.[2]

A diferença de performance entre duas equipes permite, dentro de determinados limites, “prever” o resultado, mas o imponderável, o acaso está sempre à espreita – vide o sucesso da “loteria esportiva”. Ora, um sistema instável, como lembra nosso físico, é extremamente sensível. Se a capacidade de performance é muito desigual isso permite certo nível de previsão para qual lado o “pêndulo” vai tender, mas… um lance fortuito pode tornar o sistema novamente muito instável; a possibilidade disso acontecer nos mantém excitados – nada mais chato do que saber o resultado de um jogo que vou assistir em vídeo-tape. Quanto mais equilibradas as performances mais imprevisível e mais susceptível ao acaso será o resultado.

Quando o Brasil sofreu um gol quase no final do jogo contra a Croácia no último mundial, decisivo para sua derrota, novamente os analistas começaram a buscar as razões ou causas daquela derrota: decisões equivocadas do técnico, dos jogadores, problemas táticos, a convocação equivocada do Daniel Alves etc. (um analista chegou a fazer uma lista: dez razões que explicam porque o Brasil foi derrotado pela Croácia). Voltando às estatísticas: nesse jogo todas as estatísticas eram favoráveis ao time brasileiro, mas parece que elas foram derrotadas pelo acaso.

Mas, se observarmos o gol da Croácia veremos que o chute do atacante vai na direção do jogador Marquinhos, resvala nele e muda sua trajetória e com isso dificulta a defesa do goleiro brasileiro. Se considerarmos essa cena, podemos dizer que temos aí um exemplo de um sistema muito instável e extremamente sensível. Basta lembrar quantos chutes endereçados ao gol durante os jogos da Copa desviaram em defensores e ao invés de adentraram ao gol saíram pela linha de fundo. O que determinou que o desvio da bola, no caso do gol croata, tivesse o destino que teve e não outro? A contingência, o acaso ou o bater de asas de uma borboleta do outro lado do mundo? Quem sabe?


[1] BORNHEIM, Gerd. Racionalidade e acaso. In: NOVAES, A. (Org.). Rede imaginária: televisão e democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

[2] Ele depois complexifica a análise ao interligar vários pêndulos que ele vai chamar de pêndulo-caos. Lembro aqui novamente de Borheim que fazendo referência a Nietzsche, diz que “o caos é como a acumulação do acaso” (p. 52)

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O futebol feminino é estratégico?

Sim. Quero responder essa pergunta com um longo e sonoro simmm…. Mas por quê?

Pelo lado das oportunidades: crescimento exponencial de novos expectadores, novos consumidores, patrocinadores, oportunidade de expansão das marcas de clubes fortes ou fortalecimento e visibilidade de clubes que não são tão expressivos no cenário nacional. Incremento de vendas de diversos setores como, por exemplo, o de artigos esportivos.

Além disso, o futebol feminino é estratégico pois significa responsabilidade social, diversidade e inclusão tanto para clubes quanto para marcas que investem na modalidade e na formação das atletas. A modalidade tem um número crescente de competições nacionais e internacionais, com um aumento explosivo de audiência e visibilidade das marcas. O futebol feminino ainda leva nossa marca Brasil para diversas competições, incluindo Olimpíada e Copa do Mundo.

Mas o futebol feminino também é estratégico pelo lado dos riscos… Explico-me. Que tal ver seu time do coração tomando uma goleada de um time rival ou de um time de “camisa menor”? Que tal essa goleada ser assistida por milhares de expectadores e, cada vez mais, sendo transmitida pela TV e principais canais de streaming? Que tal continuar deixando o time de futebol feminino treinar em “qualquer lugar” e com “qualquer suporte” e depois disputar os jogos com a camisa oficial do clube? Que tal todos os riscos de simplesmente delegar para um gestor desqualificado a responsabilidade de juntar um número de atletas sem estrutura adequada, sem apoio e sem investimento na formação técnica e humana das atletas para simplesmente cumprir os regulamentos? E, depois, como arcar com todas as consequências civis, de reputação e perdas financeiras?

Fazendo um resgate histórico, de esporte proibido para mulheres até a visão estratégica da FIFA ao regulamentar o futebol feminino por reconhecer sua importância para a continuidade do crescimento do futebol, foram muitas lutas. A modalidade foi regulamentada no mundo e também no Brasil com esta visão de inúmeras oportunidades que podem ser ilustradas, por exemplo, pelo público recorde de mais de 1 bilhão de telespectadores que assistiram à Copa do Mundo feminina da França em 2019.

Além disso, a FIFA criou, em 2018, a Estratégia Global para desenvolvimento do futebol feminino baseada em cinco pilares: desenvolver e crescer dentro e fora do campo, melhorar as competições, comunicar e comercializar, igualdade de gênero em papéis de liderança e educar e empoderar.

E você? Com tantos resultados sociais, econômicos e culturais em curso e com o crescente engajamento de diversos stakeholders para o impulsionamento da modalidade e da agenda EESG (Economic, Environment, Social and Governance), que tal assumir uma estratégia mais robusta e consistente para o futebol feminino?

Texto por: Heloisa Rios

Imagem: Sam Robles/CBF

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Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira. | Parte 2 – A complexidade de um treinador no alto rendimento do Brasil

Parte 2 – A complexidade de um treinador no alto rendimento do Brasil

A imagem a seguir oferece uma representação visual sobre o sistema de competências voltado ao trabalho dos treinadores profissionais no alto rendimento do futebol do Brasil. Embora a ilustração forneça ao mesmo tempo uma visão geral e detalhada das principais competências junto às suas respectivas habilidades necessárias à valorização do treinador no futebol brasileiro, ela expõe prioritariamente a complexa realidade vivida pelos treinadores profissionais que transitam pelo território nacional. 

Para capturar a essência do seu trabalho, a representação visual foi desenhada no formato de uma complexa roda cuja engrenagem apresenta encaixes e lacunas a fim de defender a natureza recursiva, construtiva e dinâmica na prática da profissão. Enquanto as conexões retratam a constante interação que existe no trabalho do treinador, os espaços em branco representam as inevitáveis lacunas e desencontros que também compõem o fluxo de trabalho diário, afinal todo e qualquer observador que não participa diretamente do processo de treinamento esportivo tende a sofrer limitações em como percebe a atuação do treinador. 

Fundamentalmente, a ideia prioritária ao se visualizar a roda de competências diz respeito a uma engrenagem em movimento, cujos componentes não podem e nem devem ser arbitrariamente distinguidos em relação a sua ordem de importância, posição ou peso. Portanto, um treinador competente está sempre em movimento no alto rendimento do futebol profissional. Ele busca fortalecer suas qualificações, equilibrar suas oportunidades de aprimoramento e suprir suas deficiências com os recursos ao seu alcance no contexto onde trabalha. Ainda assim, o círculo externo simboliza como os resultados dos jogos em janelas de curto prazo mantêm a roda girando independente da eventual ausência de qualquer competência entre os componentes da engrenagem interna. Ou seja, a entrega de resultados positivos é o que possibilita o movimento dos treinadores no Brasil. 

A fim de replicar os testemunhos dos próprios entrevistados, o texto apresenta uma série de palavras e frases entre “aspas” que destacam as informações devidamente associadas ao processo de análise do conteúdo qualitativo neste estudo acadêmico. Ademais, citações individuais com maior aprofundamento também foram utilizadas para enaltecer em detalhes algumas das experiências dos profissionais. Conforme antecipado na PARTE 1, vale lembrar que o anonimato dos entrevistados e suas menções específicas sobre clubes e pessoas permaneceram confidenciais. 

1. DEFINIR VISÃO E ESTRATÉGIA 

Reconhecida como uma competência que norteia o processo de treinamento, a capacidade em definir visão e estratégia não apenas possibilita ao treinador ter condições “para implementar suas ideias de jogo e persuadir os atletas a confiarem nele”, como também fortalece suas habilidades de liderança e gestão “fora do campo”. Conforme destacado pelos membros de comissões técnicas, “além de treinar a equipe, o treinador precisa ser um bom gestor”, porém “muitos treinadores decidem o que será treinado ou feito de acordo com o ambiente do dia, sem planejar e organizar o trabalho com projeções de jogos e um calendário que possa se refletir diretamente na comissão com antecedência”. De certo modo, essa competência mostra como os treinadores devem se atentar a macrocomponentes para guiar o seu trabalho com liderança, gestão e estratégia no alto rendimento. Abrangendo os argumentos mais recorrentes dos entrevistados, definir visão e estratégia se relaciona a saber planejar e também gerir o tempo

Visto que os treinadores se encontram intrinsicamente dedicados a um processo de treinamento construtivo e recursivo, os profissionais que operam no alto rendimento devem saber planejar o seu trabalho de uma maneira profissional e estratégica. Sobretudo pela ausência de dirigentes profissionais no planejamento e na supervisão do processo de aprimoramento esportivo no Brasil, os treinadores devem se posicionar como as figuras de liderança em seus respectivos clubes. Para atender as demandas que surgem dentro e fora do campo ao longo da temporada, eles devem se esforçar para planejar, antecipar e organizar estrategicamente a carga de trabalho junto à equipe multidisciplinar que integra o clube onde estão empregados. Um dos entrevistados detalhou o raciocínio que os treinadores devem levar em consideração no alto rendimento: 

“O treinador precisa ter planejamento. Não dá para você chegar hoje em dia sem sentar para saber quantas competições vai disputar, quantos dias estão disponíveis para se preparar em cada competição, quando elas terminam, quais são os prazos para entender o que é possível e o que deve ser feito. Você pode chegar e colocar o jogador para treinar, mas qual é o seu objetivo? Com quais objetivos você está fazendo aqueles treinamentos? Tudo é subsequente, tudo é planejamento. Então, diariamente e a cada semana você vai confirmando o trabalho, o volume, a intensidade, as distâncias, as individualidades. Isso entra no planejamento do treinador. Ele não pode chegar e aleatoriamente apontar os treinos técnicos ou táticos. Onde você quer chegar? Ele planeja os exercícios com os objetivos do trabalho. Tem que saber e realmente ter o planejamento. Qual o tempo de recuperação entre uma carga e outra? Se você planeja, você sabe o produto final do treino. Não dá para entrar hoje e aplicar treinos soltos, pois a probabilidade de errar é muito grande. Se começou errado, esse erro vai vir à tona em qualquer momento.” 

Os profissionais entrevistados também enfatizaram que gerir o tempo se caracteriza como uma competência que possibilita suportar a frequente congestão de jogos do futebol brasileiro, exigindo dos treinadores uma capacidade em saber abordar o desgastante fluxo de trabalho com questões logísticas que afetam jogadores e comissões técnicas. Particularmente entre os clubes do Brasil, ao conseguir administrar o tempo, os treinadores podem se aproximar dos objetivos organizacionais enquanto trabalham com e entre os indivíduos que compõem a equipe multidisciplinar. Cientes de que se encontram constantemente confinados pela “falta de tempo para treinar e recuperar jogadores” durante a temporada, os treinadores de futebol no Brasil devem ser competentes para influenciar o rendimento esportivo de suas equipes utilizando habilidades estratégicas na gestão, monitoramento e respostas às restrições do calendário competitivo. Ao contrário do que o pensamento convencional deseja encontrar em um cenário de treinamento estruturado e progressivo, dois dos entrevistados explicaram como a congestão de jogos no calendário anual se manifesta contra o desenvolvimento dos treinadores que operam no país: 

“O processo é muito abrangente, muito importante, só que a gente não consegue treinar. A gente não tem tempo para treinar. Você se organiza dentro de vídeos num processo mais didático de fala, de conversa. O calendário é cheio de maratonas loucas de jogos seguidos. Você acaba sendo um recuperador de atletas e um gerenciador de vaidades. Nós vamos a cada jogo. O treinador tem que ser um mágico, gerenciar a vaidade, tentar passar os seus conceitos e o seu entendimento do jogo de uma maneira muito rápida, porque não há tempo. Você consegue dar alguns estímulos, a gente tenta recuperar o atleta, trabalha com quem pode e não pode treinar, com quem está ou não jogando.” 

“Atletas não são máquinas. Eles não conseguem ter intensidade jogando cinco, seis jogos sem tempo de descanso. A recuperação emocional e neurológica é mais demorada do que a física. O atleta pode até se recuperar do ponto de vista muscular, mas não de um estresse emocional. Até eu como treinador percebo que a minha mente foge da beira do campo com a sequência de jogos, passando do sexto, sétimo jogo toda quarta e domingo. Um calendário mal construído impacta em tudo, inclusive no trabalho e no desenvolvimento do treinador. Se eu não consigo treinar fica mais prático eu aplicar um jogo pragmático porque eu não sou mais treinador, eu sou um ‘gerente de qualidades’.” 

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Ofício: Treinador. Competências da profissão na realidade brasileira. | Parte 1

PARTE 01 | A essência do trabalho de um treinador de futebol

A profissão de treinador apresenta um impacto significativo na melhoria do desempenho esportivo em diferentes níveis de atuação, partindo desde a orientação pedagógica em práticas recreativas na iniciação, seguindo às etapas de formação e desenvolvimento de atletas, e evoluindo até se atingir o alto rendimento de uma modalidade. Transcendendo resultados em jogos ou eventos, bem como conquistas em torneios ou campeonatos, o treinamento esportivo representa uma atividade social dinâmica que engaja vigorosamente treinadores e atletas. Ao nutrirem um relacionamento mútuo, enquanto os atletas tendem a aprender com o comportamento de seus respectivos treinadores, os próprios treinadores também expandem o seu aprendizado de acordo com as respostas de seus atletas em uma série de interações graduais, cíclicas e não-lineares. Trata-se de um processo de reciprocidade entre ensino e aprendizagem. 

A fim de desenvolver as competências relevantes para a sua profissão, os treinadores esportivos podem participar de programas de educação formal, buscar oportunidades de mentoria com profissionais mais experientes, ou até mesmo se beneficiarem de vivências práticas individuais caso tenham tido uma carreira como atleta na modalidade. Independentemente do seu estilo de liderança, os treinadores esportivos fomentam um processo de planejamento, implementação e reflexão sobre as suas sessões de treinamento, visando aprimorar o rendimento atlético e atingir objetivos coletivos dentro e fora da atividade. 

Especificamente no futebol, entretanto, considerando que os treinadores profissionais conduzem as suas funções e responsabilidades em um ambiente de constantes alterações, o seu trabalho inevitavelmente sofre com a urgência de expectativas por vitórias e rendimento convincente em curto prazo, cuja origem se sustenta na desordem proliferada entre os agentes que rodeiam o esporte. Como consequência direta dessa realidade no cenário nacional, por exemplo, a duração média de um treinador de futebol de elite no cargo já foi constatada em 65 dias durante o Brasileirão, restringindo o potencial do seu trabalho a pouco mais de dois meses (mesmo sabendo que no futebol apenas uma equipe termina a competição como campeã ao final da temporada). Tal contradição à importância prática do aprimoramento esportivo em uma modalidade coletiva de alto rendimento ilustra, possivelmente, um desencontro entre a preparação dos treinadores e as reais competências necessárias ao seu trabalho no alto nível brasileiro. Afinal, experiências educacionais simplistas e funcionalistas contribuem para a geração de concepções românticas e irrealistas da atividade

No território brasileiro, o órgão responsável por governar, organizar e administrar a modalidade atende pelo nome de Confederação Brasileira de Futebol, popularmente reconhecida pelo acrônimo CBF. Como parte de suas iniciativas domésticas, a instituição lançou a sua própria unidade educacional em 2016, intitulada CBF Academy. Originalmente voltada a estruturar o currículo educacional aos treinadores de futebol do país, a CBF Academy arquitetou quatro licenças de treinamento com um volume total de 1000 horas de educação formal aos treinadores que estudam e operam no Brasil. Tais licenças referem-se a níveis de certificação que possibilitam aos treinadores trabalharem com programas de iniciação esportiva junto a crianças e adolescentes (Licença C), em categorias de base (Licença B), evoluindo progressivamente aos níveis profissionais da modalidade (Licenças A e Pro). Contudo, segundo um estudo acadêmico que contemplou 30 confederações esportivas do Brasil, incluindo a CBF, a formatação de programas educacionais a treinadores esportivos no país segue uma abordagem determinada por quem supervisiona as operações de cima para baixo (uma ação conhecida em inglês como top-down). Para expandir os formatos técnico-metodológicos e enriquecer um ambiente de aprendizagem colaborativo, o contexto real das experiências em torno da atividade e o rendimento esportivo vivenciado pelos treinadores devem ser levados em consideração na prática educativa dos profissionais.

Segundo a orientação do Conselho Internacional ao Treinador de Excelência (ICCE), a dinâmica de trabalho de um treinador esportivo deve respeitar o seu contexto social e organizacional, estimulando as suas competências de modo a possibilitar um melhor entendimento, interação e relacionamento com o seu respectivo ambiente. Logo, tomando como referência o direcionamento do ICCE, o objetivo do estudo voltou-se a mapear as competências que são percebidas como mais importantes ao trabalho dos treinadores de futebol profissional que atuam no contexto brasileiro. Ao constatar a necessidade de uma compreensão realista acerca do trabalho de um treinador de futebol no território nacional, o estudo em questão buscou capturar as experiências mais recorrentes no país de forma assertiva, beneficiando-se de depoimentos provenientes de 59 profissionais com alta credibilidade no Brasil. 

Visão geral dos 59 profissionais que participaram deste estudo (em ordem de idade na data das entrevistas) 

Os entrevistados envolvidos neste estudo contemplam 29 treinadores e 30 membros de comissões técnicas (7 auxiliares técnicos, 5 treinadores de goleiros, 10 preparadores físicos, 5 fisioterapeutas, 2 fisiologistas e 1 médico), que foram entrevistados no período de 14 de Janeiro a 16 de Abril de 2021. Conjuntamente, os treinadores em questão acumularam 3458 partidas oficiais na Série A do Brasileirão entre as temporadas de 2003 a 2020, que corresponde a 47,6% de todos os 7266 jogos nesse período de 18 anos. Considerando a relevância das comissões técnicas ao desempenho de um treinador, profissionais de diferentes funções foram convidados a participar do estudo devido ao seu envolvimento diário ao lado dos treinadores na prática. De um modo geral, os seus depoimentos fortaleceram uma exploração mais sistemática, visto que as suas experiências complementam a percepção das atitudes e do ambiente onde os treinadores operam. Para assimilar uma amostra abrangente ao território nacional, um esforço particular na confecção deste estudo se concentrou em convidar profissionais de origens distintas, priorizando o seu nível de conhecimento e buscando equilibrar o volume de jogos oficiais que cada treinador já tinha acumulado enquanto fora empregado durante a Série A. O único critério específico para participação no estudo correspondeu a comprovar se cada profissional já havia assumido o seu respectivo cargo em uma comissão técnica efetiva pelo menos uma vez durante o Brasileirão desde 2003. 

Respeitando a natureza do estudo, bem como agindo de forma responsável para garantir que todos os profissionais entrevistados permaneçam anônimos e os seus respectivos depoimentos se mantenham igualmente confidenciais frente ao julgamento público, considerações éticas representam um aspecto primordial para sustentar esta investigação acadêmica. Portanto, além dos procedimentos metodológicos que foram rigidamente respeitados ao analisar, formatar e publicar o conteúdo científico original junto à comunidade acadêmica internacional nos âmbitos de gestão e ciências do esporte, esta versão adaptada em português acentua a prioridade dos autores em não expor nomes de pessoas ou instituições esportivas ao longo do texto. 

Em suma, os entrevistados foram questionados a respeito das principais competências necessárias à condição de treinador profissional no futebol de alto rendimento do Brasil, compartilhando suas experiências profissionais e oferecendo exemplos práticos de acordo com as suas respectivas origens. As questões levantadas foram: Quais competências um treinador efetivamente precisa apresentar para ser bem-sucedido no Brasil? O que um treinador profissional deve fazer para ser valorizado em seu trabalho no país? Como um treinador consegue permanecer no comando técnico de sua equipe por mais tempo? 

Contemplando a realidade do contexto brasileiro, este estudo qualitativo responde exatamente a seguinte pergunta: 

Na profissão de treinador, quais competências são esperadas e valorizadas no alto nível do futebol brasileiro? 

A PARTE 2 vai ilustrar e detalhar a complexidade que envolve o ofício no âmbito profissional, apresentando os depoimentos que sustentam as principais competências necessárias ao treinador de futebol no alto rendimento do Brasil. 

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No futebol é assim…

“Fazer o quê? No futebol é assim…”. Ouço essa frase com uma recorrência tão incômoda como surpreendente. Ela surge, por exemplo, quando defendo a gestão sistêmica deste esporte (política, técnica e administrativa) e a essencialidade de estratégia, inovação, capacitação e governança. Nessas ocasiões, faço minhas críticas ao que se pode chamar de “modelo” vigente, teço alguns comentários, exponho sugestões de mudanças e, invariavelmente, lá vem alguém com a dita cuja: “Não dá para mudar. Não dá para fazer de outro jeito. Fazer o quê? No futebol, é assim…”

O problema é que esse tipo de observação, além de expressar um conformismo inadmissível nos dias correntes, impede o crescimento e a evolução da indústria do futebol que disputa recursos e atenção em um universo muito maior que é do entretenimento. Na verdade, a gestão do futebol no Brasil é um ser errante, e muitas vezes perdida fora do gramado. É como se, há tempos, ela tivesse cometido um pênalti, colocado a bola debaixo do braço e, simplesmente, abandonado o campo. Resolveu não aceitar a marcação do juiz e foi embora.

Infelizmente hoje, a grande maioria dos clubes brasileiros responderia que o único objetivo do clube é: “ser campeão”. Mas será que é só isso? Será que se pode resumir uma estrutura tão fabulosa a um único alvo? Além do mais, considere que cada torneio tem somente um campeão. Isso significa que todos os outros participantes da disputa estão fadados ao fracasso em uma temporada – ou mesmo, a um tipo de “sucesso” parcial ou provisório? Não parece haver grande miopia nesse tipo de abordagem, principalmente em se tratando do mundo do entretenimento cujo espaço virtual rompe de forma formidável os limites de um estádio de futebol?

Vale destacar que os últimos anos tem sido de grande evolução nesta profissionalização, mas ainda há muito a ser feito. Do que vimos como uma das barreiras para a aceleração, é a aparente contradição entre uma gestão profissional e a velha tradição dos “administradores”, sempre voluntariosos e apaixonados por seus clubes. Em muitas discussões, esses dois grupos são colocados em campos opostos da disputa, como se fossem adversários.

Ela embute a noção segundo à qual somente o velho modelo de “comando” (não se pode empregar aqui o termo “gestão”) estaria ligado à tradição e ao amor verdadeiro ao time. O olhar profissional, segundo essa perspectiva, seria uma espécie de cemitério de emoções. Ora, basta observar os gramados europeus – e tudo que os cerca, tanto em termos físicos como virtuais – para se constatar o absurdo dessa abordagem.

A realidade mostra o oposto. É a capacidade gerencial dos times globais, de diversos portes, aliada a uma visão estratégica pertinente e a uma gestão efetiva, que faz aumentar a emoção dos torcedores e a afeição que sentem por seus clubes. Não há contradição entre eficácia e emoção. O contrário, sim, é verdadeiro. Esse é o ponto em questão. No mais, é enorme erro considerarmos todos os dirigentes e estatutários com as lentes do passado. Há estatutários que são profissionais e empresários muito competentes e experientes que, com boa governança, podem fazer muito pela transformação e profissionalização do futebol brasileiro.

Portanto, nunca fale que “não dá para fazer de outro jeito; porque no futebol é assim”. Diga sempre: “No futebol, era assim…” Quer começar? Invista na capacitação de seus profissionais e crie uma estratégia que defina claramente seus diferenciais competitivos.

Texto por: Heloisa Rios

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O fim da era Tite: É possível falarmos em legado?

Texto: Rafael Castellani e Lucas Alecrim. Não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Dia 16 de janeiro de 2023, seis anos após o início de trabalho no cargo de treinador da seleção brasileira masculina de futebol, Adenor Leonardo Bachhi, ou Tite, como conhecido no mundo do futebol, finalizou seu contrato com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Neste interim, foram 81 partidas realizadas pela seleção brasileira sob seu comando, nas quais obteve 60 vitórias, 15 empates e somente 6 derrotas. Estatisticamente falando, Tite obteve no decorrer destes 6 anos, 80% (aproximadamente) de aproveitamento dos pontos disputados. 

No entanto, ainda que os números e as estatísticas nos digam muito sobre o desempenho no futebol, eles, por si só, não explicam tudo, tampouco dão conta de analisar qualitativamente esse desempenho. Se as ciências exatas nos permitem conhecer inúmeras variáveis relacionadas ao jogo e prever com determinado índice de confiabilidade determinados acontecimentos, há uma característica fortemente marcante no futebol que os números não são capazes de mensurar exatamente: sua imprevisibilidade. Foi ela, a imprevisibilidade, que “jogou por terra” o grande favoritismo que a seleção brasileira levava diante da seleção Croata nesta última Copa do Mundo e que certamente impactou na avaliação do trabalho de Tite e sua comissão técnica, bem como no legado que porventura tenham deixado à próxima comissão técnica.

Se Tite tivesse ganhado todos os jogos que disputou e perdesse uma única partida, mas que representasse a eliminação na principal competição disputada, acarretando a falha na conquista do seu principal objetivo, o hexacampeonato, seu trabalho seria avaliado como positivo ou negativo? É correto avaliarmos seu desempenho tendo como referência uma única partida? Faz sentido avaliarmos seu trabalho tendo como principal item de análise o aproveitamento dos pontos disputados? Afinal, podemos falar que Tite fez um bom trabalho? Terminado seu ciclo de seis anos como treinador da seleção brasileira, Tite, e sua comissão técnica, deixou algum legado?   

Se olharmos simplesmente para os números, certamente podemos dizer que o Tite fez um ótimo trabalho, afinal, 80% de aproveitamento em 81 partidas disputadas é uma marca expressiva. Mas, como já dissemos, não podemos olhar somente para esse número e dado. Vejamos outros então… 

Sobretudo após a eliminação da seleção brasileira na Copa do Mundo do Catar, tem sido constante na mídia esportiva brasileira, bem como nas mesas de bares, críticas aos adversários que o Brasil enfrentou na era Tite justificando, assim, o argumento de que esse aproveitamento é pouco representativo e que somente pela fragilidade dos adversários enfrentados a seleção brasileira obteve tantas vitórias. 

Nesse sentido, a fim de trazer mais elementos que nos ajudem a analisar tais argumentos, buscamos explicitar as seleções de cada continente que a seleção de Tite enfrentou avaliando seu desempenho. 

Se considerarmos que as principais seleções do futebol mundial estão no continente europeu, algo refutado por nós, mas cotidianamente repetido pela mídia esportiva, enfrentamos poucos adversários “de primeira classe”. As partidas contra seleções europeias representam somente 15% das realizadas na “era Tite”.  Ainda assim, insistem os comentaristas esportivos, que enfrentamos seleções fracas e que nosso desempenho foi ruim. No entanto, nossos dados mostram o contrário.  Dentre todas as seleções do velho continente, Tite enfrentou as seleções da Suíça (2 vezes), Sérvia (2 vezes), República Tcheca, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Croácia (2 vezes), Rússia e Áustria. 

Tá certo que não enfrentamos a forte equipe francesa, vice-campeã mundial, nem a jovem e talentosa seleção espanhola. Mas é inegável que dentre as equipes enfrentadas, está aquela que foi nosso algoz na última Copa do Mundo, a Croácia (terceira colocada), e as seleções da Inglaterra e Alemanha, bem como as seleções da Suíça e da Sérvia que, apesar de menos tradicionais, costumam ser bastante competitivas.  Nas 12 partidas disputadas contra equipes europeias durante o ciclo de Tite como treinador da seleção, foram 8 vitórias, 3 empates e somente uma derrota, 75% de aproveitamento.

Entendemos que esses confrontos poderiam ter sido mais frequentes caso os calendários entre confederações estivessem em maior sintonia, tal como acontece em decorrência do novo formato de campeonato europeu da Nations League (torneio organizado pela UEFA) que agora preenche várias datas ao decorrer do ano.

Referente ao continente das Américas (CONMEBOL e CONCACAF), Tite e seus comandados tiveram números expressivos com 40 vitórias, 10 empates e 4 derrotas, 80,1% de aproveitamento, número superior ao obtido nos enfrentamentos com equipes europeias.  Quanto às seleções da Ásia e Oceania, não há muito o que comentar, uma vez que a seleção brasileira obteve 100% de aproveitamento.

Entretanto, as equipes que mais impuseram trabalho à seleção brasileira foram as equipes africanas, vinculadas à Confederação Africana de Futebol (CAF). De todos os seis confrontos, o Brasil teve apenas 3 vitórias, 2 empates e uma derrota. Proporcionalmente falando, o pior aproveitamento de pontos que a seleção brasileira obteve na era Tite. O último confronto foi a derrota para a seleção de Camarões na Copa do Mundo de 2022.

Esperamos que após essa “viagem pelo mundo”, tenhamos possibilitado traçarmos um diagnóstico mais preciso sobre os confrontos realizados pelos seleção brasileira para entendermos e analisarmos o desempenho enquanto Tite esteve como treinador. Vale ressaltar, que das seis derrotas sofridas por Tite, metade (três delas) foram em confrontos contra a grande rival e atual campeã mundial, Argentina. No entanto, esse panorama, apesar de nos ajudar a compreender esse contexto, por si só não responde totalmente à nossa indagação sobre o desempenho da seleção brasileira neste período, afinal, para avaliarmos um trabalho, temos que ter conhecimento acerca dos objetivos traçados no início deste trabalho. Quais foram os objetivos traçados pelos dirigentes da CBF e pelo Tite com a sua comissão no início do planejamento? Se obter um bom aproveitamento dos pontos (ou partidas realizadas) disputados era um objetivo, podemos afirmar que Tite obteve sucesso. Se era fazer a seleção brasileira novamente ser temida pelos adversários, também podemos afirmar que obteve êxito, pois sempre estivemos dentre as favoritas para vencer a Copa do Mundo do Catar. Classificar para a Copa do Mundo certamente esteve entre os objetivos, mas obter pontuação recorde nas eliminatórias não sabemos. De fato, o desempenho foi excelente! Conquistar a Copa América de 2019 estava entre os objetivos prioritários ou era parte da preparação para a conquista da Copa do Mundo do Catar? Caso tornar-se campeão da Copa América era um objetivo importante, Tite obteve êxito. No entanto, se o objetivo era ser Campeão do Mundo, e conquistar o hexacampeonato mundial, ai, independente do bom desempenho geral, Tite não obteve sucesso e, portanto, seu trabalho não pode ser avaliado como positivo.  

Por fim, para pensarmos num possível legado da era Tite à seleção brasileira, temos que trazer para análise o processo de formação da equipe. De acordo com a matéria da UOL, publicada no dia 07/11/2022, Tite convocou 88 atletas para servirem à seleção brasileira. Apesar do número expressivo de jogadores convocados, o recente ex-técnico da seleção brasileira procurou dar continuidade às convocações de atletas da gestão anterior (como Alisson, Marquinhos, Thiago Silva, Casemiro, dentre outros). Foi perceptível também que atletas do ciclo olímpico foram utilizados tanto para competições oficiais, quanto para amistosos (exemplo de Gabriel Jesus, Gabriel Martinelli, Bruno Guimarães, Douglas Luiz, Bruno Guimarães, Antony, dentre outros), permitindo assim uma passagem mais ampla pela “formação de um jogador da seleção brasileira”. Será esse o caminho da nova gestão da seleção principal que almeja tanto o hexacampeonato? Esse legado precisa ser continuado pela próxima comissão? 

E para você, qual o legado Tite deixa à próxima comissão técnica que irá assumir o comando da seleção brasileira masculina de futebol? Esperamos que nosso texto o ajude nesta reflexão.