Pieter Brueghel (1525-1567), festejado pintor holandês, deixou-nos gravado em uma de suas obras-primas (Jogos de crianças, 1560) um verdadeiro estudo antropológico sobre as brincadeiras pertencentes ao universo da cultura lúdica infantil do século XVI.

Pieter Brueghel – “Jogos de crianças” (Jeux D’Enfants) – 1560
Ao vislumbrarmos o quadro, logo identificamos inúmeros jogos (brinquedos e brincadeiras): pega-pega, balanço, cinco Marias (5 pedrinhas, ou saquinhos, ou ainda ossinhos), pião, plantar bananeira, cata-vento, perna de pau, pula cela (um na mula, anamula), balança caixão, arco, cadeirinha, bonecas, bafo, brincar na água, construir castelo na areia, birosca (bolinha de gude), trenzinho, passa anel, cabra cega (cobra cega), cavalo de pau, cavalo de barril, cambalhota, rolar, equilibrar a vassoura no dedo, brigar, poponeta, subir na árvore, batuque, cirandas, fita, dança da cadeira, tiro ao alvo, cavalo de guerra, trepa-trepa …
Inúmeros outros jogos e brinquedos (objetos extremos; suportes das brincadeiras) podemos supor, tornam-se impossíveis de ser identificados, pelos menos por nós. Conseguimos facilmente identificar os jogos que fazem parte da nossa cultura lúdica, sendo assim, somente Brueghel poderia precisar quais foram os jogos que ele buscou retratar em sua tela.
Como dissemos anteriormente, o quadro foi pintado em 1560, logicamente, todas as brincadeiras faziam parte do universo cultural da sociedade da época, e da cultura lúdica do consagrado pintor, em particular, que, obviamente, fora adquirida e co-construída ao longo de sua existência (nasceu em 1525), e mais provavelmente, com maior intensidade durante a sua infância.
Desse modo, podemos dizer que estas brincadeiras, em simbiose com a cultura lúdica, delineavam (moldavam) o corpo das crianças da época. Nas palavras do consagrado antropólogo Marcel Mauss, suas técnicas corporais – compreendendo técnica corporal como “as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo”.
Por meio das exigências impostas pelas brincadeiras as crianças se serviam de seus corpos, desenvolvendo e ampliando assim suas técnicas corporais.
As brincadeiras, muitas delas para não dizer todas, são representações simbólicas e ou imitações prestigiosas, para usar outro termo de Mauss em seu livro “Sociologia e Antropologia”, em que as crianças imitavam simbolicamente as atividades dos adultos, como, por exemplo, brincar de andar de cavalo de pau.
Primeiro se aprendia a fazer o cavalo de pau, ou se dispor de algum objeto que representasse simbolicamente o cavalo, para depois aprender a andar de cavalo de pau, e nele cavalgar por muitos anos, como um bravo cavaleiro, salvando princesas indefesas e acordando belas adormecidas, para só depois galopar nos alazões, como confirma os Irmãos Grimm e Perrault em seus contos infantis.
O ato de cavalgar um cavalo de pau ou barril era eficaz para que um dia se aprendesse a montar um animal de verdade, isto não quer dizer que a técnica corporal fosse eficiente e transferível do cavalo de pau ao de cela, mas que a eficácia simbólica concretizada no ato de brincar com o cavalo, num gesto de imitação prestigiosa, coloca o infanto cavaleiro de pau na condição de pretenso cavaleiro real.
Como relata Philippe Ariès, no livro “História social da criança e da família”, sobre as crianças que foram proibidas de assistir e participar dos famosos torneios entre cavaleiros: “As crianças logo começaram a imitar os torneios proibidos: o cavaleiro do breviário de Grimani mostra-nos torneios grotescos de crianças, entre as quais alguns pensaram reconhecer o futuro Carlos V: as crianças cavalgam barris em vez de cavalos”.
Outro fato deflagrado à primeira vista do quadro e depois à data, é que as mesmas brincadeiras da Europa do século XVI, retratadas pela hábil mão pintor holandês, atravessaram séculos, e com elas a cultura lúdica (transmitida, ressignificada e re-co-construída) e as técnicas corporais.
Philippe Ariès, vem novamente confirmar e detalhar o processo de transmissão e transformação pela qual passou os jogos e brincadeiras pertencentes à cultura lúdica que atravessou os tempos, mais pontualmente quando descreve o diário do médico do, então, príncipe Luís XIII no século XVIII.
Essas brincadeiras com suas tradicionais e eficazes técnicas corporais foram passando de geração em geração de forma oral e por meio de vivências lúdicas, como nos relata o professor Jocimar Daolio: “Qualquer técnica corporal pode ser transmitida por meio do recurso oral. Pode ser contada, descrita, relatada. Mas pode também ser transmitida pelo movimento em si, como expressão simbólica de valores aceitos na sociedade. Quem transmite acredita e pratica aquele gesto. Quem recebe a transmissão aceita, aprende e passa a imitar aquele movimento. Enfim, é um gesto eficaz”.
Mas, infelizmente, notamos que algo abalou as estruturas simbólicas desta transmissão cultural que, desde então, avançava num ritmo contínuo até por volta de meados do século XX.
Cada vez mais crianças identificam menos brincadeiras ao descansar os olhos no quadro de Brueghel, não são mais as mesmas brincadeiras que alimentam o imaginário das crianças, não são mais os mesmos símbolos representados, logo não são mais as mesmas técnicas corporais delineadas que extravasam ao uso dos corpos infantis.
De 1560 até meados do século XX o mundo passou por incontáveis avanços e transformações, porém as brincadeiras sobreviveram a todas possíveis intempéries culturais.
Entretanto, no final do século XX, talvez se possa dizer, correndo o risco de sermos demasiados precipitados, de que os jogos e a cultura lúdica sofreram intensas ressignificações, reestruturações e modificações, principalmente devido ao intenso avanço tecnológico e profundas mudanças nos hábitos sociais, notadamente, nos grandes centros urbanos. Vivemos uma nova era, com novos jogos e uma nova cultura lúdica, logo o corpo mudou.
Com esta reflexão final, chegamos ao futebol. Ou melhor, poderíamos por meio desta ponderação histórica compreender o processo de co-construção do universo da cultura lúdica das brincadeiras de bola com os pés do brasileiro.
Cultura esta, que segundo a tese da Pedagogia da Rua defendida pelo Professor João Batista Freire, possibilitou a construção de um estilo peculiar do brasileiro jogar futebol, denominado futebol arte.
Contudo, o que especulamos com este projeto de ensaio é inferir sobre a possibilidade de nossa cultura lúdica estar sofrendo significativas mudanças, as quais acarretam alterações nas técnicas corporais, que por sua vez afetam a influência sobre a formação do jovem jogador de futebol.
Portanto, este jogador antes se formava na rua, brincando de determinado modo, a partir de certas brincadeiras, o que gerava uma técnica corporal e suas conseqüências, porém de uns tempos para cá, estas brincadeiras estão mudando, logo podemos vislumbrar e explicar o motivo pelo qual o Brasil vem perdendo suas idiossincrasias ludopédicas.
Para interagir com o autor: alcides@universidadedofutebol.com.br