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O atleta de alta performance

Crédito imagem – Daniela Porcelli/CBF

A explicação para a alta performance está nos detalhes. Poucos conseguem alcançar os picos de rendimento porque poucos estão dispostos a oferecer tudo o que é necessário. Admiro os campeões. Os que conseguem ganhar algo relevante. E admiro ainda mais quem se mantém no topo por muito tempo. O clichê se faz verdadeiro: chegar é ‘fácil’, o difícil é manter.

Trazendo para o futebol um jogador que alcança o nível profissional já é um vencedor por natureza. Seguramente, foram ultrapassadas barreiras específicas da própria modalidade.- ele teve que ser melhor do que a maioria para ir avançando nas categorias até chegar na equipe de cima. E em inúmeros casos, verdadeiras crianças vencem desafios que a maioria da população talvez não conseguisse superar. Quantos meninos com dez, onze, doze anos de idade saem de casa, deixando a família, para tentar a carreira de jogador em outra cidade, outro estado?

E transpassada essa peneira estreita e cruel que separa o amadorismo do profissionalismo vem outra bem parecida que diferencia o jogador ‘comum’ do extraordinário. E observando, estudando e analisando quem consegue ter um destaque acima da média percebi que a diferença que faz a diferença é o aspecto mental. São habilidades comportamentais que vêm precedidas por pensamentos e crenças fortalecedoras que apenas alguns poucos que tem.

Um atleta campeão treina mais e melhor do que os outros porque entende que apenas dessa maneira será superior ao que ele mesmo foi ontem. O cuidado com o corpo também é uma questão essencial porque os resultados dependem desse ‘equipamento’. Uma busca incessante por um entendimento maior sobre o jogo, suas nuances, detalhes e maneiras assertivas de ser eficaz com e sem a bola também é fundamental. Sem falar de um espírito coletivo porque ninguém faz sucesso sozinho. Poderia listar aqui outras dezenas de comportamentos, e todos eles teriam um viés muito mais psicológico do que técnico.

Quando estamos no nível profissional a diferença mora nos detalhes. Todos tem as habilidades, as valências físicas e o entendimento tático mínimo para jogar. Mas poucos vão além. Poucos se dedicam e se entregam de corpo e alma para ser hoje um por cento melhor do que foi ontem. Por isso que só temos um campeão, um melhor do mundo e etc. Porque essa condição é única. E ela não é obra do acaso. Pelo contrário, é previsível e deixa rastros. Não estou dizendo que é fácil. Mas justamente por dar muito trabalho poucos pagam o preço.

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STF permite recebimento do direito de imagem dos atletas por pessoa jurídica

Crédito imagem – Redes sociais Gabigol/Divulgação

Uma das maiores discussões tributárias no âmbito do futebol e dos esportes em geral diz respeito à utilização do direito de imagem dos atletas e o pagamento do imposto de renda. É de amplo conhecimento que a constituição de pessoas jurídicas por atletas profissionais é uma prática recorrente, seja para facilitar a administração de contratos e o gerenciamento das propostas negociais, seja para otimizar a organização dos diferentes rendimentos auferidos. 

Nesse sentido, uma prática bastante comum é que o atleta transfira para a pessoa jurídica a licença para exploração do seu direito de imagem.

O direito de imagem é assegurado expressamente pela Constituição Federal em seu art. 5º, inciso X, que enuncia ser inviolável a imagem das pessoas. O art. 20 do Código Civil Brasileiro complementa essa proteção, determinando que a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa é proibida, salvo se autorizada. Assim, no caso de atletas profissionais, a permissão para que a pessoa jurídica explore o direito de imagem da pessoa física é, em teoria, permitida.

Desta forma, através da exploração do direito de imagem pela pessoa jurídica (clubes), os atletas passam a auferir renda por duas maneiras: (i) o salário, recebido pela pessoa física por meio da CLT; e (ii) a contraprestação pela exploração dos direitos de imagem do jogador, recebida por meio da pessoa jurídica.

Nos dois modelos há formas diferentes de tributação. No caso dos rendimentos salariais recebidos diretamente pela pessoa física, o Imposto de Renda chega até a alíquota progressiva de 27,5% sobre o total auferido. Já no caso dos rendimentos por exploração da imagem recebidos pela pessoa jurídica, o Imposto de Renda pode ser recolhido no regime do Lucro Presumido, o que equivale a uma carga aproximada de 14,53% do total, sendo permitido então que a pessoa jurídica repasse os rendimentos para a pessoa física na forma de lucros e dividendos, que são isentos do Imposto de Renda da Pessoa Física.

Contudo, essa divisão de rendimentos entre a pessoa física e a pessoa jurídica vem sendo rechaçada pela Receita Federal do Brasil, que considera a operação uma simulação, uma omissão de rendimentos tributáveis por parte da pessoa física, pois se configurariam rendimentos salariais disfarçados.

Por muito tempo o cerne dessa discussão se permeava no fato da fiscalização alegar que o direito a imagem é considerado intransferível e inalienável, conforme previsto na Constituição Federal e no Código Civil. Nessa esteira, vários doutrinadores dividiram o direito de imagem em duas vertentes: (i) o aspecto moral, que se refere a esse direito personalíssimo, inalienável e intransmissível, que impede que a imagem da pessoa seja vendida, renunciada ou cedida em definitivo; e (ii) o aspecto patrimonial, que se trata a imagem como um direito que não é absolutamente indisponível, podendo ser licenciada a terceiros para exploração econômica. 

Tal discussão foi abordada pelo STJ no julgamento do REsp 74.473, ocasião em que a Corte consolidou o entendimento de que “assim como nos direitos autorais, o direito de imagem também possui esses dois aspectos”, salientando que a imagem dos atletas tem uma característica econômica/patrimonial passível de gerar receitas, e que esse aspecto patrimonial pode ser transferido.  

O divisor de águas, que permitiu o exercício de atividade personalíssima por meio de pessoa jurídica, sem que se tratasse de sociedade unipessoal, foi o art. 129 da Lei 11.1961/2005, que surgiu com a finalidade de autorizar de forma expressa a contratação de pessoa jurídica para a prestação de serviços de natureza intelectual, cultural, artística ou científica. 

Até a última semana não havia uma posição unânime na doutrina e jurisprudência em relação à aplicação deste artigo, discussão que se arrastava desde a publicação da lei, ou seja, há mais de 15 (quinze) anos. Durante esse período vários atletas, como os jogadores de futebol Neymar Jr e Alexandre Pato, os técnicos Cuca e Felipão e o tenista Guga Kuerten, enfrentaram processos sobre o tema, alguns ainda em curso.

Neste tempo, inclusive houve a alteração na Lei nº 9.615/98, conhecida como Lei Pelé, que prevê as normas gerais da prática do esporte no Brasil, assegurando proteção aos direitos dos atletas. O art. 87-A, incluído pela Lei nº. 12.395 de 2011, salienta que o direito de imagem do atleta pode ser cedido ou explorado por ele, podendo inclusive ser cedido a um terceiro (pessoa natural ou jurídica). 

Com a disciplina do tema também pela Lei Pelé a tendência era de que os atletas tivessem mais liberdade e autonomia para definir como explorar o direito de imagem, visto que a lei estabelece que a remuneração por essa atividade é inconfundível com o salário do jogador. 

Entretanto, mesmo após essas previsões legais, a RFB continuou autuando as operações, sob o fundamento de que se trata de planejamento tributário abusivo, uma vez que, segundo a RFB, as pessoas jurídicas são utilizadas para pagamento do salário dos atletas e não necessariamente para exploração do direito de imagem – hipótese em que se evidenciaria o intuito de se obter uma carga tributária inferior à que lhe é devida.

Para dirimir estas controvérsias, o STF, no dia 11/12/2020, encerrou o julgamento da ADC nº. 66 que analisou a constitucionalidade do artigo 129 da Lei 11.196/05, ou seja, se esta “pejotização” configuraria uma fraude à fiscalização.

Naquela ação, apesar da Advocacia-Geral da União (AGU) ter alegado que o dispositivo deveria ser afastado “diante da constatação de que a pessoa jurídica foi constituída como forma de dissimular verdadeira relação de emprego e tentar omitir a ocorrência de fato gerador de obrigação tributária”, o STF, por 8 votos favoráveis a 2, declarou a constitucionalidade do artigo e possibilitou aos atletas o recebimento do direito de imagem mediante pessoa jurídica.

A relatora do caso, Ministra Cármen Lúcia, defendeu a constitucionalidade do dispositivo afirmando que “A regra jurídica válida do modelo de estabelecimento de vínculo jurídico estabelecido entre prestador e tomador de serviços deve pautar-se pela mínima interferência na liberdade econômica constitucionalmente assegurada e revestir-se de grau de certeza para assegurar o equilíbrio nas relações econômicas e empresariais”. 

Vale ressaltar que a decisão proferida pelo STF não significa uma presunção de licitude para que todas as atividades prestadas por jogadores, técnicos, artistas, intelectuais, cientistas e demais atletas sejam exercidas mediante a intermediação de pessoas jurídicas, ou seja, não constitui um salvo-conduto para legitimar aqueles que se utilizam desta estrutura de forma irregular. 

Após esta decisão, todavia, deve ser afastada a presunção do fisco de que a utilização do direito de imagem dos jogadores e técnicos por pessoas jurídicas é irregular, sendo necessário comprovar, no caso concreto, a irregularidade da prestação de tais serviços. 

Portanto, resta aguardar os próximos julgamentos sobre o tema, tanto no âmbito do CARF – onde se concentram a maioria dos processos e que até o presente momento possui jurisprudência desfavorável aos contribuintes -, como no Poder Judiciário, para verificar qual o impacto trazido pela decisão proferida na ADC nº 66, que inquestionavelmente constitui importante precedente para os atletas.

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A diferença entre driblar ou fintar um cone e uma pessoa

Crédito imagem: Clube Náutico Capibaribe/Divulgação

A escola não é a Rua. Tampouco a rua é a escola. A rua é outro ambiente, com outra orientação, outro modo de fazer as coisas, e onde as relações se estabelecem de outra forma. Diferente. Nem melhor, nem pior. Aprender a controlar bem a bola em uma brincadeira de rua, não significa que fazer do mesmo jeito na escola levará ao mesmo resultado. Principalmente porque não será possível fazer do mesmo jeito. A Rua, isto é, o espaço de convivência de crianças (mas também de adolescentes e adultos em diversas situações), tem características irreprodutíveis.

Quando a prática da Rua vai para a aula na escola – por exemplo, uma brincadeira – ela é, ou deveria ser, pedagogizada. Significa que servirá a propósitos diferentes, porque a escola, ou qualquer outra instituição de ensino, tem compromissos com a sociedade fora dela mesma. Ela prepara conscientemente para uma vida em sociedade (mesmo que esse trabalho não seja bem feito); a Rua não tem essa orientação. A brincadeira de Rua esgota-se nela mesma, é jogo apenas, isto é, aquele tipo de acontecimento que não tem qualquer compromisso além dele mesmo. Isso não quer dizer que as aprendizagens da Rua não terão repercussões em diversas outras situações ao longo do tempo futuro, inclusive na escola. Porém, na Rua não há esse propósito, afinal, a Rua não é uma instituição cujos propósitos e ideologias estão declarados.

Mais especificamente no caso do Futebol, quando o ensino é institucionalizado, tal como se busca fazer principalmente nas escolas de futebol e categorias de base dos clubes, é possível ocorrer uma orientação pedagógica totalmente desvinculada da cultura da Rua, assim como é possível também adotar uma orientação pedagógica que procura reproduzir a Rua ou tê-la como referência.

É comum vermos, independente da instituição/espaço na qual se ensina o futebol às crianças e adolescentes, cones dispostos simetricamente em filas para serem fintados ou driblados. Vale ressaltar que tal prática também é notada, com frequência, no âmbito do futebol profissional com adultos. Diante destas circunstâncias, não há risco, não há mobilidade nos cones, não há ameaças, não há um tempo imprevisível para realizar a finta ou drible, não há tensão, não há diversão, não há jogo. O cone simplesmente fica ali, inerte, no lugar em que o colocaram, dócil, não mais que uma referência para repetições mecânicas de gestos previamente determinados. Sua função é simular a presença de uma pessoa, algo que nem de longe consegue. Quando muito, resta, para quebrar a monotonia, uma ou outra fantasia que meninos e meninas produzam, intimamente, sem que ninguém saiba disso além deles mesmos.

Julgam os inventores da tal pedagogia do cone, que isso levará os praticantes ao conhecimento e desenvolvimento de determinadas ações técnicas relacionadas ao futebol, tal qual a finta, drible, condução, entre outras.  Há método nisso, claro, mesmo que esse método não habite a consciência do inventor. Nada se faz sem método. Trata-se de um método de transmissão, pura e simples. Um professor ou treinador diz para um aluno ou atleta repetir o gesto de contornar os cones, porque, dessa maneira, o aluno/atleta repetidor aprenderá a conduzir a bola e driblar um adversário. O adversário, no caso, é o cone, e o repetidor terá que realizar um enorme esforço criativo (talvez consiga, talvez não) para imaginar que o cone é seu adversário. É esperado pelo inventor, ou mero reprodutor, da pedagogia do cone que, como resultado desses exercícios, os jogadores (repetidores), quando estiverem participando de um jogo contra um time adversário, possam aplicar o conhecimento de conduzir e fintar cones diante de pessoas de carne e osso.

Há algum sentido nisso? Com tal procedimento os meninos e meninas aprenderão o difícil gesto de fintar e driblar adversários em jogos de futebol? Sim, é impossível que nada se aprenda agindo dessa maneira. Os pés dos meninos e meninas se ajustarão ao gesto, que ficará mais refinado. Há um objetivo nisso que orientará o modo de tocar a bola, de se ajustar a ela, de mantê-la sob controle enquanto a pessoa muda de direção etc. As repetições filtrarão o gesto, eliminarão resíduos e, ao final, algum conhecimento restará. Alguns dirão que o gesto técnico estará refinado! Ainda assim, de que forma se espera que crianças e jovens se envolvam em exercícios como esse? Com alegria e prazer? Ou com tédio e impaciência diante do “interminável” tempo de espera nas filas?

Porém, é bom que se esclareça: embora ocorra alguma aprendizagem a respeito da arte de fintar, driblar ou conduzir a bola, neste caso específico, essa arte se aplica, antes de tudo, aos cones, não às pessoas. Considerando que cones são pouco semelhantes às pessoas, quando, no jogo, no lugar de cones houver adversários de carne e osso, a generalização desse conhecimento será, provavelmente, muito pequena, ou insignificante. Convenhamos que é bem diferente fintar um cone e fintar uma pessoa! Ou seja, de que adianta um(a) jogador(a) possuir uma técnica refinada para determinados gestos se este não poderá ser reproduzido no contexto do jogo?

Imaginemos agora outra situação: meninas e meninos aprendendo a fintar ou driblar pessoas. Uma professora propôs um jogo em que seus alunos serão incentivados a fintar ou driblar e conduzir uma bola durante uma prática muito divertida. Eles tentam fazer gols, mas há mais defensores que atacantes. E qualquer gol feito após uma finta vale o dobro.

Como difere esta situação da anterior, em que os praticantes (sejam eles crianças, adolescentes e até mesmo adultos que já praticam o futebol profissionalmente) tinham que conduzir a bola e fintar ou driblar cones, não é mesmo?! Os adversários não estão dispostos estaticamente em filas. O risco de perder a bola é permanente, os adversários não param de se movimentar, o tempo para agir é mínimo, a imprevisibilidade é a marca de todas as ações, a tensão é constante, mas, ainda assim cria diversão, há jogo, há alegria, há prazer. Os adversários são de carne e osso, não ficam inertes, dóceis e os gestos de quem vai fintar não podem ser previamente determinados.

Imaginemos, também, que, na mesma aula/treino, a criança viveu, não uma, mas dez ou quinze situações em que teve que enfrentar um adversário e decidiu fintá-lo. A cada vez, seus gestos, mesmo sendo semelhantes a gestos anteriores, não eram iguais. Não eram iguais, porque seus oponentes eram diferentes, a posição no espaço era diferente, as reações dos adversários eram sempre diferentes, e porque ela, a cada vez, mantinha uma relação estreita com o adversário, suas reações tornavam-se sempre diferentes. Algumas vezes ela conseguia fintar, em outras não, e tudo isso se incorporava ao seu baú de repertórios, ao seu leque de oportunidades. Em uma única aula ela acumulou em seu repertório, talvez, centenas de novos movimentos, somente em relação à finta. Claro que todos esses movimentos guardam semelhanças, pois têm em comum o gesto mais geral da finta (ou drible), mas que, na vida de ações práticas, não existe; é apenas um esquema geral que une todas as ações de fintar, pois nunca um gesto para fintar será igual a qualquer gesto anterior.

Seguramente, a criança que fintava pessoas repetiu muito mais vezes o gesto de fintar, durante uma aula, que a criança que fintava cones, mas em ambas as situações, as repetições eram de caráter completamente diferentes.

 Sob nosso entendimento, é muito mais significativo o enriquecimento das coordenações que formam a habilidade de fintar (ou driblar e conduzir a bola, por exemplo) quando se trata de fintar pessoas. Sem contar que consideramos apenas o plano das coordenações motoras. Sequer discutimos (e isso deverá ser feito em outro momento), por exemplo, o plano afetivo, afinal, não é preciso ter coragem para fintar um cone, mas é preciso ter coragem para fintar uma pessoa. Um cone não dá medo, uma pessoa pode dar, e assim por diante.

Tentemos traduzir em um exemplo aquilo que vimos buscando explicitar. Imagine uma menina, criança, de apenas nove anos de idade, chamada Cinara. Cinara tinha frequentado durante seis meses uma escola de futebol. Nessa escola de futebol, seus maiores oponentes eram cones. E ela aprendeu a fintar cones. Tornou-se exímia dribladora de cones. Mas Cinara pediu para deixar a escola de futebol depois do primeiro jogo contra a equipe de outra escola de futebol, pois ela não conseguiu driblar ninguém e nem marcou gols. Deu “tudo errado” e saiu do jogo chateada. Sua mãe ouviu falar de uma escola de futebol que as crianças adoravam e matriculou Cinara nessa outra escola. Ela começou a aprender a jogar futebol de outro jeito, não havia cones, parecia mais difícil, mas a professora inventava um monte de brincadeiras de driblar e as crianças se divertiam muito. Erravam bastante e, num primeiro momento, Cinara errava muito mais do que quando driblava cones, mas também acertava bastante. Quando foram fazer o primeiro jogo contra outra equipe, Cinara conseguiu driblar várias vezes e saiu muito feliz do jogo. Até hoje ela está nessa escola de esporte.

Quando a Cinara, ou qualquer outra criança, jovem ou adulto em fase de aprendizagem, conduz a bola durante o jogo e para na frente do adversário, ela pode ter várias opções, mas tem um tempo mínimo para se colocar diante de tais opções e escolher a melhor. Isso não quer dizer que, conscientemente, colocará à sua frente todas as opções de gestos que acumulou. Trata-se de um processo quase que inteiramente inconsciente. Vamos supor que ela tenha escolhido como melhor opção fintar seu oponente. Novamente, vale ressaltar, o adversário não é um cone, é uma pessoa e tem um tamanho diferente de todos os outros adversários. Seu oponente se mexe, ele não fica parado como um cone, e isso dificulta tudo. Cinara experimenta se mover para o lado direito, o adversário faz o mesmo e a cerca, ela volta, para, movimenta-se para frente e volta, imediatamente sai pela esquerda, para, retrocede, avança pela esquerda de novo e consegue enganar seu(sua) rival. Ao contrário do que ocorria quando tinha que driblar um cone, ela fez, não um, mas dezenas de gestos diferentes. Teve êxito, mas poderia não ter tido. Mas se fracassasse, o enriquecimento de seu repertório para fintar, ainda assim, seria enorme. Cada gesto feito ficou guardado, como em um banco de dados. Nas próximas vezes em que ela tiver que enfrentar a situação de fintar, poderá recorrer a um repertório maior que nas vezes anteriores.

Na rua dribla-se ou finta-se cones? Não! Aprende-se a fintar e driblar os adversários na rua? Muito! Então, o que podemos levar pedagogicamente da rua para as escolas e clubes onde se almeja o aprendizado ou aperfeiçoamento do futebol? Esperamos ter respondido a esta pergunta no decorrer deste texto.

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O todo é maior do que a soma das partes no futebol

Por muito tempo o viés físico tomou conta de toda análise mais aprofundada sobre futebol. Principalmente aqui no Brasil. Somos um dos melhores nesse quesito no mundo. Não há dúvida disso. Muito por conta da enorme preparação, estudo e dedicação dos profissionais dessa área nascidos por aqui. 
Membro fixo e obrigatório há muito tempo de qualquer comissão técnica minimamente estruturada, sempre era o preparador quem ditava a maior parte de uma sessão de treino. O técnico dava o conhecido ‘coletivo’. Onze contra onze. Sem campo e/ou regra adaptada para forçar um maior número de situações-problemas de jogo que precisasse ser melhor trabalhada. Havia a ideia de que com os jogadores bem condicionados fisicamente o melhor a se fazer era deixá-los jogar.
Apesar da evolução das metodologias e de um aprimoramento no olhar para entender o que se passa dentro das quatro linhas ainda está na nossa cultura um resquício dessa herança física de entender futebol. É comum ainda ouvirmos que determinada equipe não está rendendo porque está mal fisicamente. Ou que tal jogador ‘morre’ no segundo tempo. 
Tais observações, porém, desprezam o caráter complexo e sistêmico que caracteriza o jogo de futebol. Nem no aspecto individual, muito menos no coletivo, apenas uma valência é determinante para explicar determinado resultado. A parte física é uma variável do jogo, mas está longe de ser a única. O que mais chama a atenção é, junto com o físico, os aspectos táticos, técnicos e emocionais. Um drible por exemplo: precisa de um preparo do corpo para ser executado, mas também do gesto técnico, da orientação tática (ou para o lado ou para frente ou para trás) e do emocional, com a coragem. Contudo podemos aprofundar a análise e trazer que essa simples ação também carrega componentes cognitivos, espirituais, antropológicos, sociais e etc. 
Uma equipe bem treinada, com comportamentos coletivos claros, bem definidos e executados com excelência se desgasta pouco fisicamente para cumprir o objetivo do jogo, que é fazer mais gols que o adversário. Correr demais na maioria das vezes escancara a falta de mecanismos bem coordenados. ‘Raça’ não é correr muito. Tem mais essa ‘raça’ que o torcedor tanto adora aquele jogador que sabe exatamente as funções que tem que executar e um repertório vasto para resolver com eficácia os problemas inesperados que todo jogo carrega. 
Romper paradigmas é necessário para construirmos o novo. O futebol brasileiro está evoluindo, sem dúvidas. É raro vermos os jogadores correndo em volta do campo para jogar melhor o jogo. A especificidade já impera na maioria dos clubes. Para melhor jogar futebol mais se deve treinar futebol, com foco em melhorias deliberadas e planejadas. E não melhorar a velocidade, aumentar carga no supino e no leg press com fim nessas próprias atividades. Um futebol de excelência requer treinos de excelência. E também análises mais conectadas com o caos sistêmico que o jogo carrega em sua própria natureza. 
*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol
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O desempenho que brota da inteligência social: nova tendência no futebol?

No futebol, a surpresa que vem em caixinhas pode ser uma derrota inesperada, e assim tentamos compreender os fracassos de equipes que poderiam ser vencedoras. Futebol é um jogo de xadrez, e as peças tem personalidade, ego e podem agir influenciadas pelos seus desejos. Isso faz com que entrosamento e união de equipe sejam ingredientes ocultos de vitórias e ajudem a conquistar campeonatos. Jogadores fortemente ligados por um propósito de equipe podem atuar de forma diferenciada para vencer e superar desafios. No entanto, se agem com base em motivações de desempenho individual exaltando o nome que vai às costas antes de atuar pelo nome da frente da camisa, podem resumir seu desempenho a destaques individuais em oposição às tentativas de superação de uma equipe, e assim uma promessa vencedora de equipe campeã sucumbe ao egocentrismo e à individualidade.

Os times milionários e repletos de craques surpreendem de diversas maneiras. Jogadores valiosos como Ronaldo Fenômeno, Roberto Carlos, Figo, Zidane, Casillas, estrelavam o galáctico e aparentemente imbatível time do Real Madrid, tido como um dos favoritos em qualquer competição que disputasse, teve desempenho irreconhecível na temporada de 2002/2003(1). Outro caso, o time com o “ataque dos sonhos” do Flamengo de Romário, Sávio e Edmundo, teve igualmente desempenho desastroso no ano de 1995, após ser comemorado pela torcida e anunciado pela imprensa como imbatível, pois tinha “o melhor ataque do mundo”(2).

Podemos então afirmar que uma equipe com destacados jogadores juntos nem sempre significa garantia de time vencedor? Os exemplos citados anteriormente dão força a esse tipo de interpretação.

Um dos fatores que respondem a essa questão beira o óbvio para uma modalidade coletiva como é o futebol. É preciso haver conexão entre os membros de uma equipe. O neurocientista Daniel Goleman(3), reconhecido mundialmente pela sua publicação ‘Inteligência emocional’, afirma: “fomos programados para nos conectar”. Para Goleman, sempre que interagimos com alguém o cérebro cumpre sua função de mostrar-se sociável a outro cérebro. Essa ponte, segundo o autor, permite afetar ou influenciar as pessoas com quem interagimos em via de mão dupla, pois influenciamos e somos influenciados. A empatia é o potente ingrediente.

As relações empáticas são potencialmente nutridoras desse tipo de conexão, ainda que em interações mais simples e rotineiras como o cotidiano de treino ou em tarefas executadas pelos jogadores sob o comando de um técnico. Vamos um pouco mais além, pois consideramos também a emoção como fator determinante. O fator emocional é outro ingrediente que se mistura às experiências dos relacionamentos interpessoais. Se há uma força que sustenta as relações entre pessoas, sob emoção essa força se amplia, como mostrou Jürgen Klopp ao provocar uma experiência inusitada de superação aos jogadores do Mainz05 no início de sua carreira como treinador em 2001. O técnico, tomado como “diferente”, desde então, levou seus jogadores para enfrentar desafios da natureza, em um local próximo a um lago na Suécia, e ali vivenciaram juntos problemas e obstáculos totalmente diferentes para um jogador de futebol, o que os levou a nutrir um senso único de cooperação e ajuda mútua, com resultados positivos para coesão do grupo(4).

Em um ambiente de treinamento ou competição, jogadores que superam situações e problemas de diversos tipos com motivações conjuntas para buscar soluções aos desafios, tendem a estabelecer uma relação profunda de força mútua. Essas trocas potentes que miram a solução dão consistência aos elos emocionais de ligação entre membros de uma equipe, pois no jogo esportivo são as pessoas que importam para construção da solução de um problema. Aqui é legítimo afirmar que “sozinhos somos bons, juntos somos fortes”. Basta dar sentido positivo e produtivo ao significado de “juntos”, como a equipe se mostrar unida ou entrosada, compartilhando maneiras de perceber o jogo através dos pensamentos e ações.

As interações interpessoais operam como moduladores da experiência vivida, redefinindo aspectos-chave de nossa função cerebral à medida que orquestram nossas emoções. Significados positivos e construtivos vão levar o jogador a vivenciar emoções que alicerçam a experiência com ganhos e aprendizados. Em um ambiente esportivo, como é o futebol, se faz importante a capacidade de intervenção dos técnicos e treinadores para que auxiliem os jogadores a atribuir significados que levem a uma experiência geradoras de vínculos que possam se fortalecer no convívio em treinos e competições.

A Neurociência aponta que há uma variedade diferente de células cerebrais, os neurônios-espelho, que são capazes de detectar tanto os movimentos que a outra pessoa está prestes a fazer quanto seus sentimentos, e instantaneamente nos preparam para imitar os movimentos e sentir junto, como se soubéssemos o que se passa com a outra pessoa. Entendemos assim que o modo como nos conectamos com os outros tem uma importância inimaginável.

O conceito de empatia se refere também ao nível cognitivo. Quanto mais forte é nosso relacionamento com uma pessoa, maior a nossa propensão a sermos abertos e atentos a ela. Quanto mais história pessoal compartilharmos, mais prontamente sentiremos o que ela sente e mais parecidos serão os nossos pensamentos e reações a qualquer situação que surgir.

A empatia abre as portas para os relacionamentos autênticos e mais profundos, baseados no respeito de como as pessoas percebem o mundo e formam suas concepções sobre maneiras de pensamento ou conduta. Nos momentos empáticos, sentimos que a outra pessoa sabe como nos sentimos, e assim nos sentimos compreendidos.

Essa conexão é potencialmente impactante, já que ativam os relacionamentos saudáveis que representam estados de bem estar, ao passo que os relacionamentos tóxicos podem atuar como alavanca para o afastamento emocional entre pessoas. Algumas equipes percebem isso e buscam a mudança, conhecida como ‘virar a chave’, como foi o caso da Itália e sua vitoriosa campanha na Copa de 1982 na Espanha, ameaçada em seu início pela instabilidade emocional de seu grupo que se rendia a fatores extracampo. A equipe de Enzo Bearzot viveu a expressão de seu potencial e rumou à conquista da Copa quando um senso único de corações e mentes brotou no jogo contra a Argentina, e depois consolidou essa nova condição contra o Brasil no inesquecível jogo do estádio Sarriá, em Barcelona.

Estamos chegando ao momento em que os treinadores e técnicos necessitam desenvolver e expressar habilidades de gestão de pessoas, além das competências clássicas que os levam a dominar o conhecimento do jogo, tanto teórico quanto prático. Técnicos reconhecidos pela sua liderança e comando de grupo são revelados pelas frases como “tem o time nas mãos”, “é bom de vestiário”, o que nos leva a investigar sobre o que poderia significar ser inteligente com relação às necessidades coletivas do mundo esportivo do futebol. Disse Cristiano Ronaldo: “A experiência me fez entender que jogando em equipe e sendo solidário, se alcançam os maiores objetivos”(5).

Bibliografia consultada

(1)https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2020/12/12/casillas-galaticos-real-madrid.htm

(2)https://globoesporte.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/ha-25-anos-edmundo-chegava-ao-flamengo-para-atuar-com-romario-e-savio-relembre.ghtml

(3) GOLEMAN, D. Inteligência social: a ciência revolucionária das relações humanas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.

(4)https://bancada.pt/futebol/grandefutebol/klopp-o-pai-que-nao-lhe-dava-abebias-e-a-pre-epoca-do-mainz-sem-comida

(5) PERCY, A. Pensar com os pés. Rio de Janeiro: Sextante, 2014. p-110

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Epistemologias nossas de cada dia I – o dom e o talento

Epistemologia. O termo, que etimologicamente remete às junções do grego episteme (que significa algo próximo à conhecimento ou entendimento) e logia (sufixo associado ao saber e a ciência) não soa lá muito convidativa, dado o caráter científico – incutida em sua própria constituição – tido como denso, teórico demais para estar atrelado à práticas hipoteticamente objetivas como, por exemplo, o futebol. Perfumaria, dizem.

Mas necessária – e cheira bem.

No frigir dos ovos, a epistemologia é a ciência do conhecimento. Propõe entender como nós, mortais seres humanos, incorporamos saberes que nos parecem úteis para lidar com o cotidiano corriqueiro, o que inclui desde aqueles mobilizados para dar um laço no cadarço de um calçado até aos que se arriscam a tentar entender a teoria da relatividade. Fundamental para compreendermos, enquanto pedagogos e pedagogas, os distintos modos que fazem fulano ou ciclana aprenderem (ou não) algum conteúdo e como modulam suas crenças, concepções e valores sobre a vida vivida – e por tabela, o futebol.

Trata-se, no fim das contas, de ‘maneiras’ mais específicas de interpretarmos o mundo a partir, claro, das lentes que nos dispusemos a usar para enxerga-lo. Toda prática, afinal, detém alguma epistemologia. O ‘maneiras’, ali em cima, é mero eufemismo para caracterizar as grandes teorias que explicam essa apreensão do conhecimento – são três, mas fiquemos hoje como a mais antiga delas: o Inatismo.

Um sem número de epistemólogos e epistemológas planeta afora se debruçam a conceituar a teoria epistemológica inatista e os pressupostos histórico-filosóficos que as fundamentam. Há certo consenso entre todos e todas de que a palavra-chave do Inatismo poderia ser algo como determinado. Todo e qualquer conhecimento é estabelecido a priori, presente de origem divina, dado, dádiva, verdade absoluta, concebido à alma, enquanto lócus do intelecto, e manifestado exteriormente a partir dela. Conhecimento é sinônimo de dom e você que lute para descobrir o seu.

Quem não sonhou em ser um jogador ou uma jogadora de futebol? A pergunta, eternizada musicalmente por Samuel Rosa, é retórica, mas seu complemento pode, em algum momento da vida, flertar com o doloroso: ‘será que nasci para isso?’, como aparentemente aconteceu ao Prof. Alcides Scaglia. Como não concordar com Romário, o homem dos 1001 gols, que, na mesma frequência com que decidia jogos, não hesitava em se endeusar? Fora o escolhido por Ele para dar alegria ao povo pelo balançar das redes, portanto, não lhe coube mais nada na vida senão cumprir a ordem celestial.

Explicar a vida – que não é necessariamente vivida nesse caso – pela manifestação de dons e seu caráter determinista são ações típicas de quem veste a lente paradigmática analítica-sintética e tradicional. O dom, sob a perspectiva pré-moderna, dispõe de forte ligação com o sagrado. Não à toa, monarcas de origem ibérica (berço do sebastianismo) em séculos passados e autoridades da Igreja Católica, até hoje, sejam intitulados dessa forma. E que adquire, pelo pensamento moderno e positivista do Iluminismo, uma roupagem genética para justificar o talento nato.

O determinismo, então, materializa a busca pelo controle da alma, por meio de derivações pan-ópticas, para combater o imprevisível e o indesejável. Para tanto, não abdica da imposição de rótulos demonizantes, motriz de vários preconceitos arraigados pela sociedade ocidental, óbvio, reverberados no esporte: do futebol que não é esporte de mulher, o vôlei que não é modalidade de macho, o preto que não serve para catar no gol, nem para treinar, nem para nadar, porque ‘sempre’ foi assim, alguém quis, escreveu não sei onde. Que também é desmascarado nas fatídicas peneiras por um viés supostamente mais ‘dócil’, o da busca por talentos brutos pelo julgamento das capacidades esportivas através d’um simples olhar: a muito baixinha para jogar basquete, a alta o bastante para jogar vôlei, o da panturrilha grossa que não serve para o futebol, ao contrário daquele outro de canela fina.

Cruel, muito cruel – diria aquele narrador (para manter a tradição de referências noventistas por aqui).

Do ponto de vista pedagógico-esportivo, em qualquer contexto, o Inatismo tem consequências geralmente pouco sapientes na medida em que o(a) professor(a)/treinador(a) é o ser que detecta clinicamente quem é capaz ou não e que, no máximo, promove insights para o desabrochar dos dons. Não existem processos de ensino ou aprendizagem e as responsabilidades afetiva e formativa ficam, literalmente, ao deus dará.

O Inatismo, e sua orientação determinista, ignora por completo a Pedagogia, enquanto ciência da prática educativa e, a rigor, qualquer outro tipo de ciência. Segue impregnando a cultura esportiva no Brasil, dentre outros fatores, pela busca mística ao imponderável que rege algumas de nossas condutas – que atire a primeira pedra aquele ou aquela que nunca se utilizou de um ritual de superstição para torcer. Outro ponto passa sobre como pensam (ou não pensam) algumas lideranças políticas e esportivas por aqui. O anseio de que determinados valores e ideologias não podem ser, em hipótese alguma, questionados numa sociedade que vive de… questionamentos, são feitos pelo controle social e sua imposição de concepções, de forma até arbitrariamente autoritária, justificada por um teor inatista: eis o evocar do mito de que mitos existem.

Fosse um desses influenciadores digitais, desconfio que o Inatismo seria aquele sujeito endeusado por uns, tido como tóxico e passível de cancelamento por outros, mas que, movido pelo amor e/ou pelo ódio, teria, possivelmente, milhões de seguidores. Todos nós fomos e somos inatistas e essa afirmação não se dá apenas pela possível identificação ressoada em você que se identificou com algumas situações exemplificadas. A ciência, inclusive a voltada ao âmbito esportivo e, mais inclusive ainda, àquela ligada à subárea da Educação Física chamada Pedagogia da Esporte, tem trazido evidências claras do engajamento, digo, popularidade dessa epistemologia.

Ao Inatismo, por essas e algumas outras, não devemos conceder sua inquisição imediata – ou cairemos na armadilha da contradição – sem antes reconhecê-lo. Primeiro como decorrente de uma visão de mundo analítico-sintética, suprema e factível em determinado contexto histórico. Depois, como teoria que ainda detém enorme influência em nossas fundamentações, muito por oferecer explicações razoavelmente simples demais sobre os quês, comos e os porquês devemos aprender, crer e enxergar o universo que nos ronda, sem nos exigir algo a mais do que a resignação.

Amém.

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A infeliz e recorrente presença de atitudes racistas no mundo do futebol

Crédito da imagem: UEFA/Redes sociais/Divulgação

Embora a escravidão tenha sido abolida mundo afora há bastante tempo, em pleno século XXI, ainda presenciamos atitudes inaceitáveis de discriminação de pessoas pela cor de sua pele e, infelizmente, esse triste cenário se repete no futebol.

Inúmeros são os casos de atitudes racistas noticiadas no mundo do futebol, situação que, além de configurar crime em grande parte dos países, demonstram a injustificável, mas recorrente, intolerância voltada a pessoas negras, como se, por sua cor de pele, elas fossem de alguma forma inferiores.

Parece absurdo casos assim continuarem a ocorrer, mas, apesar de incompreensível, é sim um problema que precisa ser enfrentado.

No último dia 08 de dezembro de 2020, tivemos mais um exemplo de racismo no futebol, acreditando que a atitude dos jogadores servirá de marco de enfrentamento aos que persistirem eternando esse injustificado ódio.

Durante uma partida da Champions League entre o Paris Saint German, do brasileiro Neymar, e Istambul Basakserhir, após uma discussão, o quarto árbitro, Sebastian Coltescu, proferiu ofensas racistas contra um dos membros da comissão técnica do time turco.

Em ato de protesto pelo ocorrido, os jogadores das duas equipes se recusaram a continuar a partida, enquanto o quarto árbitro, acusado das ofensas, não fosse retirado de campo.

A suspensão se deu aos 13 minutos do primeiro tempo, a UEFA, organizadora do campeonato, chegou a noticiar que o jogo seria reiniciado às 18 horas (de Brasília). No entanto, os jogadores do Istambul se negaram a voltar a campo, fazendo com que o jogo fosse adiado para o dia 09 de dezembro de 2020.

A atitude dos jogadores demonstra que não serão toleradas, dentro de campo, condutas de cunho racista. A união foi a palavra da vez nesse episódio, todos os jogadores, independente da cor da pele, se uniram em prol da causa e deixaram bem claro a todos que assistiam o jogo que vestem a camisa do “não ao racismo”.

Que essa atitude seja bem repercutida por todo o mundo e sirva de lição, e até de reprimenda, aos racistas que insistem em manifestar seu ódio aos negros, para que não voltem a ter atitudes como estas, pois as mesmas não serão mais toleradas.

Além desse caso, ocorrido em 08/12/2020, o racismo no futebol é bastante recorrente e precisa ser firmemente combatido.

Diferentemente da legislação penal, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva não faz distinção entre os tipos de injúria racial puníveis, tratando os atos discriminatórios em um único diploma legal, qual seja o artigo 243-G que assim dispõe:

“Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.”

Embora exista a previsão de punição para atos dessa natureza, em muitos casos a impunidade é o que impera. No entanto, temos alguns exemplos em que os atletas ofendidos levaram o caso até as autoridades competentes e os responsáveis foram punidos. Exemplos:

Tinga, do Internacional, em jogo do campeonato brasileiro, em 22/10/2005, denunciou que toda vez que tocava na bola os torcedores adversários imitavam macacos. Analisando o caso, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), em decisão unânime, aplicou multa de R$ 200 mil e tirou o mando de campo de duas partidas.

Vanderlei, do Caxias, em jogo do campeonato gaúcho, em 24/03/2012, foi chamado pela torcida rival de macaco insistentemente. Em julgamento no Tribunal de Justiça da Federação Gaúcha de Futebol, o Novo Hamburgo foi condenado a pagar uma multa de R$ 10 mil pelas ofensas.

Aranha, goleiro do Santos, em jogo da Copa do Brasil, em 28/08/2014, foi chamado pela torcida do rival de macaco. O Grêmio foi julgado pelo STJD e foi excluído da Copa do Brasil; recorreu e foi penalizado com a perda de 3 pontos e multado em R$ 54 mil

Como se percebe, as situações racistas são recorrentes no futebol brasileiro e mundial. No entanto, o fato ocorrido em 08/12/2020 no jogo da Champions League, deixa claro que os próprios jogadores não irão mais aceitar essas ofensas.

O caminho ainda é longo, mas certamente esse dia 08 de dezembro ficará marcado na história como um divisor de águas na luta contra o racismo no mundo do futebol.

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Conto dos sonhos – O retorno dos super-herois

Crédito imagem: Bruno Ulivieri/AGIF/CBF/Divulgação

“O dia em que a terra parou”, já cantava nosso poeta, Maluco Beleza, Raul Seixas.

Nas águas de março de um ano histórico, uma inesperada e necessária pausa de vida. Mas, como é complicado, difícil e complexo viver um momento histórico mundial, sem precedentes na nossa trajetória. Talvez, nem Freud explique. E se explicasse, o que ele nos diria? 

O mundo parou e quem imaginaria que a grande paixão mundial também? Pois é! Inacreditavelmente, a partida de futebol precisou ficar suspensa por longos meses. Nesse instante, os corações inquietantes dos atletas, principalmente da garotada em formação, pulsaram forte. Os sonhos foram interrompidos, desejos foram postergados, ações, comportamentos, vontades e anseios foram repensados. 

Quantas perguntas se fizeram, quantas perguntas os fizeram? O que me aguarda no futuro próximo? Quando retornarei ao campo? Quando poderei pisar no gramado? Quando poderei fazer o que mais amo? Quantas inquietações foram necessárias e quantas perguntas sem respostas tivemos por tantos dias. 

Sonho, caracteriza-se pelo “ato ou efeito de sonhar, conjunto de imagens pensamentos ou de fantasias que se apresenta durante o sono”. Desta vez, por ironia do destino, o sonho aconteceu ao despertar, aconteceu nas noites mal dormidas de uma incerteza constante e até na falta do paladar. “Se esperamos viver, não apenas de momento a momento, mas sim verdadeiramente conscientes da nossa existência, nossa maior necessidade e mais difícil realização será encontrar significado nas nossas vidas.” Essa passagem do escritor Bruno Bettelheim, retirada do livro: “A Psicanálise dos contos de fadas” reflete bem o sentimento desses atletas sonhadores vivenciados nessa pandemia reflexiva. 

Retornar ao futebol, retornar as atividades presenciais, trouxe de volta a esperança desse “novo normal”, desse “novo sonhar”, só que agora de um ponto diferente, talvez com muito mais significados, talvez com muito mais cores e muito mais vida na caminhada de cada um. Acompanhar sua chegada, vê-los adentrar no Centro de Treinamento, o mundo desejado e almejado por muitos, mas ainda para poucos (e bem poucos), me fez sentir que vale a pena  continuar o trabalho! Eles retornaram, se colocaram à disposição para o novo de novo, demonstraram em seus olhos as pupilas dilatadas, de tanta euforia, felicidade e turbilhão de sensações e emoções.  

O desejo de pisar naquele velho tapete sagrado, desejo de uma família por trás – de um pai, de uma mãe – desejo de um mundo melhor, de uma vida melhor, desejo de muitas mudanças.  

Momentos históricos nos fortalecem, momentos desafiadores nos tornam mais fortes. Será? Foi assim que senti e presenciei o retorno desses super-heróis. Eu falei super-heróis?! Sim! Eles chegaram e voltaram com suas capas invisíveis, sorrisos por trás das máscaras e muita força para salvar o mundo, salvar o outro e salvar a si. Guerra de gigantes, sonhos de meninos e, que nesse conto, nessa história narrada, o final ainda é incerto, o super-herói ainda não salvou o mundo, mas nesse mundo do “salve-se quem puder”, onde ainda estamos vivendo uma pandemia, onde as doses homeopáticas são diárias, seu final feliz ainda é incerto, mas muito possível.

Sejam bem-vindos, meus meninos, meus garotos sonhadores! O que o futuro nos espera? Quais sonhos serão realizados? Ainda não sei. Mas a psicóloga e filósofa da vida que vos fala garante que passaremos por tudo isso juntos. Viveremos tudo isso mais uma vez, se preciso for…

E como diz a letra da música da Banda Skank, “Bola na trave não altera o placar, bola na área sem ninguém pra cabecear, bola na rede pra fazer o gol, quem não sonhou, em ser um, jogador de futebol?”

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Sobre as matrizes de jogos no futebol – Parte I

Dentre os temas mais tratados nos nossos debates sobre futebol nos últimos anos, certamente um dos mais importantes está nas metodologias de treinamento. Aqui mesmo, na própria Universidade do Futebol, encontramos uma série de artigos, alguns deles meus, nos quais não apenas falamos de determinadas metodologias e/ou abordagens, como também refletimos um pouco melhor sobre o impacto da transição de uma metodologia em direção a outras (processo que exige tempo e paciência).

Neste sentido, uma contribuição muito importante são as chamadas matrizes de jogos, trazidas ao debate notadamente pelo professor Alcides Scaglia. Embora não se trate de um conceito novo, é um conceito menos debatido do que poderia ser, ou mesmo desconhecido para alguns colegas. Por isso, gostaria de aproveitar o espaço de hoje para discutirmos um pouco sobre as matrizes de jogos. Por se tratar de um tema não exatamente curto, prefiro dividir o texto em duas partes: na primeira, darei uma panorama prévio, uma espécie de sustentação das matrizes. Na segunda, tratarei mais especificamente de cada uma delas.

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Para pensarmos as matrizes de jogos, vamos dar um passo atrás e considerar uma primeira noção, também menos simples do que parece: a noção de jogo. Embora seja uma palavra óbvia para nós que trabalhamos com futebol, existem alguns detalhes sobre o jogo que estão abaixo da superfície. Por exemplo, quando pensamos em jogo, precisamos ter em mente que se trata de algo que tem regras; que tem um espaço definido; que tem um tempo próprio (que não é o tempo cronológico, é outro tempo); que é uma espécie de suspensão temporária do real – ou, se você preferir, é um outro real, uma outra camada de realidade, por isso a passagem do tempo também é diferente da que estamos acostumados na vida cotidiana. Na mesma linha, acho importante nos lembrarmos daquela passagem, classicamente apresentada pelo professor João Batista Freire (no também clássico O Jogo: entre o riso e o choro) na qual descobrimos que jogo pode ser tudo aquilo que a minha subjetividade considerar como jogo. Este é um ponto necessário, pois o jogo não é bem um fenômeno objetivo, não é um objeto em si: o jogo está numa cada de percepção, de subjetividade, de intenção (ou intencionalidade), nas relações que nós somos capazes de fazer com o jogo que jogamos. Aliás, daqui podemos pensar sobre a escolha de um dado exercício ou jogo nos nossos treinamentos: não se trata do jogo em si, mas das relações e do sentido que somos capazes de dar ao jogo propomos ou ao jogo que jogamos (como escrevi, faz pouco tempo, neste texto). Daí a importância de nos preocuparmos não apenas com o método, mas também com a didática.

Ainda de um ponto de vista mais conceitual, não nos esqueçamos do jogo envolvido em uma dimensão de complexidade. Neste caso, vale lembrar que complexo é uma palavra vinda do latim complexus – aquilo que é tecido junto. Não por acaso, no texto em que apresenta a noção de matrizes de jogos, o professor Alcides Scaglia, junto dos amigos Riller Reverdito, Lucas Leonardo e Cristian Lizana, retoma o chamado padrão organizacional sistêmico: num jogo como o futebol, que antes de tudo é jogo, que é um jogo coletivo e, além disso, que é um jogo coletivo de invasão, tática, técnica, físico e mental, assim como ataque, defesa e transições, estão todos tecidos juntos, não se separam, são dimensões inquebrantáveis, como dizem nossos colegas portugueses. Elas podem até ser separadas de um ponto de vista didático, ou às vezes de um ponto de vista analítico – mas não se separam de um ponto de vista prático. Repare que aqui já estamos com um pé naquele debate entre metodologias mais tradicionais de ensino/treino do futebol contra as chamadas ‘novas tendências’: a partir do jogo, é possível articular formas e conteúdos de treino menos distantes do jogo formal, com exigências e problemas análogos aos do jogo formal, com um nível de intensidade físico/mental eventualmente idêntico ou até mesmo superior ao do jogo formal. Por isso, como também aprendi com o professor Alcides, vale a pena questionarmos aquele adágio que nos diz que treino é treino e jogo é jogo: se é assim, então por que treinamos? Talvez um outro caminho seja o de pensar que treino é jogo e jogo é treino, que o treino existe para se jogar e o jogo formal existe também como treino, é um treinamento muito particular, de exigências particulares e que de ensinamentos também muito particulares. Como disse outro dia o Pedrinho, comentarista do SporTV, falando alguma coisa sobre a falha do goleiro Hugo Souza contra o São Paulo, repare como nós carregamos algumas heranças que precisam, de alguma forma, ser questionadas.

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Ainda de um ponto de vista mais conceitual, chamo a atenção para as chamadas competências essenciais dos Jogos Esportivos Coletivos. É um conteúdo trazido ao debate pelo professor Julio Garganta, sendo as competências essenciais basicamente três: relação com a bola, estruturação do espaço e comunicação na ação. Quando um jogador se coloca em situação de jogo, quando põe a prova suas competências (poder fazer) e habilidades (saber fazer), basicamente espera-se uma relação amistosa com o implemento do jogo (no caso do futebol, a bola – repare aqui nisso que chamamos geralmente de técnica), uma relação amistosa com o espaço de jogo (repare nisso que chamamos de tática, especialmente se pensarmos nela como gestão do espaço/tempo de jogo, de modo individual, grupal e coletivo), assim como uma capacidade importante de comunicação, não apenas a partir da fala, mas a partir da ação, uma comunicação de corpo inteiro (e repare aqui na importância, por exemplo, da orientação corporal dentro do jogo jogado, sobre a qual escrevi recentemente).

Se para jogar bem é preciso relacionar-se bem com a bola, estruturar bem o espaço (individual/grupal/coletivamente) e comunicar-se na ação, repare que faz sentido não apenas treinar como se joga, mas também modelar as referências do jogo que se joga de acordo com a intenção, com os objetivos específicos de treinadores e comissões técnicas. Aqui, vamos pensar em dois tipos de referências: referências estruturais e referências funcionais. As referências estruturais nada mais são do que “elementos formais que compõem o jogo: companheiros, adversários, bola/implemento, espaço, alvo e regras” (SCAGLIA et.al, 2014¹). As referências funcionais, por sua vez, são orientadas pelos chamados princípios operacionais e pelas regras de ação. Mas, por ora, vamos ficar por aqui. 

Pois como escrevi no início, gostaria que tivéssemos hoje um desenho prévio, a partir do qual podemos pensar as matrizes de jogos com mais segurança. No próximo texto, partirei dos princípios operacionais e das regras de ação para falarmos mais detalhadamente das matrizes, a saber: jogos conceituais, jogos conceituais em ambiente específico, jogos específicos, jogos contextuais.

Seguimos em breve.

***

¹SCAGLIA, A. J.; REVERTIDO, R. S.; LEONARDO, L.; LIZANA, C. J. R. O ensino dos jogos esportivos coletivos: as competências essenciais e a lógica do jogo em meio ao processo organizacional sistêmico. Movimento, Porto Alegre, v. 19, n. 04, p. 227-249, ago. de 2013.

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O forte do São Paulo é o aspecto mental

O São Paulo lidera o Campeonato Brasileiro de maneira justa e merecida. Citar e buscar rotulá-lo como ‘o melhor time do país’ ou aquele que joga ‘o futebol mais bonito’ é sempre algo subjetivo e passível de diferentes interpretações e pontos de vista. Porém é inegável que a equipe do técnico Fernando Diniz tem sido a mais eficaz nas ações com e sem a bola.

A melhora do São Paulo passa por questões técnicas e táticas, com certeza. Com uma dupla de ataque mais agressiva – Luciano e Brenner – todo o sistema ofensivo se comporta de maneira mais vertical e direta. E como o jogo é ‘uma coisa só’ , atacar, defender e realizar as transições está sempre conectado, essa agressividade para atacar é transferida para buscar a retomada da posse logo após a perda. Com jogadores como Vitor Bueno, Pablo e Tche Tche, que hoje são reservas, as características individuais não batiam com o comportamento coletivo buscado. Já a defesa nunca foi um problema para o São Paulo. Desde o ano passado. A quantidade alta de gols sofridos assim que o futebol foi retomado, em julho, era mais uma questão coletiva. Tanto que Arboleda e Bruno Alves já voltaram ao time titular. E a entrada de Luan, além de ter dado mais consistência, permitiu uma liberdade maior a Daniel Alves, talvez o melhor e mais completo coadjuvante que o futebol mundial produziu nos últimos trinta anos.

Mas o ponto principal dessa mudança são-paulina está fora de campo. É algo que Fernando Diniz prega como questão primordial do seu trabalho: as relações interpessoais. O aspecto mental desse grupo se fortaleceu incrivelmente com as recentes eliminações e as naturais críticas que vieram. Se por proximidade da eleição ou não, se foi o diretor Raí ou o presidente Leco quem tomou a decisão de mantê-lo, não vem ao caso nessa análise. 

É fato que há hoje uma unidade de grupo extremamente forte no Morumbi. Um elenco ‘cascudo’ em que cada um é estimulado a atuar na potencialidade máxima acaba transcendendo. Se vai ser campeão ou não é impossível saber. Porém o caminho fica facilitado quando temos esse caso, em que o todo fica maior que a soma das partes.  

*As opiniões dos nossos autores parceiros não refletem, necessariamente, a visão da Universidade do Futebol