Categorias
Áreas do Conhecimento>Neurociência e Desempenho|Conteúdo Udof>Colunas Colunas -

As redes sociais e a saúde emocional dos atletas

Crédito imagem: Reprodução/Instagram/José Mourinho

A “era da informação” é um termo utilizado para se referir a todo aparato de tecnologia digital responsável pela mediação das relações humanas e das interações entre máquinas, que são cada vez mais autônomas. O futebol recebeu grande influência dessa evolução tecnológica, tanto na questão técnica e preparação física de atletas quanto na mercadológica, passando a constituir um evento midiático de grande interesse econômico por parte dos seus agentes e patrocinadores.

A partir da década de 1980, um grande fluxo de atletas brasileiros passou a se dirigir à Europa, pois esse mercado era (e continua sendo) atrativo pela possibilidade de altos salários e pela qualidade de vida que oferece aos seus cidadãos. Quando isso acontecia, geralmente o atleta caia no esquecimento do torcedor local, salvo quando demonstrava um rendimento acima da média em seus clubes estrangeiros e acabava convocado para servir à Seleção Brasileira. Atualmente, porém, muitos atletas fazem questão de expor suas vidas privadas nas redes e, mesmo os mais discretos, podem ser expostos por veículos midiáticos especializados em “fofocas em troca de cliques”.

Além de toda a pressão emocional a que estão sujeitos para o alcance do alto rendimento esportivo, atletas também começam desde muito jovens a construir a necessidade de trabalhar a sua imagem pública por meio das redes sociais, buscando alcançar o maior número de seguidores possível. No geral, quanto mais populares, maiores as chances de obter ganhos com investimentos de marketing e patrocínio de marcas, o que pode, inclusive, facilitar a sua contratação pelos clubes. Mas, não é só isso: muitos atletas passaram a depender emocionalmente das redes e da aceitação social que seus seguidores lhes proporcionam. Essa realidade tem produzido nos últimos anos uma verdadeira epidemia de depressão e outros transtornos psíquicos e emocionais em um grande espectro de pessoas que utilizam a internet para a autopromoção, como youtubers, influencers, atores, cantores, atletas, entre outros.

Longe de querer encerrar o assunto e tirar conclusões precipitadas sobre esse cenário, é importante compreendermos que estamos diante de um fato econômico, social e cultural, com importantes desdobramentos na forma como vivemos em sociedade.  A vida moderna passa a ser estruturada em torno de objetivos provisórios, superficiais que são confundidos com os fins. O indivíduo vive pressionado, tenso, esperando algo que nunca parece chegar e, suas finalidades últimas se perdem no horizonte.

O dinheiro e uma noção ilógica de poder se colocam entre o homem e o que ele quer, como se fossem facilitadores, criando a ilusão de que tudo pode ser alcançado através deles. O consumo desenfreado estimula a ansiedade, reproduzindo a ilusão que aquilo que vai lhe dar trégua pode ser obtido facilmente na posse de uma determinada quantia ou posição social. As propagandas são exemplos que parecem ser bem apropriados: elas exploram o universo simbólico dos consumidores sempre de forma hiperbólica, pois talvez do contrário, sem este estímulo adicional, não obtivessem o resultado desejado. Nesse momento de concretização do que o escritor Guy Debord ainda no séc. XX chamou de “sociedade do espetáculo” e em que vários clubes adotam o modelo de Sociedade Anônima do Futebol (SAF), mais do que nunca, as relações de trabalho com os atletas serão mediadas a partir de índices e métricas de “investimento x lucratividade”. Por isso, os clubes formadores e a sociedade como um todo deverão estar muito atentos à educação emocional dos nossos jovens atletas, para que possam desenvolver uma base sólida capaz de equilibrar o rendimento esportivo e a satisfação perante a vida.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Neurociência e Desempenho|Conteúdo Udof>Colunas

As possibilidades do Coaching no futebol

Crédito imagem: CONMEBOL/Divulgação

O processo de coaching vem ganhando muita atenção nos últimos anos. Cada vez mais questionado, entre profissionais de diversas áreas e contextos de atuação, a metodologia e as ferramentas apresentadas por diferentes instituições no mundo todo, ganhou espaço e popularidade graças à procura das pessoas pelo tal “processo que torna o indivíduo mais capaz de alcançar seus objetivos em uma ou diversas áreas da sua vida”.

Não é à toa que algumas instituições consagradas, como a Universidade de Harvard, já adotam de acordo com seus próprios cenários, assuntos relacionados ao desenvolvimento pessoal, como: felicidade, autoconhecimento, psicologia positiva e inteligência emocional. Até “pouco” tempo atrás, tais assuntos eram abordados de uma forma ainda singela apenas por psicólogos, com uma abordagem voltada para o desenvolvimento da saúde mental. Hoje em dia, percebe-se tais assuntos e outros relacionados às competências comportamentais, ganhando força ao se multiplicar “pelos olhos” do processo de Coaching.

Pois então, vamos lá. O que é o tal do Coaching propriamente dito?

Segundo Gallwey, o Coaching é uma relação de parceria (entre o profissional – coach e o cliente – coachee) que revela, ou liberta, o potencial das pessoas de forma a maximizar o seu desempenho. O processo ajuda o coachee a aprender ao invés de ensinar determinado conteúdo. ( Timothy Gallwey – Conhecido como fundador do processo de coaching,  e  Autor do Livro “ O jogo interior do tênis”)

O termo “coach” é proveniente do inglês e tem origem no mundo dos esportes com o trabalho de Gallwey, que em 1971 ao perceber que seus alunos de Tênis eram atormentados por muitos pensamentos que os impediam de ter mais concentração, atenção e foco, se dedicou a desenvolver uma nova consciência mental e comportamental em seus jogadores. Assim  fundando, aliado à base da psicologia esportiva  – o processo de coaching.

Desde lá o coach, conquistou muitas outras áreas de atuação, e ferramentas de trabalho. Podendo ser considerado hoje em dia, que coach é o papel que você assume quando se compromete a apoiar alguém a atingir determinado resultado. Normalmente visto como algo desafiador, em que coloca o indivíduo em movimento de aprendizado, evolução, e mudança, diante do cenário em que esta inserido.

 Visto como um processo eficiente em mapear o chamado momento atual, encontrar ferramentas eficazes para que o coachee,  se capacite a alcançar o estado desejado (objetivos traçados a serem atingidos), podemos considerar que estamos falando de um processo de autoconhecimento, com foco no desempenho comportamental bastante pragmático.

Diante de uma assertiva análise de perfil comportamental, bem como, o mapeamento de crenças mentais relacionadas à capacidade, merecimento e até identidade, gera-se durante o processo uma competência chamada autorresponsabilidade, diante dos resultados alcançados até então, proporcionando ao coachee um “ponto de virada” dentro do processo. Digamos que o sujeito que está realizando seu processo de Coaching, terá a oportunidade de adquirir com mais facilidade o controle mental e a consciência emocional necessária para obter melhores resultados.

E ao falar de melhoria contínua e alta performance, cabe citar a inteligência emocional, que está diretamente ligada ao autoconhecimento e identificação das emoções. Precisamos conhecê-las antes de gerenciá-las, não é mesmo?

Muitas vezes diante de situações corriqueiras da vida pessoal ou profissional, diante de uma partida bem ou mal jogada, situações de exposição, mudanças de time, de técnico, lesões, cansaço físico entre outras tantas conhecidas no universo do futebol, é perceptível que muito além do mental – existe nosso estado emocional que não nos da a garantia de que “o melhor será feito”, desde que ele esteja sendo vigiado e gerenciado pelo sujeito.

Temos cenários com algumas possibilidades já conhecidas da atuação do coach dentro do futebol, como facilitador para que o jogador consiga colocar de pra fora – em campo – todo seu potencial, utilizando técnicas para a superação de desafios mentais. Temos também exemplos de “trabalho de vestiário” – voltado para a sensibilização mental e emocional de forma coletiva com o time.  

Porém, acredito, que ainda podemos trazer o trabalho de treinamento mental (como prefiro chamar) de uma forma mais estruturada, previsível, contínua e aliada ao desenvolvimento cognitivo e comportamental do atleta e/ou time.

Outro ponto relevante a ser mencionado, é o trabalho direcionado não só para atletas, mas também para todo profissional que esteja direta ou indiretamente “jogando o jogo” e que tem sim, grande influencia no resultado obtido dentro de campo. Utilizando um pouco da minha experiência de mais de dez anos como psicóloga, posso considerar que todo e qualquer indivíduo que esteja em sua busca pela excelência mental e emocional, atingirá mais facilmente sua alta performance, independente do cargo ou papel que desempenhe, influenciando positivamente o ambiente de trabalho.

Independente da área de atuação, hoje percebe-se mais atenção das pessoas voltada para as competências comportamentais, inteligência emocional e foco nos resultados, de diferentes profissionais. E é justamente aí que o processo Coaching ganha espaço entre grandes empresas de diferentes seguimentos, na busca da alta performance de suas equipes/colaboradores. E dentro do futebol, não seria diferente.

Assuntos relacionados ao desenvolvimento humano, deixaram de ser tratados como específicos para determinados contextos, para se tornar amplamente necessários no mundo atual. Ao nos depararmos com a velocidade da evolução da Era digital, a rápida evolução da inteligência artificial, inevitavelmente precisamos de seres humanos mais inteligentes emocionalmente e aptos a controlar e reprogramar seus pensamentos, para que essa “pareceria” tenha sucesso.

Para finalizar, gostaria de destacar um exemplo real, onde as competências comportamentais foram muito bem utilizadas para a conquista do resultado desejado. José Mourinho, no documentário “The Playbook”, ressalta que durante sua trajetória de sucesso, tomar decisões baseadas na coragem foi o que o fez chegar tão longe. Claramente quando ele assume o comando do Porto, time de Portugal, relata que precisaria recuperar, de todos, os princípios da paixão pelo time, e para isso um dos seus principais critérios de escolha seria o perfil psicológico dos atletas. Apostaria em jogadores locais, que gerassem conexão com a torcida e resgatassem o espírito de competitividade. 

 Se comprometendo com a capacidade de vitória, baseado no desenvolvimento da sinergia do time, na conexão que acreditava ser capaz de gerar entre os atletas, e na autoconfiança, podemos aí entender como fatores psicológicos e comportamentais são primordiais quando bem analisados e trabalhados.

Ainda mais do que isso, para Mourinho, despertar o lado humano dos atletas, traz o conceito de família para dentro do time, e só assim, um poderá contar com o outro, numa relação mútua de confiança potencializadora da performance individual e coletiva, que se faz de um time, campeão.

Com propósitos alinhados, capacidades comportamentais fortalecidas, a mente bem treinada, a sinergia acontece. E o papel do coach, é facilitar todo esse processo dentro da comissão Técnica, elenco – time, e setores da organização do clube.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Neurociência e Desempenho|Conteúdo Udof>Colunas

O desempenho que brota da inteligência social: nova tendência no futebol?

No futebol, a surpresa que vem em caixinhas pode ser uma derrota inesperada, e assim tentamos compreender os fracassos de equipes que poderiam ser vencedoras. Futebol é um jogo de xadrez, e as peças tem personalidade, ego e podem agir influenciadas pelos seus desejos. Isso faz com que entrosamento e união de equipe sejam ingredientes ocultos de vitórias e ajudem a conquistar campeonatos. Jogadores fortemente ligados por um propósito de equipe podem atuar de forma diferenciada para vencer e superar desafios. No entanto, se agem com base em motivações de desempenho individual exaltando o nome que vai às costas antes de atuar pelo nome da frente da camisa, podem resumir seu desempenho a destaques individuais em oposição às tentativas de superação de uma equipe, e assim uma promessa vencedora de equipe campeã sucumbe ao egocentrismo e à individualidade.

Os times milionários e repletos de craques surpreendem de diversas maneiras. Jogadores valiosos como Ronaldo Fenômeno, Roberto Carlos, Figo, Zidane, Casillas, estrelavam o galáctico e aparentemente imbatível time do Real Madrid, tido como um dos favoritos em qualquer competição que disputasse, teve desempenho irreconhecível na temporada de 2002/2003(1). Outro caso, o time com o “ataque dos sonhos” do Flamengo de Romário, Sávio e Edmundo, teve igualmente desempenho desastroso no ano de 1995, após ser comemorado pela torcida e anunciado pela imprensa como imbatível, pois tinha “o melhor ataque do mundo”(2).

Podemos então afirmar que uma equipe com destacados jogadores juntos nem sempre significa garantia de time vencedor? Os exemplos citados anteriormente dão força a esse tipo de interpretação.

Um dos fatores que respondem a essa questão beira o óbvio para uma modalidade coletiva como é o futebol. É preciso haver conexão entre os membros de uma equipe. O neurocientista Daniel Goleman(3), reconhecido mundialmente pela sua publicação ‘Inteligência emocional’, afirma: “fomos programados para nos conectar”. Para Goleman, sempre que interagimos com alguém o cérebro cumpre sua função de mostrar-se sociável a outro cérebro. Essa ponte, segundo o autor, permite afetar ou influenciar as pessoas com quem interagimos em via de mão dupla, pois influenciamos e somos influenciados. A empatia é o potente ingrediente.

As relações empáticas são potencialmente nutridoras desse tipo de conexão, ainda que em interações mais simples e rotineiras como o cotidiano de treino ou em tarefas executadas pelos jogadores sob o comando de um técnico. Vamos um pouco mais além, pois consideramos também a emoção como fator determinante. O fator emocional é outro ingrediente que se mistura às experiências dos relacionamentos interpessoais. Se há uma força que sustenta as relações entre pessoas, sob emoção essa força se amplia, como mostrou Jürgen Klopp ao provocar uma experiência inusitada de superação aos jogadores do Mainz05 no início de sua carreira como treinador em 2001. O técnico, tomado como “diferente”, desde então, levou seus jogadores para enfrentar desafios da natureza, em um local próximo a um lago na Suécia, e ali vivenciaram juntos problemas e obstáculos totalmente diferentes para um jogador de futebol, o que os levou a nutrir um senso único de cooperação e ajuda mútua, com resultados positivos para coesão do grupo(4).

Em um ambiente de treinamento ou competição, jogadores que superam situações e problemas de diversos tipos com motivações conjuntas para buscar soluções aos desafios, tendem a estabelecer uma relação profunda de força mútua. Essas trocas potentes que miram a solução dão consistência aos elos emocionais de ligação entre membros de uma equipe, pois no jogo esportivo são as pessoas que importam para construção da solução de um problema. Aqui é legítimo afirmar que “sozinhos somos bons, juntos somos fortes”. Basta dar sentido positivo e produtivo ao significado de “juntos”, como a equipe se mostrar unida ou entrosada, compartilhando maneiras de perceber o jogo através dos pensamentos e ações.

As interações interpessoais operam como moduladores da experiência vivida, redefinindo aspectos-chave de nossa função cerebral à medida que orquestram nossas emoções. Significados positivos e construtivos vão levar o jogador a vivenciar emoções que alicerçam a experiência com ganhos e aprendizados. Em um ambiente esportivo, como é o futebol, se faz importante a capacidade de intervenção dos técnicos e treinadores para que auxiliem os jogadores a atribuir significados que levem a uma experiência geradoras de vínculos que possam se fortalecer no convívio em treinos e competições.

A Neurociência aponta que há uma variedade diferente de células cerebrais, os neurônios-espelho, que são capazes de detectar tanto os movimentos que a outra pessoa está prestes a fazer quanto seus sentimentos, e instantaneamente nos preparam para imitar os movimentos e sentir junto, como se soubéssemos o que se passa com a outra pessoa. Entendemos assim que o modo como nos conectamos com os outros tem uma importância inimaginável.

O conceito de empatia se refere também ao nível cognitivo. Quanto mais forte é nosso relacionamento com uma pessoa, maior a nossa propensão a sermos abertos e atentos a ela. Quanto mais história pessoal compartilharmos, mais prontamente sentiremos o que ela sente e mais parecidos serão os nossos pensamentos e reações a qualquer situação que surgir.

A empatia abre as portas para os relacionamentos autênticos e mais profundos, baseados no respeito de como as pessoas percebem o mundo e formam suas concepções sobre maneiras de pensamento ou conduta. Nos momentos empáticos, sentimos que a outra pessoa sabe como nos sentimos, e assim nos sentimos compreendidos.

Essa conexão é potencialmente impactante, já que ativam os relacionamentos saudáveis que representam estados de bem estar, ao passo que os relacionamentos tóxicos podem atuar como alavanca para o afastamento emocional entre pessoas. Algumas equipes percebem isso e buscam a mudança, conhecida como ‘virar a chave’, como foi o caso da Itália e sua vitoriosa campanha na Copa de 1982 na Espanha, ameaçada em seu início pela instabilidade emocional de seu grupo que se rendia a fatores extracampo. A equipe de Enzo Bearzot viveu a expressão de seu potencial e rumou à conquista da Copa quando um senso único de corações e mentes brotou no jogo contra a Argentina, e depois consolidou essa nova condição contra o Brasil no inesquecível jogo do estádio Sarriá, em Barcelona.

Estamos chegando ao momento em que os treinadores e técnicos necessitam desenvolver e expressar habilidades de gestão de pessoas, além das competências clássicas que os levam a dominar o conhecimento do jogo, tanto teórico quanto prático. Técnicos reconhecidos pela sua liderança e comando de grupo são revelados pelas frases como “tem o time nas mãos”, “é bom de vestiário”, o que nos leva a investigar sobre o que poderia significar ser inteligente com relação às necessidades coletivas do mundo esportivo do futebol. Disse Cristiano Ronaldo: “A experiência me fez entender que jogando em equipe e sendo solidário, se alcançam os maiores objetivos”(5).

Bibliografia consultada

(1)https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2020/12/12/casillas-galaticos-real-madrid.htm

(2)https://globoesporte.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/ha-25-anos-edmundo-chegava-ao-flamengo-para-atuar-com-romario-e-savio-relembre.ghtml

(3) GOLEMAN, D. Inteligência social: a ciência revolucionária das relações humanas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.

(4)https://bancada.pt/futebol/grandefutebol/klopp-o-pai-que-nao-lhe-dava-abebias-e-a-pre-epoca-do-mainz-sem-comida

(5) PERCY, A. Pensar com os pés. Rio de Janeiro: Sextante, 2014. p-110

Categorias
Áreas do Conhecimento>Neurociência e Desempenho|Conteúdo Udof>Colunas

A boa preparação: chave para o bom desempenho?

Existe uma máxima no mundo do futebol – “treino é treino, e jogo é jogo” -, que teria sido ditada por Didi, craque brasileiro e campeão mundial de 58, também conhecido pela imprensa internacional da época como o “Mr Football”. Conta-se que Didi costumava fazer um menor investimento de esforços físicos nos treinos. Admite-se que em sua concepção o craque economizava energia física e mental nos treinos para demonstrar empenho, técnica exuberante e lucidez nos jogos.

Essa máxima, que para muitos se tornou um lema, foi assinada por diversos jogadores e jogadoras na história do futebol. Diversos destinos semelhantes já se repetiram diversas vezes nas sagas dos jogadores bons de treino ou dos jogadores que se preservam para o jogo. No entanto observa-se que em ambos os casos há uma instabilidade de desempenho.  E o que impede jogadores e jogadoras com esse perfil de instabilidade de ter um desempenho notável repetido diversas vezes? Qual é a parcela do segredo para torná-los profissionais bem sucedidos que atuam como verdadeiros campeões?

Uma das chaves para a solução deste problema pode estar na preparação para o treino, que deve ser diferente da preparação para o jogo. Didi estava com os pés nos dois lados do campo. Ao mesmo tempo em que apontou a diferença dos contextos de treino e jogo, levanta-se a possibilidade de dar um tratamento adequado às práticas de treino, sem subestimá-lo quando falamos de motivação. Desta maneira, coloquemos treino e jogo, lado a lado, para podermos diferenciar os ambientes criados a partir do onde acontece, e de quem participa de suas ações. Perceberemos que os dois lados pertencem a um campo só.

O ambiente do treino comunica mais segurança, previsibilidade, rotina e permissão de erros, já que não há naquele evento uma disputa por pontos de um campeonato ou interferência do adversário ou da torcida. No treino é possível pensar o jogo, construir estratégias que podem ser testadas e revistas constantemente. A falta do acerto é mais tolerável, o foco na construção do bom desempenho tira o lugar das cobranças imediatas pelo chute certo e vitorioso que, espera-se, deverá vir no jogo. A emoção cede o lugar à razão pautada pela ciência e passividade do tempo, que distorce timidamente as experiências vividas por quem busca sua melhoria constante.

A atmosfera do jogo tem outros componentes. O desafio começa a ser vivido na preparação, no treino, e é inevitável que a ansiedade seja uma das expressões da ameaça que o adversário representa. Temos aqui um desafio a ser vivido, pois essa é a arena da competição que se torna o palco da realização dos sonhos de quem joga. Aqui é impossível viver sem as expectativas que ora alavancam o desempenho, ora frustram pela crueldade do gol sofrido no último minuto. A alegria se veste de decepção em poucas jogadas e a bússola da emoção é muitas vezes que determina a direção e a intensidade das ações. A razão se torna tímida e submissa à raiva provocada pelas injustiças da arbitragem, pelo medo da perda do controle do jogo, dispara a euforia pelos lances e gols incríveis e decisivos, ou destrona qualquer sensação de favoritismo diante da tristeza pela derrota inesperada.

Alguns estudiosos do esporte, como Terry Orlick, mostram o equilíbrio de fatores básicos quando destacam que o desempenho é fruto da soma da expressão das capacidades físicas à capacidade técnica e tática, temperados de maneira equilibrada pela rapidez das respostas psicológicas exigidas nas ações do jogo. Essa pode ser uma chave fundamental. Através de experiências bem sucedidas nos processos de preparação esportiva conduzidos pelo conhecimento científico, hoje entende-se que o treino deve se pautar pelo que é possível ser praticado diante do que se conhece do jogo, seja essa compreensão geral ou específica, orientada para enfrentar determinado adversário com suas características predominantes. Ou seja, a preparação de uma equipe de futebol deve se pautar e ter como referência o que essa equipe quer expressar no campo de jogo. A aproximação do treino em direção ao jogo, ou seja, o jogo a ser jogado moldará a estrutura e faces do treino, em uma convergência inevitável de seus contextos inicialmente distantes em características táticas e de emoção. Da suposta previsibilidade do treino à imprevisibilidade do jogo.

Em síntese, para que tenha sentido e eficácia, o treino deve representar e ter características determinantes do que é o jogo. E para que isso aconteça, é necessário que os treinadores criem estratégias eficazes de preparação, focando no que chamamos de estado interno do atleta. A dispersão e baixa motivação de jogadores para tarefas elaboradas pelos técnicos devido à falta de significativa importância que aqueles dão ao treinamento ou mesmo a estruturação inadequada destas práticas pelos treinadores, pode vir a diminuir o aproveitamento do potencial que atletas têm para o desenvolvimento de seu potencial. Os exercícios elaborados e dinâmicas ministradas pelos treinadores, bem como sua regência, tem influência direta na forma como os atletas se engajam no treino.

E como nós podemos perceber isso na prática?

Alguns jogadores se preparavam para elevar seu desempenho no treinamento e em jogos. Pelé era conhecido pela sua dedicação aos treinos específicos após o encerramento de uma sessão de treinamento. Costumava repetir diversas vezes algumas ações que gostaria de executar em campo, pois acreditava que seria mais fácil agir com base no que já conhecia. E assim podia criar. Em seu livro “Rendimiento Máximo” Charles Garfield relata que Pelé, antes de entrar para o campo e jogar, costumava deitar e colocar uma toalha cobrindo o rosto, em um exercício que o levava a lembrar-se dos tempos de infância em que jogava e se divertia. E depois, segundo o autor, Pelé vivenciava um estado interno que o permitia ‘fluir’ pelo jogo, como se ainda vivesse na liberdade de simplesmente jogar como o fazia na infância.

Cristiano Ronaldo é outro atleta que se destaca pela visão diferenciada de preparação para jogar. Focado em seus objetivos e orientado para o que deseja, ele se tornou uma referência do atleta de futebol que se empenha na aplicação aos treinos ministrados nos clubes onde joga, e desta maneira soma à sua preparação atividades extras que atendem necessidades que o treino, em sua avaliação, não dá conta. Através dos resultados que vem obtendo em sua brilhante carreira, Cristiano Ronaldo se mostra focado em metas, expressa energia e envolvimento durante os jogos, consegue se manter em alto nível de desempenho, mesmo diante de intensa exigência em treinos e jogos, e mostra lucidez ao criar oportunidades para enfrentar novos desafios com mudança de clube e aprender coisas novas, ainda que já tenha o reconhecimento do mundo sobre sua relevância para o futebol.

Tanto Pelé quanto Cristiano Ronaldo mostram claramente a importância de trabalhar com metas e aproveitar o máximo das experiências de preparação para o jogo. Kevin Keegan, ídolo inglês dos anos 70 e 80, disse certa vez: “Eu sempre tenho um alvo; entrar no time, jogar cada jogo, melhorar minha forma física e meus níveis de atuação”.

Para esses jogadores, a preparação é a chave do desempenho bem sucedido.

*Texto produzido a partir das discussões e contribuições dos integrantes do grupo de estudo Neurociência e Desempenho, da Universidade do Futebol

Referências da literatura.

GARFIELD, C.A.; BENNETT, H.Z. Rendimiento máximo. Barcelona: Martinez Roca, 1989.

ORLICK, T. Em busca da excelência. Porto Alegre: Artmed, 2009.

Categorias
Áreas do Conhecimento>Neurociência e Desempenho|Conteúdo Udof>Colunas

A pandemia mudou o jogo

A Pandemia impactou o mundo, transformou o modo de pensar a vida e hábitos da grande maioria de sua população. Também mudou os cenários corriqueiros em momentos de dúvidas e tensão, e o “normal” já não era mais o mesmo, criou-se a instabilidade dos fatos, nos deixando frente à fragilidade humana. O caos se instalou.

Hoje, estamos tendenciosos a ter uma visão mais atenta para o todo. Já ao o próximo, temos uma empatia traduzida que ao cuidar de mim, influencio diretamente o cuidado com o outro. Entretanto, até parece que esse aprendizado é uma competência comportamental básica demorada para assimilar. Agora, novos gatilhos emocionais foram acionados, dessa forma seguimos aprendendo e nos adaptando.

No futebol não foi diferente, o caos chegou, e pela primeira vez na história, tudo parou! Sim, estamos diante de um “novo normal”, que exige um poder de adaptação e reação nunca visto antes, trazendo para dentro nós traduções de novas referências mentais e novos sentimentos, que até então, não faziam parte das nossas lembranças.

Diante do protocolo obrigatório de segurança por conta da pandemia, os estádios estão vazios, os treinos iniciaram de forma individual e em casa, os vestiários e áreas internas dos clubes foram fechados, os colaboradores dos centros de treinamentos reduzidos para menor circulação de pessoas, os atletas e comissão têm uso obrigatório de máscaras protetoras e estão fazendo exames semanais do COVID. Junto com quem precisa sair para trabalhar, muitas vezes, vem o medo, medo de se expor ao vírus, medo de expor a família e de transmitir para algum ente querido sem se quer saber da sua própria contaminação.

Inseguranças e probabilidades obscuras são sentimentos que passaram a fazer parte do dia a dia dos atletas – que são antes de tudo seres humanos. Sim, seres humanos!!!

 Pode-se pensar que para a grande maioria da população mundial, apaixonada por futebol e que espera o grande espetáculo, dia de jogo do seu time, esta “visão de que o atleta é um ser humano comum a todos”, pode não ser tão facilmente absorvida, afinal, ele está lá se apresentando, “fazendo sua obrigação profissional” e esta é a parte da vida do atleta (quando ele está em jogo) que muitas vezes é facilmente julgada, pela grande maioria.

 Pois bem, talvez hoje o atleta possa ser percebido mais facilmente como um ser humano, que também sente medos, inseguranças, dores e dificuldades.  O jogo mudou fora e dentro dos gramados também, o cenário está diferente. As arquibancadas estão vazias, quem habitualmente frequentava os estádios, não está mais lá, desde o torcedor mais crítico até o maior incentivador. Algo mudou, e agora: o quanto isso interfere no desempenho de todos aqueles que estão dentro de campo?

 O jogo se transformou em um ambiente mais silencioso. Neste novo ambiente, ainda desconhecido e cercado de dúvidas para muitos esportistas, contrapõem-se o estado de jogo e o estado de treino.   O primeiro, o “estado de jogo”, é tomado como um contexto externo mais desafiador, diante do adversário que mobiliza sentimentos de ameaça, competitividade, ansiedade positiva e uma série de fatores internos que são influenciados também pelo estímulo da presença da torcida. Estas condições tendem a gerar respostas mais imediatas sobre a tomada de decisão com base emocional.  Talvez esse tal estado de jogo esteja tão silencioso quanto o “estado de treino”, entendido como um ambiente mais seguro, rotineiro, amigável, sem a interferência do adversário e da torcida, que tende a gerar respostas construídas por estímulo de repetição diante de um estado interno de maior conforto e segurança.

A motivação extrínseca, aquela força “da camisa 12”, evidencia-se com a presença da torcida, que empurra o time para o ataque e o segura na defesa, que se mostra através das sensações provocadas pela adrenalina imposta por este típico ambiente. Aqui estão os canais sensoriais captando estímulos externos (informações do ambiente) e influenciando o jogador e seu próprio corpo. Tais estímulos funcionam como pequenos impulsos elétricos que atingem o sistema nervoso central do indivíduo, casos da visão (do estádio cheio) e da audição (da torcida gritando), que potencializam a ação de garra pelo resultado positivo. Mas e agora, com o silêncio e a arquibancada vazia, de onde virá a motivação?

Os jogadores em campo, não tem mais o estímulo visual e auditivo que a torcida traz, uma variável importante a ser considerada na influência mental, emocional e comportamental dos seres humanos em atuação. O jogo mudou, o cenário está diferente.

Exige-se, assim, mais da motivação intrínseca, aquela força impulsionadora que é caracterizada por cada indivíduo como sua capacidade interna de mover-se para a ação. Exige-se mais do foco e concentração no jogo, exalta-se a prontidão de cada atleta em “empurrar seu próprio time” para o gol adversário. Tal motivação pode também ser comparada ao sentimento primário que acompanha a maioria dos atletas do futebol na sua infância, ou categorias de base, onde não há também tantos estímulos externos, e o jogo se faz principalmente pelo amor, diversão, criatividade, alegria, e “desejo de bola” daqueles meninos que estão em campo.

Bryant Cratty, reconhecido autor da Psicologia do Esporte, destaca que “somos todos cercados por uma constelação de valores que pode, a um dado momento, nos levar à ação ou nos reduzir à imobilidade” (1984, p. 36).   

Portanto, olhando de frente para o que este novo contexto nos mostra, destacam-se sinais de que quanto mais os clubes inovarem nas ações para potencializar ambas as motivações de seus atletas (interna e externamente), mais competitivos, competentes e assertivos serão os indivíduos atuando pelo resultado.

Referência bibliográfica:

CRATTY, Bryant J. Psicologia no Esporte. Rio de Janeiro, Prentice Hall do Brasil, 1984.