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A necessidade da polêmica

Palmeiras e Ponte Preta fizeram, em São Paulo, a mais chocha final de campeonatos estaduais pelo Brasil. Nada como o eletrizante Cruzeiro 5×0 Atlético-MG, ou como os emocionantes Flamengo 1×0 Botafogo e Juventude 1×0 Inter, na bacia das almas.
 
E a imprensa em São Paulo entrou no clima. Ficou chocha, não discutiu, não criou polêmica, não teve o que discutir diante de um jogo em que o Palmeiras foi bem na primeira etapa, sofrível na segunda e, mesmo assim, deixou claro o óbvio: será campeão estadual após 11 anos.
 
A polêmica não existiu, as mesas redondas não tiveram nenhum lance questionável na insossa partida para debater. O jogo não teve algo de diferente. Resultado: vamos falar dos outros Estaduais!!!!
 
Pois é: o domingão das mesas redondas ganhou um espaço para a depenada do Galo em Minas, para o cada vez mais polêmico Flamengo x Botafogo no Rio, até para o Ba-Vi na Bahia! Existe uma necessidade pela polêmica na imprensa esportiva que não há espaço para aquilo que é banal.
 
Ok, também somos assim quando estamos no nosso dia-a-dia. Prova disso foi o recente tremor de terra em cinco estados brasileiros. Quem sentiu o tremor sem dúvida contou em todos os detalhes o que viu, o que sentiu, o que pensou naquela hora.
 
É da mente humana querer fugir do que é o banal, do que é o dia-a-dia, do que é o cotidiano insosso. A imprensa age da mesma forma. Se Palmeiras e Santos (ou Corinthians) estivessem definindo o título paulista, mais uma vez os outros estaduais seriam ignorados pelas emissoras paulistas. Assim como, no Sul, as resenhas ficaram em cima da vitória no minuto derradeiro do Juventude. Ou, no Rio, só se discutiu a entrada decisiva de Obina no clássico.
 
Não tem como. A imprensa, assim como as pessoas, sente necessidade pela polêmica. E, num domingo em que não se teve polêmica no estado de São Paulo, o jeito foi buscar outros lugares para dar pano à discussão.
 
Ainda se o Valdívia tivesse levado o terceiro amarelo num lance discutível…

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Defender com bola

Em uma das muitas e boas discussões científico-futebolísticas no Café dos Notáveis, ressurgiu uma das questões mais divergentes desde os tempos da inauguração do Café: a posse de bola.
 
Há tempos estudos científicos em todo o mundo, avaliando competições profissionais de futebol em diversos países, apontam para o fato de que o tempo de posse de bola de uma equipe em um jogo não tem boa correlação com o resultado da partida (nem com o número de gols feitos por uma equipe).
 
Isso em outras palavras quer dizer que ter a bola sob posse da equipe por mais tempo durante os diversos momentos do jogo não será garantia de vitória na partida.
 
Claro, estou eu aqui generalizando o conceito “posse de bola”, não “destrinchando-o” de acordo com as regiões do campo em que ocorre, nem com a circunstância temporal da partida (por temporal entenda-se momento do jogo).
 
O fato é que, ela que já foi vedete de narradores e “especialistas” desportivos, tem no Brasil uma variedade de treinadores com propostas distintas de modelo de jogo relativas ao seu conceito.
 
Aí recorro então a um velho colega, que por seus afazeres nunca pode freqüentar as reuniões dos notáveis do Café: sir Istvi. Ele gostava de dizer aos seus alunos da faculdade de educação física que não utilizassem apitos em aulas e treinos de esportes em geral. Dizia que isso seguia na contramão da história porque resgatava tempos de repressão política em que as pessoas de não tinham liberdade para expressarem seus pensamentos.
 
Ora, quanto poder sir Istivi julgava ter um apito? Obviamente em nossas conversas eu tentava mostrar a ele que o problema não estava no objeto em si, mas qual o uso era feito dele. Um dia acabou por se render à minha fala quando combinei com um grupo de alunos seus uma intervenção prática daqueles argumentos que eu usava.
 
Gosto de lembrar essa história para falar sobre a posse de bola porque é exatamente o mesmo problema conceitual: ela e a questão do uso do apito.
 
A posse da bola em um jogo já foi tida como variável determinante do atacar e do defender. Em outras palavras, pesquisadores e especialistas brasileiros, franceses, portugueses e espanhóis sempre atribuíram o estar atacar às equipes com a bola sob sua posse, e o defender para as que não a tinham em seu poder.
 
É claro, somos tentados e induzidos a pensar assim. Mas pensar assim é não compreender o jogo em sua complexidade. Sem ter que me aprofundar nisso neste momento, posso dizer que novas frentes de pesquisa são contrárias a essa fragmentação conduzida pelo estar ou não estar com a bola.
 
Estar com a posse da bola pode ser uma estratégia de controle do jogo. Não necessariamente para buscar atacar e fazer o gol. Mas também para “descansar” enquanto se joga e para se defender através da posse da bola.
 
É claro. O desgaste físico-técnico-tático-emocional de uma partida pode ser influenciado pelo ritmo do jogar. E o ritmo do jogar, pode se bem incorporado a estratégia e ao modelo de jogo, ser controlado pela equipe que tem a posse de bola (independente desta estar ou não a buscar o ataque).
 
Da mesma forma, para fazer um gol a bola precisa ser “atirada” de alguma forma contra ele (o gol, a meta, etc.). Se partirmos do pressuposto de que os jogadores da própria equipe não farão isso contra sua própria meta, então o adversário só o conseguirá fazer se algum dos seus jogadores puder “tocar” na bola. Se a equipe conseguir, para tanto, manter a posse da bola sem necessariamente buscar o ataque, poderá estar eficientemente se defendendo com a bola.
 
Esse conceito já pode por diversas vezes ser visto com sucesso no futebol inglês, em alguns momentos do jogo, em algumas equipes comandadas por treinadores não ingleses. Obviamente, essa não é a única forma de se defender ou “descansar”. Mas é uma proposta diferenciada dentro dos modelos de jogo que normalmente vemos por aí.
 
Estou certo, porém, que desenvolver tal conceito não é tarefa das mais fáceis dentro da cultura “futeboleira”. Nem tão pouco é assunto totalmente “pacífico” em ambientes como o Café dos Notáveis. O fato é, que dentre as tantas coisas que dizem que não podem ser mais “inventadas” no futebol (porque nele já não há mais nada a se inventar – segundo os “boleiro-especialistas”) está aí um conceito com espaço para ser desenvolvido.
 
É claro que, como tantas outras questões tático-estratégicas do futebol, paira sobre a idéia de que a posse de bola nessa perspectiva pode deixar o jogo desacelerado e menos interessante; argumento com o qual não posso concordar.
 
O conceito de se defender com a bola, como vejo, não preconiza o simples ficar por ficar com a bola. Incentiva sim a percepção e a significação do estar coletivo e individual com a posse da bola. E perceber e dar significado possibilita a todo tempo ler o jogo para tomar qualquer decisão que promova o jogar bem (que é diferente do jogar bonito, mas não o exclui). E isso quer dizer que a qualquer desequilíbrio adversário a possibilidade de se buscar mais um ataque é parte da estratégia.
 
Para perder um jogo, talvez tenhamos quatro possibilidades conceituais (que se ramificam). Ou perde-se por erro de estratégia, ou por qualidade do adversário (individual e/ou coletiva), ou por erro na ação (individual do jogador ou coletiva da equipe), ou por fatores externos à lógica do jogo (exemplo, erro da arbitragem).
 
 
O erro de estratégia tem relação direta com a qualidade do adversário (individual e coletiva) porque a elaboração da estratégia deve levar em conta a tal “qualidade”.
 
As ações individuais e coletivas também podem ter relação com a atuação do treinador, mas não necessariamente com sua estratégia de jogo. Então a estratégia do treinador e a qualidade do adversário são variáveis diretamente relacionadas e dependentes da atuação do treinador através de sua estratégia de jogo (e portanto, da sua leitura do jogo).
 
A ação individual e coletiva de seus jogadores e equipe também estão atreladas a atuação do treinador, porém mais ao seu modelo de treino e processo de trabalho.
 
A última grande variável “fatores externos a lógica do jogo” é aquela de menor ou nenhuma responsabilidade do treinador e sua estratégia de jogo (ainda que particularmente poderia contestar essa afirmação – deixemos para outro momento).
 
Em resumo, das quatro grandes varáveis, duas (50%) têm relação direta com as decisões do treinador sobre sua estratégia de jogo. Os outros 50%, aparentemente ainda denotam a ele menor responsabilidade (mas volto a dizer: isso pode mudar!).
 
Defender-se com bola é uma estratégia dentro do modelo de jogo – que é proposto pelo treinador e que pode potencializar erros no início do processo. Os erros quando aparecem, são muitas vezes suficientes para fazer com que o planejamento tome outra direção. Mas o que deveria ocorre
r na verdade é o correto entendimento do processo para diagnóstico exato dos porquês dos erros. Somente assim eles podem ser corrigidos; e somente assim a vitória virá.
 

Mais uma vez eu insisto: quando não se sabe por que se ganha, também não se saberá por que se perdeu. E aí, o fundo do poço é o limite…

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Mais do mesmo

Mais uma publicação nacional, dessa vez uma mais especializada – a Exame – ressalta os avanços das classes econômicas do país. Mais precisamente, a última edição da revista apresenta algumas tendências de padrão de perfil dos novos consumidores que surgirão caso o momento econômico atravessado pelo país se consolide. Farei, aqui, uma breve análise do reflexo que cada um desses perfis pode ter no futuro do futebol nacional:
 
Tendência 1: O avanço das mulheres no mercado
 
A coisa boa: Gera um novo público para o futebol, que tende a exigir maiores condições de conforto e segurança, além de também atrair mais o público feminino. Na medida que clubes reconhecem o valor econômico desse público, eles devem criar mecanismos para atraí-lo, o que acaba sendo bom pra todo mundo. Além disso, o reflexo na venda de merchandising pode ser muito poderoso.
 
A coisa ruim: Com maior poder de decisão econômica familiar concentrado na mulher, o futebol arrisca perder o público jovem caso não ofereça condições de segurança necessárias, além de substituir o estádio por um outro passatempo em família mais cômodo. Além disso, possíveis conexões com jogadores ícones podem fortalecer o mercado externo e estagnar o mercado interno.
 
Tendência 2: Mais casais jovens sem filhos
 
A coisa boa: Casais novos tendem a ter mais dinheiro disponível para gastar com lazer. Entretanto, esse lazer precisa privilegiar o casal, e não os indivíduos, portanto precisa oferecer condições básicas, também, de segurança e conveniência. Além disso, a união com o clube pode ser mais uma maneira de expressar a união do casal e de criar uma identidade própria.
 
A coisa ruim: Sem filhos, não existe muito a necessidade de repassar tradições, um importante componente da cultura do futebol. Casais jovens sem filhos também são mais descompromissados e podem preferir uma viagem a um jogo de futebol. Caso o casal vá a um jogo e não goste da experiência, dificilmente eles voltarão ao estádio.
 
Tendência 3: Cresce o número de pessoas morando sozinhas
 
Coisa boa: Indivíduos com mais tempo livre, o que acarreta na busca por algum tipo de passatempo, e o futebol é um dos principais existentes. Sem responsabilidade, o solteiro pode ir a um jogo de futebol para confraternizar com os amigos, além de buscar maiores laços de aproximação com o clube, principalmente através da compra de produtos.
 
Coisa ruim: Como o indivíduo está teoricamente mais livre, ele pode buscar outras formas de entretenimento. Além disso, ao morar sozinho, o indivíduo concentra todos os seus custos, o que diminui a parcela que eventualmente pode ser utilizada para gastar com o futebol.
 
Tendência 4: Mais consumidores de meia-idade com alta renda
 
Coisa boa: Quanto mais velho, para o futebol, melhor. Quanto mais dinheiro, também. Se o futebol conseguir se aproximar, ganha não só a receita direta, mas também através de patrocínio e direitos de transmissão, além de outras parcerias.
 
Coisa ruim: Quanto mais dinheiro, mais opções para entretenimentos mais refinados. Quanto mais idade, também. E futebol não é uma coisa exatamente refinada.
 
Tendência 5: Uma vida mais longa e melhor
 
Coisa boa: Quanto mais velho, como dito acima, melhor. Afinal, depois de aposentados, sobra tempo e espaço para preocupações na cabeça das pessoas. Tempo e espaço que o futebol preenche muito bem.
 
Coisa ruim: Quanto mais velho, mais exigente a pessoa fica, principalmente com relação a conforto, comodidade e segurança. E, como se sabe, o futebol brasileiro dificilmente consegue oferecer isso.
 
O Brasil vai mudar. Mudará também o futebol?

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Direção responsável

No final, deu a lógica. Dentro de campo, Palmeiras e São Paulo fizeram um jogaço, com grandes chances dos dois lados e vitória na bola. Sem polêmica de arbitragem, com emoção de sobra e vitória daquele que foi melhor no cômpito geral.
 
Fora de campo a lógica também prevaleceu. Inflamados a semana toda pela imprensa e pelos dirigentes remunerados de cada um dos clubes, o clássico decisivo foi cercado pelo amadorismo e hostilidade, incompatíveis com a profissionalização do futebol.
 
Spray de pimenta no olho dos outros é refresco. O que falaremos então sobre a luz “acabar” justamente quando o Palmeiras sacramenta sua vitória? Ou quando os dois times entram na proteção de um túnel para não sofrerem com a torcida?
 
Em 1942, Palmeiras e São Paulo decidiram o Paulistão. Na véspera da partida, o então Palestra Itália acabava de deixar de existi. Líder invicto do torneio, o clube era pressionado, principalmente pelos são-paulinos, a mudar de nome para não ser fechado, sob a acusação de ligação com o fascismo italiano. Pura balela, mas que obrigou o time da colônia a deixar de ser Itália. Naquele jogo, o Palmeiras ganhou na bola. Irritado com o árbitro que marcou um pênalti, o São Paulo decidiu abandonar o jogo, e o Palmeiras nasceu campeão.
 
Junto com ele nasceu uma das rivalidades mais estúpidas do futebol. Se, em 1942, poucos anos após o início do profissionalismo, já era ridículo um time abandonar o campo, o que diremos em 2008, com mais de um século de Campeonato Paulista, quando um time joga spray de pimenta no vestiário do visitante?
 
Já que os dirigentes não conseguem se profissionalizar, cabe à imprensa assumir a direção responsável. Mas parece que os jornalistas necessitam da superficialidade para fazer o seu trabalho. Vide o “caso Isabella”. A cobertura do julgamento do pai e da madastra da menina teve efetivo quase tão grande quanto o de policiais para o clássico paulista de domingo.
 
A troco de quê? Qual a necessidade de mostrar as pessoas entrando e saíndo da delegacia? Qual o impacto disso na vida dos outros? O máximo que se conseguiu foi atrair um bando de pessoas revoltadas para colocar em risco a vida de quem mais estivesse por lá.
 
As duas semanas que antecederam os jogos de Palmeiras e São Paulo foram marcadas por uma overdose de cobertura desnecessária dos jornalistas. Em vez de focar em quem jogaria ou como os times jogariam, a imprensa decidiu acirrar aquela rivalidade de 60 anos atrás.
 
E os dirigentes morderam a isca, fazendo de um dos jogos que mais marcou a volta do charme do Paulistão um festival de bobeiras e amadorismo completo. Se a imprensa não tivesse perdido tanto tempo com bobagens será que o espetáculo não teria sido outro?

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Pressing alto ou defesa em linhas baixas?

Até o final da década de 80 e ainda em meados dos anos 90, não era incomum equipes de menor “qualidade técnica” assumirem, em jogos contra equipes tidas como mais fortes, uma postura extremamente defensiva e recuada com exacerbada preocupação em não sofrer gols.
Ainda que isso continue ocorrendo nos dias de hoje, aparece numa escala bem menor. O fato é que no futebol (como já mencionei outras vezes) a defesa sobressai ao ataque. Proporcionalmente a esportes como o basquete, handebol ou vôlei, o sistema ofensivo no futebol mostra ser de pouquíssima eficácia.
Então, se a idéia é não perder um jogo (e isso não significa ganhar), reforçar a idéia de dedicar as atenções à defesa parece ser tarefa não muito complicada.
Pois bem. É muito comum e típico de treinadores e jogadores de equipes tidas como mais fortes ressaltar a maior dificuldade de se enfrentar adversários que jogam recuados, fechados com o único e aparente objetivo de se defender. Sinceramente não posso concordar com isso.
Complicado, sem dúvida; mais difícil, não.
O jogo de futebol é matriz de um sem número de imprevisíveis situações-problema. Algumas exigem velozes e pontuais respostas; outras não precisam ser dadas tão rapidamente assim. O fato é que quanto menos tempo um jogador tem para responder a uma situação problema, maiores serão as dificuldades e exigências para sua melhor resposta. Quanto mais tempo maiores as chances de que ela (a resposta) seja satisfatória.
Como diria um membro antigo do Café dos Notáveis (“El Zago”), quando uma equipe joga com bloco recuado para marcar, consegue antes de mais nada, tornar o jogo ofensivo do adversário mais lento. Ora, espaço reduzido, muitos jogadores a marcar, resultado: velocidade de circulação da bola comprometida.
Isso me faz lembrar a lenda do “Guepardo raptado”. Segundo ela o mais rápido dos animais terrestres (de nome científico: Aciononyx jubatus ou em inglês “cheetah“), que faz da velocidade a sua principal arma de caça, certo dia fora raptado por cientistas curiosos. Os cientistas queriam saber como o guepardo, animal veloz das savanas, se comportaria em uma floresta de mata fechada. Depois de algumas horas, faminto, o guepardo avistou sua primeira possível presa a uns quinze metros de distância. Pronto para degustar seu almoço, armou o bote e acelerou em direção a sua “vítima”. Três metros depois “trombou” com uma árvore. A presa assustada tentou fugir. O guepardo, determinado, não se incomodou com o primeiro acidente e se arremessou novamente em direção a presa. Nova colisão (e assim sucessivamente até almoço se distanciar). Os dias se passaram e o musculoso, forte e veloz animal não conseguia caçar. Certos de que o guepardo morreria, os cientistas resolveram devolvê-lo ao habitat natural. Descuidados e certos da fraqueza do animal, o subestimaram e acabaram devorados por ele.
Podemos analisar a situação e as possibilidades dadas ao guepardo para sobreviver transferindo-as para o nosso bom e “velho” futebol.
Veloz, o guepardo era bom caçador no ambiente que lhe era natural. Sua principal característica; a velocidade. Ao mudar de ambiente, novas regras (novo jogo). Sua velocidade não podia ser desenvolvida; o espaço e os obstáculos não lhe permitiam. Deveria então se adaptar a nova situação. Teria pelo menos cinco opções. Uma delas, encontrar regiões da floresta onde “clareiras” pudessem ser aproveitadas para melhor desenvolvimento da velocidade (mas aí teria que esperar a presa “passar” pela região, ou criar uma estratégia para atraí-la). Outra seria criar emboscadas, para que ao invés de necessitar do desenvolvimento de grandes velocidades, fosse possível “pegar a vítima” de surpresa. Uma terceira seria adequar o paladar a cardápios que se movessem tão lentamente, que não fizesse diferença desenvolver grandes ou pequenas velocidades na caça. Por fim poderia mudar o ambiente, “derrubando” algumas árvores e criando um novo habitat, mais próximo daquele que era o seu natural – ou simplesmente em última instância, se entregar a situação e morrer nela.
No jogo de futebol, quando uma equipe enfrenta um adversário que tem como estratégia principal defender-se de forma recuada, em bloco e com todos os jogadores, como já mencionado, terá seu “jogo de velocidade” prejudicado.
A desaceleração do jogo interfere diretamente na estabilidade dos sistemas de defesa. Isso quer dizer que um jogo de ataque desacelerado proporciona menores dificuldades para a defesa se manter equilibrada. Se as possibilidades de desequilíbrio diminuem, menores as chances de desenvolvimento de situações de gol por parte da equipe que ataca.
Por outro lado, o tempo para tomar decisões e resolver situações-problema aumenta consideravelmente porque também aumentam as áreas do campo livres de pressão (já que o adversário que se defende acaba por concentrar suas dinâmicas de pressão no – e somente no – seu próprio campo defensivo).
Então o que fazer?
Antes de mais nada, alargar o campo de jogo. Isso por si só não resolve, mas é o início. Depois, outras alternativas:
a)     Buscar as “clareiras” no sistema defensivo adversário (o que não me parece muito eficiente, levando em conta que elas podem não existir, e se existirem podem ser transitórias – aí é necessário sincronizar seu aparecimento com a ação ofensiva);
b)     Criar emboscadas para as quais o adversário não esteja tão preparado porque estará a passar por momentos de maior instabilidade organizacional. Em outras palavras, investir em um jogo que ele não esteja preparado para jogar (por exemplo: equipes com essas características defensivas tendem a não estarem preparadas para transições ofensivas e/ou defensivas, e isso pode ser uma brecha);

c)     Criar situações que não tenham relação direta com a estratégia defensiva adversária; em que opor sua proposta de jogo não seja a principal questão (inve
stindo por exemplo em situações estratégicas de bola parada);
d)     Mudar o ambiente (no que já faz parte o “alargar o campo” através da distribuição geométrica dos jogadores em campo) através de estratégias que vou “preventivamente” não comentar.

Obviamente que essas são algumas alternativas (dentre tantas outras possibilidades possíveis a se discutir) que não necessariamente resultarão em gol – são só alternativas. Mas são elas, passos iniciais; importantes para não se entregar a situação.
A grande questão aqui é que jogar contra equipes que fazem “pressing alto” é mais complicado, na medida que esse tipo de jogo diminui o tempo entre o “pensar-agir”, proporcionando maiores dificuldades para construção do jogo e propiciando intensos e constantes momentos de instabilidade organizacional (de quem marca e de que é marcado). E isso pode potencializar as chances do perder, mas podem também as do ganhar.
Contra as equipes que marcam recuadas em bloco baixo, com grande número de jogadores (senão todos) seja talvez mais difícil o ganhar, mas também é mais difícil o perder. Por isso não se pode assumir serem maiores as dificuldades de enfrentar equipes com tal proposta de jogo.
Então colocar a “culpa” das dificuldades para se vencer, nos “blocos em linhas baixas” da estratégia defensiva de algumas equipes é o mesmo que se entregar a estratégia do adversário.
E aí nesse caso poderíamos concluir que até mesmo o guepardo deve estar mais bem preparado para resolver problemas do que equipes que confrontam as defesas das “linhas baixas” (porque não se sabe até hoje se ele – o guepardo – estava prestes a morrer, ou se estava fingindo para devorar os cientistas – estratégia!).
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Despedida de solteiro

Caros leitores da Universidade do Futebol,
 
Dedico-me nesta coluna a escrever a respeito do Campeonato Paulista da Série B, que terá seu início no próximo fim de semana.
 
A Série B (ou quarta divisão, pois encontra-se abaixo das séries A1, A2 e A3) ganhou nos últimos anos grande importância no cenário do futebol profissional brasileiro. Gradativamente, ela deve ganhar ainda maior relevância.
 
Para explicar o porquê de tal magnitude, voltamos o tempo para o final da década de 90, quando o Brasil deixou de adotar a lei do passe (em que os clubes perderam o vínculo desportivo com seus jogadores findo o contrato de trabalho). Remetemos o leitor também às recentes diretrizes editadas pela Fifa no sentido de evitar que terceiros interessados tenham qualquer direito sobre os direitos federativos (ou mesmo econômicos) dos atletas de futebol profissional.
 
Nesse cenário, equipes menores, sem grande expressão no cenário do futebol brasileiro atual, mas com menor nível de endividamento, tornaram-se atrativas ao negócio do futebol. Esses clubes passaram a desempenhar o papel de veículo para realização de negócios no futebol.
 
Grandes empresas (como a Red Bull e a Traffic) e novos empresários da bola (como o ex-zagueiro Oscar e o atual Roque Júnior) vislumbram em times que disputarão neste ano a Série B uma oportunidade de formar adequadamente jogadores jovens e talentosos que acabarão por alimentar o nosso futebol doméstico.
 
O que as empresas faziam em outros tempos com certa tranqüilidade (aquisição de direitos sobre jogadores), hoje somente o fazem (com a mesma tranqüilidade) através do gerenciamento, de forma profissional e organizada, de um clube de futebol devidamente filiado às federações estaduais. E, por estarem na última divisão, reduzem-se os custos (comparado às séries A2 e A3).
 
Esse avanço na ideologia empresarial tende a fortalecer, e muito, o futebol local.
 
É claro que a transferência de jogadores desses pequenos clubes ao exterior renderia maiores lucros a esses empresários. Porém, sabemos que um mesmo jogador vale muito mais se jogar no Palmeiras do que no Desportivo Brasil, por exemplo. Assim, os bons negócios desses clubes serão firmados (ou já estão firmados) com clubes do Brasil.
 
Assim, o massivo investimento que vemos hoje na Série B deverá promover, em um médio prazo, melhores times locais de primeira divisão.
 
Em contrapartida, a legislação aplicável (incluindo as regulamentações desportivas) passa a proteger os clubes formadores e, a cada momento, melhora também os mecanismos de exercício dos direitos desses formadores. Ou seja, o investimento torna-se ainda mais atrativo.
 
Se esse movimento tornar-se sustentável e duradouro, o mercado brasileiro será fortalecido, com benefícios não só aos investidores, como também aos clubes de maior expressão e também os atletas, que terão maior oportunidade para o sucesso.
 
Gostaria de finalizar esta coluna expressando uma grande satisfação em escrevê-la, posto que é histórica para mim. Marca o fim de uma fase profissional e pessoal. Profissional pelos motivos que deixarei para apresentar na próxima coluna; e pessoal, pelo motivo auto-explicativo do título da coluna.
 
Até a próxima!

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A conquista da derrota

O que você ganha com o futebol?
 
O que o futebol oferece para você?
 
Por que você paga para ter acesso ao futebol?
 
Ninguém sabe muito bem. Nem você, se bobear. E essas questões são fundamentais para uma perfeita compreensão do mercado. Afinal, qualquer mercado é estabelecido na inter-relação entre oferta e demanda. Agora, qual é a oferta e qual é a demanda do futebol?
 
Uma análise rápida, e talvez superficial, sugere que as pessoas pagam para ver o time ganhar um jogo. É para isso que elas gastam dinheiro e é isso que elas esperam poder consumir, uma vez que a vitória oferece sensações ímpares de satisfação e superioridade. Dessa forma, é possível entender o futebol como uma aposta: você investe na possibilidade de se sentir bem. Entretanto, o retorno não é garantido e depende de infinitas variáveis, tal qual uma aposta qualquer. E quanto mais dinheiro você gasta com um clube, maiores são as chances de ele conquistar a vitória, uma vez que com mais dinheiro disponível o clube consegue ter maior controle sobre as variáveis incidentes no resultado de um jogo. Portanto, quanto mais grana você gasta com o seu clube, maiores são as chances de você obter o que deseja, tal qual – novamente – uma aposta.
 
Mas como o público de um clube de futebol é muito grande, o seu dinheiro acaba significando muito pouco, logo o ideal é que você consiga angariar um número cada vez maior de torcedores, para que esses também possam gastar (e gerar) dinheiro, o que eventualmente também aumentará as suas possibilidades de obter o resultado desejado pelo dinheiro aplicado. Nesse caso, a torcida acaba virando uma grande aposta coletiva com fomento de base.
 
Entretanto, quando um apostador percebe que o dinheiro da sua aposta não incrementa as suas chances de ganhar, ele naturalmente deixa de apostar. Logo, quando um clube não consegue converter o capital proveniente da sua torcida em resultado em campo, ele está fadado ao fracasso.
 
Isso, porém, não é necessariamente verdade. Clubes conseguem sobreviver por um bom tempo mesmo sem apresentar resultado em campo, o que sugere que a idéia de que a torcida paga para ver o time ganhar não é necessariamente verdade. Muita gente tem estudado bastante sobre o que leva as pessoas a consumir futebol. Ainda não conseguiram chegar a uma resposta definitiva. Mas é certo que, no jogo, a vitória paga a aposta. Mas, aparentemente, a derrota paga também.

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Semeando o ódio

Na semana que passou, e nesta que se adentra, as diretorias de São Paulo e Palmeiras deram um espetáculo de incompetência, amadorismo e irresponsabilidade. A começar pela discussão de em qual estádio seria o confronto decisivo entre os times no Campeonato Paulista, passando pela evocação de momentos históricos e conturbados das duas equipes.

É digno o Palmeiras querer decidir em seu estádio uma partida semifinal de Paulistão. Só que isso não pode virar motivo para seus dirigentes, em companhia com os do São Paulo, incentivarem o ódio entre os seus torcedores.

“Eles nunca engoliram os italianinhos”, disseram os palmeirenses na semana passada.

“Ficamos preocupados com a decisão de se jogar no Palestra Itália”, devolveram, com ironia, os responsáveis pelo São Paulo.

O fato é que, em pleno futebol globalizado, modernizado e, especialmente, mercantilizado, é impensável que dois dos clubes de maior torcida do país tenham a infelicidade de serem comandados por pessoas irresponsáveis, que buscam atiçar a rivalidade de suas torcidas em vez de trabalhar para protagonizar o melhor espetáculo possível aos seus fãs.

Pela lógica do dinheiro, Palmeiras e São Paulo deveriam se enfrentar duas vezes no estádio do Morumbi, que seria dividido igualmente para os torcedores das duas equipes. Da mesma forma, a receita de bilheteria de ambas as partidas seria destinada igualitariamente entre os clubes. Para manter a neutralidade da disputa, cada equipe usaria um vestiário e um banco de reservas em cada uma das partidas.

Em vez de, como pessoas civilizadas, os dois clubes proporem tal acordo, seus dirigentes passaram a semana que passou duelando nos bastidores em troca do mando de campo no jogo decisivo. O Palmeiras saiu vitorioso ao conseguir levar a partida para o Palestra Itália. O São Paulo saiu atirando ao insinuar uma preocupação com a segurança de todos, sendo que há dois anos têm disputado, sem grandes problemas, partidas até mais decisivas no estádio palmeirense.

Dentro de campo a rivalidade pode e deve existir. Mas deve parar por aí. Marcos e Rogério Ceni, os capitães e bandeiras das duas equipes, são ex-colegas de seleção brasileira, campeões mundiais. Junior, Kléber e Denílson já jogaram dos dois lados. Vanderlei Luxemburgo e Muricy Ramalho são contemporâneos da bola.

Então por que seus dirigentes insistem em semear a discórdia? Por que é importante relembrar o passado, quando sem qualquer ética os clubes duelavam entre eles nos bastidores e com isso iam gerando mais ódio entre seus pares?

O futebol de hoje precisa, definitivamente, de uma discussão ética. O que palmeirenses e são-paulinos fizeram nos últimos dias foi simplesmente semear o que de pior há no sentimento entre as duas torcidas. E, depois, um joga no outro a culpa pela explosão de fúria dos torcedores.

Não há espaço para rivalidade nos bastidores da bola. Em vez de semear o ódio, Palmeiras e São Paulo deveriam trabalhar para gerar a civilidade entre os seus torcedores. Por que, em vez de duelarem para ver quem atua em qual estádio os cartolas não propusessem uma competição de qual torcida fará mais barulho no dia decisivo?

Com direito a medição de níveis de decibéis dos torcedores e premiação ao “campeão”. Sim, é uma idéia estapafúrdia, sem dúvida. Mas, pelo menos, ela não incentiva uma pessoa a tomar o lugar, a camisa, a bandeira ou a vida de outra.

 

Para interagir com o autor: erich@universidadedofutebol.com.br

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O rodízio defensivo e o treinador de tabuleiro

Ser treinador de futebol não é algo fácil, nem simples. Administrar egos (de jogadores e dirigentes), ajustar o pensamento da sua comissão técnica, tratar com a imprensa, conhecer de táticas de jogo, planejar estratégias, ganhar, perder jogos, confrontar consigo a cada fracasso as próprias verdades…
Para o seu sucesso, o que antes era o diferencial passou a ser o trivial.
Dia desses no Café dos Notáveis me deparei com uma curiosa situação. Um dos notáveis comentava a importância dos mais diversos conhecimentos (geometria, teoria do caos, gerenciamento de pessoas, informática) na vida de um treinador de futebol e o quanto cada um deles poderia ser decisivo para uma carreira de sucesso, cheia de conquistas e vitórias. Ao longe, uma folclórica figura do futebol, que quase nunca freqüenta o Café (conhecida como “Zé da Corneta”) observava atentamente as explanações. Ao final delas filosofou: “O quê? Geometria, informática? O futebol tá perdido”.
O Zé da Corneta é um “elemento” conhecido de certos ambientes futebolísticos. Nos arredores do Café dos Notáveis ficou conhecido, dentre outras coisas, por aventar que treinador que usa lousa ou prancheta é treinador de tabuleiro e que exemplo mesmo de competência na labuta mais cornetada das quatro linhas é o seu grande amigo (de quem já ganhou algumas garrafas de vinho e até viagem) Mister Argila.
Acho que o “Zé” representa bem o pensamento da sola do senso comum. A mesma sola que desbrava com força a tíbia (vulgo canela) de treinadores.
E aí mais uma vez, insisto; a vida de treinadores de futebol não é fácil, nem simples.
Na escola, aprendemos logo cedo em Física que um corpo qualquer que está parado tende a permanecer parado até que uma força, capaz de colocá-lo em movimento, seja aplicada sobre ele. Da mesma forma aprendemos que um corpo em movimento tende a permanecer em movimento a menos que uma força em sentido contrário ao seu movimento o faça parar. É a “Lei da Inércia”.
No futebol ela se manifesta sob a forma de “futinércia”. Têm como peculiaridade fazer as pessoas acreditarem que para serem treinadores de futebol basta reproduzirem aquilo que vivenciaram nos tempos de jogadores (e são tiverem sido jogadores?!). O que serviu ontem, serve hoje. O conhecimento de ontem é o aplicável hoje. O que se sabia é o que se deve saber. Ciência? Para quê, ela marca gol?
Diariamente ela (a futinércia) é reforçada na TV em programas esportivos (e também nos não esportivos), nos jornais, revistas, internet. Para aqueles que estão no futebol sem se mover o reforço é muito bem vindo.
Mas até quando e até onde vamos com isso?
Um dos alvos mais recentes da futinércia reforçada pelas mídias é o “Rodízio Defensivo” realizado por algumas equipes de futebol (e hoje não vou explicar o que é o tal; assim quem sabe os agentes reforçadores procuram se informar melhor do que se trata – só para evitar que associem Rodízio Defensivo com “substituição” de jogadores da defesa, ou algum novo serviço das churrascarias, adianto que ele trata de parte das estratégias de uma equipe para manutenção da posse da bola.
O reforço alardeia, em nome do “jogar sério”, que equipes não devem “brincar” no campo de defesa. Zagueiro, com a bola nos pés tem que “jogar simples”. Ou passa rápido ou chuta para frente. Tocar a bola para o goleiro; nem pensar (“haja coração!”).
Não sei se ele (o reforço) nasce da necessidade de se chamar a atenção e criar notícias ou se nasce da ignorância e do despreparo dos “profissionais” que se envolvem de alguma forma com o futebol.
Seria muito produtivo e salutar se o conhecimento científico entrasse com força no nosso esporte “bretão” e invadisse todos os ambientes associados a ele. Imagino o dia que um narrador esportivo, em sua seqüência de frases para comentar um jogo diga “A equipe “C” vai ao ataque, quase sempre com igualdade numérica. A boa amplitude dificulta o melhor posicionamento dos meias defensivos do adversário, o que está criando corredores entre os laterais e os zagueiros. O atacante “X” tem dado boa profundidade ao ataque e dificultado demais a compactação adversária. A boa estrutura do balanço defensivo está garantindo transições defensivas bastante eficientes”…
Frases carregadas de conceitos, de informação, de conhecimento.
E como os torcedores entenderiam isso?
Da mesma forma que a inércia do estar parado congela os saberes e promove o emburrecimento, a do movimento pode levar as pessoas ao despertar, a um novo mundo de informações e a um novo estado de criticidade.
E qual a relação disso tudo com a tática no futebol?
Grande e toda. Enquanto acreditarmos nos “Zés das Cornetas” e não dermos conta da existência da “futinércia”, colaboraremos para o surgimento dos mitos e tradições engessadas do futebol; e isso fará com que os treinadores de tabuleiro sejam caricaturas batizadas assim, porque “pensam”, simplesmente porque pensam!
Se valorizássemos aqueles que pensam, seríamos também estimulados a pensar; e aí o discurso de que no futebol não há mais nada para se inventar seria substituído pela desenfreada necessidade de se criar novas coisas para permanecer no topo, à frente dos concorrentes (técnica, tática e fisicamente).

Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br

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Trocando as bolas

Não nasci Bernardo. Adotei-o como alcunha por soar bem com eremita, minha condição atual, desde que compartilho o fundo desta caverna com uma variada fauna das trevas, entre ela um minúsculo mamífero que me serve de conselheiro espiritual e morcego correio. O quiróptero chama-se Oto, em homenagem a ninguém e sem qualquer alusão; apenas porque o nome me lembrou um morcego, ou porque o morcego me lembrou um nome. É com Oto que converso horas e dias a fio, posto que não há viva alma por aqui, a não ser alminhas inocentes de meus soturnos vizinhos. Se mantenho algumas ligações com o conturbado mundo do futebol, devo-o a Oto, meu minúsculo mensageiro.
 
Para que entendam o que faz um eremita quebrar seus votos, conto o fato que o precipitou. Tempos atrás recebi, para quem vive numa caverna, um insólito presente, trazido por um dos poucos amigos que me restaram. Acordei certa manhã com gritos à entrada. Atravessei os trinta ou quarenta metros de galerias que me separam dela para atender a voz insistente e remotamente conhecida. Não o autorizei a entrar, mas deixei-o falar. Trazia o aparelho, disse, em reconhecimento a um antigo favor que eu lhe fizera, graças ao qual por pouco não se tornou futebolista de profissão. Ora, não precisava agradecer, disse-lhe. Apenas ensinei-o a cortar caminhos no campo, de modo a evitar o cansaço correndo como bobo atrás dos adversários.


 
O aparelhinho luminoso serviria para alimentar meu antigo gosto pelo esporte bretão. E também para me animar a escrever uma ou outra linha sobre as coisas que eu veria e ouviria na tela do dito aparelho de televisão. Uma armadilha bem urdida, para me tirar do claustro. Mas, como poderia eu recusar tão pequeno favor ao menino João Paulo? Por isso, cá estou, trazido pelas asas do bom e fiel Oto, horas de confabulação com ele após o match que assistimos juntos no sábado.
 
O que motivou nossa conversa foram os comentários tenebrosos de afamados locutores, dois em especial. No primeiro dizia o arauto da bola que a defesa do chute à queima-roupa devia-se a um ato de puro reflexo do goalkeeper. O segundo comentário referia-se a um gol perdido, cara a cara, pelo centroavante, motivado por sua atitude infame de fechar os olhos no momento exato do cabeceio. Mantivesse os olhos abertos, insistia, e a bola teria se aninhado no fundo das malhas.
 
Fui aos alfarrábios, que por aqui são poucos e embolorados. Dei tratos à bola, não menos que 40 minutos, auxiliado por Oto. Dada minha consideração histórica pelos locutores de futebol – tenho uma foto de Fiori Gigliotti pendurada no teto da caverna -, não poderia emitir opinião precipitada. Oto não seria tão condescendente. Concluí, enfim, pelo pior: nosso glorioso porta-voz incorrera em equívoco, dos graves, arrastando ao erro, dada sua notória influência, milhões de telespectadores. Resumindo: o homem trocou as bolas.
 
Senão, vamos às provas.
 
Prezado leitor, com a devida cautela, e sem faltar-lhe com o respeito, submeta-se ao seguinte teste: peça para que arremessem, na exata direção de sua testa, uma bola, qualquer que seja seu tamanho. Macia, de preferência, para evitar contusões. Percebendo o projétil se aproximar a vinte, trinta quilômetros por hora, seu organismo mobilizará um mecanismo automático de proteção, um reflexo, e suas pálpebras se fecharão no momento do contato. Graças a isso, os órgãos mais preciosos de seu rosto, os olhos, manterão a integridade. No futebol, aquela grande esfera pesada se aproxima, geralmente, a velocidades bem maiores. Somente com enorme esforço para manter a consciência, um ou outro futebolista permanecerá de olhos abertos. Inutilmente, uma vez que, no momento do impacto com a bola, a direção que ele pretende dar a ela já estará definida.
 
Portanto, meu prezado jornalista, o jogador fecha os olhos para executar o cabeceio, não porque quer, mas involuntariamente. Reflexo é uma reação involuntária a um estímulo externo. Pode ser inato ou condicionado. No caso do nosso centroavante, é inato, e sinal de saúde.
 
Passemos à outra pérola. Reagisse nosso guarda-valas com um comportamento reflexo, como pretendia nosso afamado locutor, cairia ele em desgraça, ovacionado aos gritos de “frangueiro, frangueiro”, pela massa enfurecida das arquibancadas.
 
Meu querido locutor. Lamento contradizê-lo, mas o ato do goleiro em questão foi voluntário, ele saltou e defendeu a bola porque quis. Se há, em sua ação, movimentos automáticos, é pelos mesmos motivos pelos quais seu pezinho direito, prezado arauto, está neste exato instante balançando à revelia de sua vontade.
 
Suponhamos, meus caros leitores, que um belo dia um homem adulto, na infância um garoto sonhador, sendo goleiro, e dos bons, veja-se de repente desprovido de vontade própria. No meio de um jogo, subitamente, passa o eficiente goalkeeper a saltar sempre do mesmo jeito, por puro reflexo. A cada chute dos avantes, cai nosso homem sempre para o lado direito. Por sorte, o primeiro petardo ele defende; os demais, todos para a esquerda, estufam as malhas. Ao ser substituído pelo desesperado técnico, o placar já anota 5 a 0… para o adversário.
 
Que terrível troca de bolas: aquilo que era reflexo, nosso afamado locutor pretendia que fosse voluntário (os olhos fechados no cabeceio). O que era voluntário (a defesa do goleiro) ele queria que fosse reflexo.
 
Com tantas corujas e falcões pelo caminho, nem mesmo sei se o pergaminho que lhes envio chegará ao seu destino. Se o estão lendo é porque Oto sobreviveu.

* Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br