Por uma pedagogia da realidade no futebol – Tenhamos menos, sejamos mais

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Crédito imagem: Gustav Schultze, 1882/Wikimedia Commons

Na segunda metade do Século XIX, na fadada Alemanha Imperial, existiu um camarada chamado Friedrich Nietzsche, que, matuto das ideias, passou boa parte da vida escrevendo um número interessante de textos e que cento e tantos anos depois continua a impactar, do ponto de vista filosófico, o modo como você, corajoso e corajosa que insiste em gastar os olhos com a falação pedagógica deste escriba, e eu, obviamente, concebemos a linda – e absurda – existência humana. Nietzsche foi e continua sendo um dos baluartes da filosofia contemporânea e qualquer tentativa de sintetizar, em centenas de palavras, uma de suas reflexões que seja é um tanto pretensiosa. Ainda assim, vou ter a pachorra (qualquer coisa é culpa do Paulo) de aproveitar certo conceito de nosso amiguinho germânico para levantar a bola e continuar a discussão sobre treinadores, treinadoras e autonomia.

Nietzsche cunhou o termo übermensch, em português, ‘super-humano’ ou algo parecido, para ressaltar nossa fome de transcendência – a todo o tempo abafada. O ‘super-humano’ não é alguém dotado de poderes, inequívoco, perfeito. Está mais próximo, sim, de que alguém que, ao fugir de pragmatismos e convenções morais e compreender suas limitações, se liberta pelo devir: passa se afirmar na diferença entre o que se tornou e o que foi e entre o que será e o que é agora. ‘Torna-te quem tu és’ – desconfio que você, corajoso e corajosa, já deve ter ouvido, lido ou até mesmo se apropriado dessa expressão, ainda que apenas pela retórica. Eis uma explicação violentamente rasa do conceito – por isso, nada como a própria leitura das obras do filósofo alemão ou explicações conceituais um pouco mais densas, a exemplo do que faz o ótimo livro Razão Inadequada, mas suficientemente útil, creio, para darmos sequência ao raciocínio.

O ‘super-humano’ nietzschiano não tolera o conformismo. Por mais contraditório que seja, há um bocado dele no que tem sido vendido como revolucionário. Que atire a primeira pedra quem nunca idealizou algum estereótipo para si. Fiquemos com os treinadores e as treinadoras de esportes: quase que platonicamente, parecem correr atrás, o tempo todo, para alcançarem um certo tipo de arquétipo profissional, que tenha isso, aquilo e aquilo outro, que aja assim e assado e, claro, no fim das contas, vença. No mundo acadêmico, a busca por um modelo ‘ideal’ me parece traduzida pela quantidade voraz de produções científicas sobre quais competências são necessárias para que sejam, esses pobres indivíduos à beira do campo e da quadra, bem-sucedidos.

Que não confundamos alhos com bugalhos. A aproximação entre ciência e prática é tão necessária quanto os estudos que aprofundem o ato de treinar e a profissão treinador. Para desespero de viralatistas e negacionistas e apesar dos pesares, universidades públicas brasileiras – cito aqui, correndo o enorme risco de cometer injustiças, UNICAMP, USP, UFSC, UFG e UFAM – tem conduzido investigações sobre o desenvolvimento e prática profissional de treinadores e treinadoras, a partir de seus laboratórios e grupos de pesquisa, com primazia e sofisticação ímpares. Cabe ressaltar: a pedra fundamental desses estudos, que constituem o cerne da Pedagogia do Esporte, enquanto subcampo da Educação Física, foi assentada graças ao pioneirismo gnosiológico do Prof. Roberto Rodrigues Paes, lá nos anos 80.

O que não significa que todos eles estejam imunes a problematizações aqui e acolá.

Nossos bate-papos pedagógicos, vocês sabem, partem d’um ponto de vista ou da vista d’um ponto, que, se não presumem almejar a verdade absoluta, parece suficientemente relevante para ser destilado em palavras e causar uma ou outra disjuntura intencional. Pois bem: a noção de que treinadores e treinadoras devem refletir sobre suas ações, práticas e condutas, constitui grande parte dos programas de formação e chancelada por importantes autores e autoras da ciência pedagógica. Tais processos reflexivos, porém, correm riscos de sequestro epistemológico e serem guiados por um pensamento linear, racionalista e fechado, mesmo que diga confrontar pressupostos tradicionais de ensino, aprendizagem e treinamento. Isso porque esse ‘estado de consciência’, se enjaulado por um tipo de abstração que não desemboca em ação real contínua ou numa prática minimamente espontânea e intencional pode tanto beirar o infrutífero, quanto acabar desmascarado no médio prazo. O Paulo, o cara do texto passado, chamaria de ativismo.

O refletir sobre a própria prática, da parte de treinadores e treinadoras, não envolve apenas o ‘apagar de incêndio’, que caracteriza a perseguição pela coerência pragmática, na aula, no treinamento ou jogo. Nem deve carregar consigo uma espécie de auto panóptico – desculpe, Foucault, este escriba não sabe o que faz – para designar uma paranoia vigilante de dentro para dentro. Fiz isso. Mas poderia ter feito aquilo. Não, aquilo, não. Aquilo outro é o melhor. Mas antes tenho que refletir sobre. Preciso parar e pensar. Paro. Penso. Mas será que minha reflexão é correta? Devo, mas será que faço? Faço, mas será que devo?

Não faço. Quem sabe amanhã, porque o treino já acabou.

As reflexões são guiadas por certo fetiche à racionalização de competências basilares, visando uma dita excelência performática. Do hemisfério norte, emergiram importantes pesquisas que ressaltam a importância de conhecimentos de natureza interpessoal (ligada aos relacionamentos e conexões estabelecidas com os indivíduos ao redor), profissional (vinculada aos elementos tático-técnicos do jogo) e intrapessoal (atrelada ao relacionamento consigo mesmo ou mesma) ao treinador e treinadora de esportes.

A elaboração dessa tríade de conhecimentos tem enorme valor para a organização de ideias e procedimentos voltados ao desenvolvimento profissional de treinadores e treinadoras. Este que vos escreve, inclusive, fez uso proveitoso dela em uma investigação com jogadores e jogadoras de futebol profissional para levantar quais competências são mais apreciadas pelos protagonistas do jogo, que pode ser acessada gratuitamente aqui. Nos parece indiscutível que aptidões como liderança, gestão de pessoas e de relacionamentos, empatia, amor ao jogo e repertório tático sejam caras à profissão: elas, todavia, não são adquiridas com uma simples ‘googlada’, com um livro, um curso ou uma graduação completa no ensino superior.

O conformismo, a quem Nietzsche declarou ranço, adquiriu novos contornos sob a égide da positividade. Nos conformamos em parecer que estamos saindo da casca, sem, de fato, rompê-la de verdade – dentre outras coisas, porque é um processo não exatamente confortável. Ao invés de tornarmos quem somos, como sugeriu o germânico, fingimos vir a ser o que o convencional requer. Assim, treinadores e treinadoras buscam o elixir da boa vida pedagógica, em forma de competências, como se pudessem ser compradas em prateleiras de supermercado, como itens de uma lista de compras aguardando o check-list da caneta. Tenha isso, tenha aquilo, faça assim, faça assado.

E ser, será que alguém está sendo? No ‘Pedagogia do Esporte’, canal digital dirigido pelo amigo Lucas Leonardo, vi uma provocação interessante: será que tamanho número de diretrizes, determinações, passos e deveres não estão pasteurizando o ato de treinar? E os afetos e contextos, inerentes à ação pedagógica, não estão sucumbindo às generalizações das competências e reflexões a serem seguidas?

Desconfio que uma das saídas para essas armadilhas esteja no autoconhecimento. A noção crítica – e não idealizada – sobre o contexto real de trabalho e da infinidade de contradições que treinadores e treinadoras evocam a partir de suas crenças, concepções e valores: sobre quem são, porque são e como forjam seus conhecimentos. Por essas e outras, insistimos na epistemologia como preponderante nos processos de construção e relação com os saberes no campo pedagógico (levando em conta que o ensino é uma prática social viva e complexa) e, portanto, da prática – em consonância a que pedagogos importantes como o canadense Maurice Tardif e a brasileira Cecília Borges defendem. Entre o ter e o ser, a linha não é exatamente tênue e o fato d’os processos de formação voltarem-se mais ao primeiro verbo do que ao segundo é digno de sinal amarelo.

E isso sim, é ‘falação’.

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