Vinte e dois atrás de uma bola

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– Cansado, Oto?

– Rapaz, a gente estava jogando fruitbol. Fazia um calor danado no fundo da caverna.

Meu amigo de asas referia-se àquele joguinho que os morcegos aqui da caverna adoram jogar. Passam uma frutinha de boca em boca, tentando encaixá-la em um buraco na parede.

– Deu briga, Bernardo.

– Briga? Mas era só uma brincadeira.

– Ah, como se vocês humanos também não brigassem em qualquer brincadeira. Pior, até se matam. A gente tem umas briguinhas, mas todo mundo continua amigo.

Os morceguinhos ficavam eufóricos com o fruitbol. Jogavam horas seguidas e terminavam assim, esbaforidos, excitados. Terminado o jogo, Oto adorava me contar suas façanhas. Assisto a algumas partidas e nada do que ele conta é real. São fantasias, delírios, invenções de sua imaginação fértil, típicas daquele estado que costuma suceder o jogo.

– Tenho um primo em São Paulo que acha o nosso jogo uma besteira, uma perda de tempo. Sempre fala que não conhece nada mais estúpido que vinte e dois marmanjos correndo atrás de uma bola, ou vinte e dois morcegos, o que, para ele, dá na mesma – disse Oto.

– Imagino então que ele tem algum outro jeito de perder tempo – falei.

– Ele lê; nas prateleiras mais antigas das bibliotecas da USP. Mas para ele isso não é perder tempo – completou meu amigo – Diz que já voou até Coimbra, onde tem uma biblioteca muito frequentada por morcegos.

– Perder tempo é bom – prossegui – Quando o que fazemos não tem nenhum outro sentido que apenas viver, esse é o perder tempo que vale a pena.

– E correr atrás de uma bola é desse tipo de perder tempo? – perguntou Oto.

– É o que eu acho.

– Isso que vocês fazem, de ficar como doidos correndo atrás de uma bola para lá e para cá, gritando, chutando a canela um do outro, comemorando, xingando, brigando, serve para quê? – tornou a perguntar o morcego?

– Para nada – respondi.

– E tem alguma explicação?

– Para mim, nenhuma – respondi ao morcego.

– Dá mais saúde? – ele insistiu.

– Acho que isso não tem importância – eu disse.

– Produz o que? – o morcego teimou.

– Nada – eu falei.

– E não tem nenhuma outra importância, pequena que seja? – Oto já estava um tanto preocupado.

– Tanto quanto esta nossa conversa – arrematei.

– Mas para quê viver assim, sem utilidade, sem sentido, sem serventia? – perguntou Oto, acho que pensando lá no seu primo.

– É porque, quando se tira toda a utilidade de alguma coisa que a gente faz, e mesmo assim o gosto pela coisa continua, é porque vale a pena. Fazer por fazer é o mesmo que viver por viver – respondi.

– Mas, então isso é bom, faz bem, tem um sentido – concluiu o quiróptero.

– Se você quiser entender assim, que seja.

– Isso quer dizer que jogar futebol, correr como doido atrás de uma bola, é um bom jeito de viver – disse o morcego.

– É, é quando o que a gente faz é um fim e não um meio.

– Então perder tempo faz bem, Bernardo?

– O tempo que a gente tem é para ser perdido. Correr atrás de uma bola é uma boa maneira de fazer isso. A vida costuma ser melhor nesses momentos que naqueles em que fazemos coisas chamadas úteis. Às vezes basta viver, e isso pode ser feito correndo atrás de uma bola, conversando com você, ou dando cabriolas dentro da água, como nosso amigo Arnaldo, o bagre cego, aí no lago da caverna. Olha ali fora a coruja pousada há horas naquele galho seco, olhando, olhando… para onde? O que quer dizer isso?

– Você está me dizendo então que trabalhar é ruim? – perguntou o morcego com certo tom moralista na voz.

– Não dá para não trabalhar, senão a vida se acaba, não se sustenta. O trabalho equilibra esse perder tempo, que é o outro nome do jogo. Não se pode jogar indefinidamente, sem limites. Mas se a gente puder trabalhar e jogar ao mesmo tempo, melhor, não é? – acrescentei tentando responder ao meu amigo.

– Como se faz isso?

– Gostando muito do trabalho que a gente faz – respondi, tentando encerrar o assunto, que já me cansava.

Era tarde. Oto distraiu-se e esqueceu de sair com os amigos para caçar. Preferiu ficar comigo naquela conversa que não levava a nada. A noite ia alta. Os meteoritos se travestiam de estrelas, fragmentando-se contra a atmosfera, riscando de luzes a noite escura. As estrelas piscavam chamando a atenção. Aurora piou longamente e alçou voo para perder-se na noite. Tudo funcionava sem muito sentido, e em harmonia. Não era preciso pensar para entender tudo aquilo. No céu, vinte e duas estrelinhas corriam atrás de um cometa.

*Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br  

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