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A visão sistêmica e o jogo

Aos leitores da Universidade do Futebol, minhas desculpas.

Não tenho conseguido cumprir pontualmente a produção dos textos. Cabeça de treinador é algo que só se conhece vivendo muito de perto. E às vezes ainda ficam faltando alguns pontos a se conectar. Mesmo assim, posso garantir que não deixarei de produzir algo, ainda que só para “encher o saco” de vocês.

A coluna atual vem dar complemento às duas anteriores: “O futebol total e o jogo brasileiro” e “O jogo e as táticas coletivas”.

Juntas, elas representam uma linha moderna de entendimento do jogo de futebol e uma forma diferente de se trabalhar e têm sido o norte das minhas ideias na atual fase profissional.

Conceber, construir, analisar e interferir no jogo de forma sistêmica!

O que seria isso?

É simples: o jogo só existe como jogo – dois times, de onze jogadores cada, que se opõem em uma área de aproximadamente 7.000 metros quadrados, 17 regras que regulam a sua dinâmica e com os pés sendo o instrumento principal de manejo da bola para a maioria dos seus participantes.

O produto disso é uma infinidade de circunstâncias táticas que o torna sui generis dentre os esportes em forma de jogo. Por isso também não há como entendê-lo por partes. Quando o dissecamos em setores e ou detalhes táticos, devemos fazê-lo com o cuidado de não perder a relação que as partes têm entre si e com o próprio jogo.

Parece óbvio dizer isso, mas os futebolistas em geral insistem em preponderar o método cartesiano para entender e trabalhar o jogo: depois juntam as ações e as partes, setores e ou estruturas, achando que vai se chegar ao entendimento do todo. Na verdade, é mais ou menos assim que acontece, mas não é bem assim.

Será que dá para entender? Vamos tentar explicar, mesmo porque será difícil quebrar paradigmas sem entender e aceitar o conhecimento da complexidade sistêmica.

Para começar, vamos empregar corretamente o significado do “juntar”, que na visão sistêmica existe como a ação de interagir partes indissociáveis que se transformam em um todo maior. Um jogo simplesmente emendado não é um jogo.

É sutil a diferença de interpretação do jogo entre as propostas moderna e a tradicional, mas, como toda sutileza, produz respostas incríveis. O jogo muda, o treino muda, a visão e a competência do treinador mudam. Trabalhar o jogo em todos os âmbitos sob a perspectiva da complexidade sistêmica é conceber o universo das táticas individuais, de grupo e coletivas como responsáveis mutuamente por quase todos os fenômenos de campo.

O que fazer, como fazer, quando fazer e por que fazer em ações individuais, de grupo e coletivas se completam no significado do jogo. Quando a gente entra nessa discussão, parecemos interpretar o cachorro “correndo atrás do próprio rabo”, e não vamos chegar a lugar algum.

É provável que até saia fumaça das nossas cabeças ao pensarmos sob a perspectiva sistêmica! Mas não quero complicar o entendimento do leitor.

Posso garantir que é plenamente viável e necessário traduzir para a realidade do futebol o conceito da complexidade sistêmica. Tudo se transforma como em passe de mágica em treinos na forma de jogos simples e inteligentes. Tenho exercitado isso há anos e a cada treino e jogo sempre descubro novidades interessantes.

Tem muita gente complicando sem necessidade a interpretação e o trabalho desta nova forma de pensar e construir o jogo de futebol.

Vamos aproximando aos poucos da “vaca fria”! Não há como entender esse jogo sem percebê-lo como um todo. Nessa visão, não existe “defesa fraca”, “meio-campo inexistente”, “ataque inoperante”. O máximo que podemos admitir é que “algumas peças” não estão conforme as necessidades do coletivo e ou funções táticas e, por isso, são passíveis de troca. Mas o jogo tem por obrigação, que apresentar uma dinâmica que segue princípios e usa as táticas, individuais, de grupo e coletivas, que o permita existir como jogo. As peças e/ou estruturas vivem indissociavelmente em função de um “sistema” denominado jogo.

O jogo pelo jogo, o jogo através do jogo! Entender e trabalhar o jogo pela dinâmica do próprio jogo! Este é o preceito básico da Periodização Tática, metodologia de treinos e concepção de jogo que está mexendo com a cabeça dos treinadores no mundo.

Grande maioria, dentre os técnicos de futebol, sabe intuitivamente do que se trata, mas não está consciente da sua complexidade e funcionalidade. Por isso não consegue manejá-la. É tudo muito mais simples do que parece. É só treinar jogando intencionalmente, desenvolvendo recursos táticos para o jogo da sua equipe.

Conceber e treinar taticamente o jogo não quer dizer desprezar valências técnicas, físicas e psicológicas. Mesmo por que o treino em forma de jogo tem “superpoderes” que tratam de desenvolver as plenitudes individuais e coletivas demandadas no próprio jogo. Ainda assim, concebo os ciclos de treinos no futebol perfeitamente capazes de absorver enfoques físicos, técnicos e psicológicos em suas sessões. Além dos táticos, é claro.

Um segredo importante da Periodização Tática como metodologia de treinos para os esportes coletivos é sempre usar os componentes táticos do jogo, ainda que como pano de fundo, em todas as sessões.

A escola brasileira precisa ir fundo nessa forma de conceber e treinar o jogo para resgatar a organização tática do seu estilo de jogar. De tanto valorizarmos o nosso talento em habilidades individuais no manejo da bola, nos esquecemos do próprio jogo. O jogo do toque de bola e ações coletivas se perdeu com a supervalorização do individual. E, ao contrário do que muita gente boa pensa, não adianta criticar e ou apenas pedir aos jogadores e treinadores que façam o jogo taticamente bem jogado.

Aprender as lições do Barcelona é entender os conceitos táticos que regem o seu jogo e transformá-los em forma de treinar e jogar considerando a complexidade sistêmica da sua dinâmica. Tudo contextualizado à realidade brasileira.

Já afirmei e o continuo fazendo: o jogo brasileiro tem condições de ser tão produtivo quanto o do Barcelona ou ainda melhor. Será preciso tempo e mudança radical nos procedimentos atuais de treino e concepção do jogo.

Valorizar o passe em detrimento do drible na maior parte das circunstâncias táticas do jogo é mudança que demanda competência e tempo na aplicação de conteúdos. E estamos falando apenas de um dos importantes conceitos táticos do jogo dos catalães.

Até a próxima resenha.

Para interagir com o autor: ricardo@universidadedofutebol.com.br

 

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Uma palavra

“Uma vírgula muda tudo” era o slogan de uma campanha publicitária alusiva ao centenário de fundação da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

O material apresentava vários exemplos de como minúcias podem alterar radicalmente o significado de qualquer oração. Havia exemplos do quanto a pontuação podia atribuir valores (“23,4” ou “2,34”), instituir pausas (“Não, espere” ou “Não espere”) e até representar opiniões contraditórias (“Não queremos saber” ou “Não, queremos saber”).

Se o emprego da vírgula pode causar um estrago tão grande, usar uma palavra pressupõe responsabilidade ainda maior. Há muitos vocábulos cujas acepções são popularmente distorcidas. É o caso de “medíocre”, termo usado muitas vezes em contextos extremamente pejorativos, mas que significa “mediano”, “banal” ou “ordinário”.

A distorção semântica em torno da palavra “medíocre” veio à cabeça quando pululou na imprensa esportiva do Brasil o vocábulo “irrecuperável”.

O adjetivo foi usado pelo presidente do Santos Futebol Clube, Luis Álvaro de Oliveira Ribeiro, em entrevista ao repórter Jamil Chade, de “O Estado de S. Paulo”. Em encontro na Suíça, o dirigente brasileiro foi interpelado pelo jornalista sobre a transferência do meia Paulo Henrique Ganso para o São Paulo.

“Vão ter de acompanhar com muito cuidado o jogador. Na minha opinião, o que ele tem é incurável”. Essa foi, ipsis litteris, a declaração de Luis Álvaro que o jornal paulistano publicou. Foi o suficiente para a condição física de Paulo Henrique Ganso ser dissecada em diferentes veículos de mídia.

Paulo Henrique Ganso, 23, chegou ao Santos em 2005, ainda nas categorias de base. No profissional, o meia tornou-se um dos alicerces do elenco que ergueu três taças do Campeonato Paulista (2010, 2011 e 2012), uma da Copa Kia do Brasil (2010) e uma da Copa Santander Libertadores (2011).

Canhoto, esguio e eficiente no passe, Ganso também chamou atenção por ter um estilo de jogo que atualmente é raro. Em poucos meses, passou a ser tratado como o favorito a vestir a camisa 10 da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2014.

A trajetória do meia, contudo, nunca teve consistência. Assim como a ascensão foi extremamente rápida, o bom momento físico e técnico foi efêmero.

Ganso sofreu uma intervenção cirúrgica no joelho – a segunda do atleta, que já havia sido operado quando ainda estava nas categorias de base. Todo o histórico de lesões virou lenha na fogueira que Luis Álvaro de Oliveira Ribeiro iniciou com a entrevista a “O Estado de S. Paulo”.

Via site oficial do Santos, o presidente emitiu nota para desmentir o teor da declaração. “Gostaria de esclarecer de forma veemente que em nenhum momento afirmei que a contusão do atleta Paulo Henrique Ganso é incurável”, diz o texto de Luis Álvaro.

Não, nunca afirmou. Isso é axiomático. Dizer que “O que ele tem é incurável” é muito diferente de dizer que “a lesão dele é incurável”. Sabe a história de “uma vírgula muda tudo”?

A discussão que não apareceu é que as duas histórias podem ser verdadeiras. Luis Álvaro pode ter dito que a situação de Ganso é incurável, mas pode ter feito referência a algo muito mais amplo do que a condição física.

A saída de Ganso do Santos foi precedida por intenso desgaste. O grupo econômico DIS, que detém um percentual dos direitos do atleta, tinha um problema com a diretoria do clube alvinegro. A indefinição sobre o futuro do camisa 10 acirrou essa discussão a ponto de criar um ambiente hostil para o jogador.

Dizer que o ambiente hostil é apenas um reflexo disso, porém, seria um reducionismo complicado. O problema de Paulo Henrique Ganso sempre foi maior do que o físico, o técnico ou o emocional.
O grande drama dele é a comparação constante entre o que ele é hoje e o que ele tem potencial para ser. A frustração advinda desse choque é que pode ser realmente incurável.

Analisar sutilezas como essas é um dos trabalhos mais importantes para qualquer jornalista. Geneton Moraes Neto disse uma vez que a regra básica para uma entrevista é fazer a pergunta: “Por que esse cara quer me enganar?”. Não são raros os textos que comparam entrevistas e danças.

Mais importante do que a declaração de Luis Álvaro de Oliveira Ribeiro sobre Paulo Henrique Ganso é o recado implícito.

Há vários subtextos possíveis, que vão desde um questionamento sistêmico sobre o rendimento do meia (como o que este texto apresenta, aliás) até um simples subterfúgio para amenizar a perda no elenco do Santos.

Limitar o debate à condição física é ficar apenas em uma camada de algo multidimensional. Quem mais perde com isso é o consumidor da notícia.

Para interagir com o autor: guilherme.costa@universidadedofutebol.com.br