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Quem conta a história

Jacques Lacan, um dos maiores teóricos da comunicação, certa vez usou o seguinte exemplo para explicar a relevância do tema: "Uma cadeira está em uma sala, mas a percepção sobre isso só acontece a partir do momento em que alguém diz isso".

De uma forma extrema, é como se o elemento só existisse porque alguém o nota. Quem conta a história é tão importante quanto o fato.

Não são raros os exemplos de livros e filmes que se tornaram clássicos a despeito de terem tramas rasas. Muitas vezes, o que define a qualidade de uma história é como ela é contada.

Em um exemplo mais cotidiano, para facilitar o entendimento, é como uma piada. A brincadeira pode até ser sem graça, mas um bom intérprete dá a ela um ritmo e um formato interessantes. Nas mãos de um contador ruim, porém, até uma anedota muito divertida pode perder o élan.

Não vi ao vivo o jogo do São Paulo no último fim de semana. Horas depois, li relatos de portais e redes sociais sobre a vitória da equipe tricolor. Pincei expressões como "frango histórico" e "erro bizarro" para descrever a falha de Rogério Ceni no primeiro gol do Ituano.

A falha de Ceni foi expressiva, e isso é claro. No entanto, quando assisti ao lance, não notei nada de "histórico". O esporte, assim como a vida, é uma enorme sucessão de erros.

Temos uma tendência, sobretudo no Brasil, para o rótulo. O esporte mimetiza isso, e o herói de um fim de semana pode ser questionado na partida – ou até no lance – seguinte.

Em dezembro, quando foi eleito pela Fifa o melhor em campo na decisão do Mundial de clubes, Cássio foi alçado ao patamar de herói. Em 90 minutos, tornou-se um goleiro de talento acima da média e de futuro certo na seleção.

Acabou o ano, e Cássio perdeu o início da temporada 2013 por estar no departamento médico. Voltou à meta do Corinthians contra o São Caetano, e falhou feio no segundo jogo, contra o Palmeiras, no último fim de semana. O camisa 12 tentou cortar um cruzamento de Wesley, mas errou a bola e socou o ar. Atrás dele, Vinícius marcou de cabeça o segundo gol alviverde no empate por 2 a 2.

Os 90 minutos contra o Chelsea não são suficientes para julgar Cássio. Os 90 minutos contra o Palmeiras, tampouco. Análises açodadas podem pespegar em atletas algumas características extremamente injustas.

Pense em quantos jogadores de futebol foram "queimados" por um lance ou por um jogo ruim. Muitos deles mudaram de clube e reagiram. Outros sucumbiram ao julgamento popular.

Sempre que vejo julgamentos apressados, lembro de um exemplo extremo. Em 1994, um colégio foi fechado em São Paulo. Proprietários e uma professora foram acusados de abusar sexualmente de alunos de quatro anos. A mídia e o público julgaram prontamente, e a escola Base foi transformada em antro de tudo ruim.

A vida dos envolvidos no caso foi totalmente estraçalhada. E depois, a Justiça mostrou que todos eram inocentes. Mas quem vai restaurar o abalo causado pelo julgamento público a que eles foram submetidos anteriormente?

Na madrugada de quinta-feira, o sul-africano Oscar Pistorius foi preso. Ele é o principal suspeito de ter assassinado a namorada, Reeva Stenkamp, que trabalhava como modelo e levou quatro tiros na mansão do atleta.

O caso levou a fabricante de material esportivo Nike a interromper uma campanha que era protagonizada por Pistorius. Contudo, a empresa emitiu comunicado oficial para dizer que o contrato com o atleta não será rompido até que a Justiça conclua as investigações.

O mesmo tom cauteloso foi adotado pela BT, empresa de telecomunicações que também patrocina Pistorius. Em nota à imprensa, a companhia pediu calma antes de definir o que será da parceria com o atleta.

As posturas de Nike e BT são exemplos de como a comunicação deve se portar diante de um escândalo. Manter associação com o atleta pode até causar algum problema para as empresas se ele for condenado, mas deixá-lo agora seria fazer um julgamento extremamente precipitado.

É claro que o caso de Pistorius é extremo e que extrapola os limites do esporte. Mas se a cautela é um caminho evidente nessa situação, por que não usamos a mesma parcimônia em análises cotidianas sobre o esporte?

Se fôssemos mais comedidos, evitaríamos a criação de heróis inconsistentes. E isso vale para mídia, clubes, entidades e empresas.

Há um conto de Julio Cortázar no livro "Todos os fogos o fogo" em que os personagens alteram constantemente, às vezes em um mesmo parágrafo, o comando da narrativa. Cada um relata os fatos de um modo, e a sobreposição forma a história.

Na vida, infelizmente, são raros os momentos em que mais de uma pessoa conta uma versão sobre um fato. "A história é contada pelos vencedores", diz o aforismo.

Quem trabalha com comunicação precisa ter a exata dimensão do que isso representa. Singelezas no texto ou na postura podem mudar radicalmente o rumo de uma história.

Tive um professor que era radical ao projetar o futuro ideal para a comunicação. Ele não acreditava em imparcialidade, e por isso achava que um caminho viável era o caminho radicalmente oposto.

No esporte, por exemplo, o professor defendia a adoção de relatos tendenciosos e direcionados. Eles seriam cruzados com os dados dos leitores ou espectadores – um torcedor do Flamengo teria uma visão sobre o clássico do último domingo, mas o adepto do Botafogo veria uma versão radicalmente diferente.

Não sei se esse é o futuro para a comunicação, mas considero o caminho mais honesto. A publicação que defende abertamente um candidato é mais verdadeira na cobertura política, ainda que seja parcial.

Tenho amigos que só leem relatos de jogos nos sites oficiais dos times de seus corações. Assim, evitam ficar nervosos com análises falsamente imparciais.

O problema é encontrar o limite para esse conteúdo parcial. O site da Ponte Preta é um caso de quem extrapolou. No último domingo, a página replicou piada de redes sociais e disse que Neymar havia sido expulso no jogo contra a equipe de Campinas apenas para poder ver a participação da namorada em um programa de TV. Foi uma tentativa de fazer graça, ok, mas é o tipo de provocação desnecessária e desmedida.

Quem conta influencia a história. Não há como ser de outra forma. No esporte, que vive de heróis e vilões, é fundamental que os cronistas saibam conduzir dicotomias e resolver conflitos, mas que não busquem saídas definitivas. As certezas são tão volúveis quanto ameaçadoras.

Para interagir com o autor: guilherme.costa@universidadedofutebol.com.br

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Você não conhece Bo

Seria possível alguém ser tão bom em dois esportes simultaneamente? E ainda, em nível profissional de atuação? Como se, por exemplo, no Brasil, um atleta de vôlei jogar de centroavante ou zagueiro num clube da Série A do futebol?

Você deve se perguntar se isso já existiu alguma vez, em algum lugar do mundo. Eu também tive esta reação: duvidar, até com certo riso de ironia, se isso seria possível em um mundo de limitações ao talento, particularmente em tempos de competitividade acirrada.

Pois saiba que esta história existe e o personagem ainda vive para incontáveis horas de reflexão, deleite e perplexidade. Vincent "Bo" Jackson foi um garoto-prodígio dos EUA. Desde adolescente, era um fenômeno no atletismo do colégio na mesma proporção em que rebatia bolas no beisebol e corria centenas de jardas no futebol americano.

Sua trajetória está muito bem retratada no documentário da ESPN Films intitulado You don’t know Bo (Você não conhece Bo).

 

Dentre seus feitos, foi o único até hoje a figurar em All-Star Game de dois esportes diferentes nos EUA; ganhou o troféu Heisman como melhor jogador universitário do país e o recorde de 100 m em menor tempo no futebol americano.

Intercalava sua atuação entre temporada de beisebol e de futebol americano, mantendo o mesmo nível físico e técnico. Foi um dos primeiros garotos-propaganda da Nike, ao estrelar uma campanha famosíssima que brincava com o fato de que Bo sabia fazer tudo (Bo knows), além de estrelar videogames.

Sua carreira foi prejudicada e dirigida ao final após uma grave lesão no quadril, quando estava no auge e tudo indicava que iria quebrar muitos recordes. Talento puro, pois os treinadores e ele mesmo diziam que não precisava treinar, ou somente muito pouco, para absorver os fundamentos dos dois esportes.

Hoje, outro ícone do esporte mundial, Michael Jordan, completa 50 anos de idade. Todos os números e feitos de Jordan são superlativos e inesquecíveis.

Jordan, de fato, também desfrutava de um talento inato. Porém, ao contrário de Bo, alguns episódios de insucesso em sua infância e juventude forjaram sua obsessão pela dedicação, treinamento, persistência e convicção que errar era preciso.

Sim, errar era preciso, pois isso o fez buscar sempre a evolução. Seu irmão mais velho era também o mais talentoso em casa. Isso lhe impulsionava a treinar mais para não ficar atrás. Suas mais irmãs estudavam mais do que ele.

No colégio, foi cortado do time. Na faculdade, seu colega de quarto foi escolhido o jogador do ano – embora ele discordasse. Nem entrou na lista de prováveis promessas da universidade.

Em 14 temporadas na NBA fez a história se lembrar dele como o melhor de todos. Porque, em todo treino, levava todos do grupo ao limite, inspirando-lhes vontade de competir e avançar.

"Um dia você pode olhar e me ver jogando aos 50. Não riam. Nunca diga nunca. Porque limite, assim como medos, frequentemente são apenas ilusões", afirmou Jordan.

E como diz Jorge Valdano, um dos fatores mais importantes para o talento evoluir é que se lhe dê e se lhe tenha confiança. Seja para Bo ou para Jordan.

Para interagir com o autor: barp@universidadedofutebol.com.br