Sou apaixonado por ligas esportivas dos Estados Unidos. Mais do que isso, sou apaixonado por como os norte-americanos tratam o esporte. No entanto, há um aspecto em que eu considero frustrante a experiência que eles promovem: o público.
As ligas dos Estados Unidos são o exemplo mais burilado de como o espectador de esporte deve ser abordado. Quem frequenta arenas do país, independentemente da modalidade, é visto como um consumidor. Há uma combinação extremamente competente de conforto, serviços e produtos. Ah, e de emoção no jogo, o que é fundamental para fomentar a relação do público com o restante.
Contudo, o modelo norte-americano freia o que adiciona muito à experiência de outros pontos do planeta: a emoção da plateia. Não que os espectadores sejam menos fanáticos ou menos dedicados a seus times nos Estados Unidos, mas a relação, ao menos durante o jogo, é menos emocional.
E para quem nasceu em um país tão passional quanto o Brasil, a emoção do público é um elemento fundamental para qualquer esporte. É um elemento indissociável do modelo que sempre nos foi impingido como ideal.
O problema é que todo comportamento extremamente passional oferece riscos. A ausência de comedimento está sempre a um passo de extrapolar qualquer limite.
Pense em quantas vezes você teve uma atitude extrema em um momento de emoção aflorada. Pense em quantas dessas atitudes extremas, como choro, gritos ou brigas com o vizinho de janela, foram relacionadas ao esporte.
Quando esse comportamento é individual, o risco é bem menor. Em grupo, sobretudo quando o que une é justamente o sentimento pelo jogo, a tendência é que as reações sejam exacerbadas.
Porque o esporte proporciona união entre pessoas que têm paixões similares. Isso, é claro, gera sensação de pertencimento. E em nome do pertencimento surgem demonstrações de compromisso, como rituais, uniformes e gírias coletivas.
Controlar grupos é sempre uma tarefa complicada. Durante anos, a China coibiu qualquer tipo de manifestação popular – o esporte, inclusive – por medo de isso servir como mote para agrupamentos contrários ao poder. Sobre isso, veja um filme chamado "A onda" ("Die Welle", no original), dirigido por Dennis Gansel.
O longa-metragem alemão relata uma experiência vivida em uma escola. Um professor faz um experimento com alunos sobre manipulação de massas e surgimento de ditaduras, e o plano começa com a formação de um grupo uniforme.
O esporte, notadamente o futebol, vive um dilema muito parecido. Fomentar a existência de grupos associados a um time acrescenta emoção e devoção ao jogo, mas também facilita manipulação e atos extremos.
A manipulação de massas, evidentemente, é terra prolífica para todo tipo de crime organizado. É por isso que precisamos ter cuidado extremo com qualquer tipo de generalização nessa seara.
Torcidas organizadas, escolas de samba e outros agrupamentos populares são tradicionalmente associados ao crime. Muitas dessas instituições são realmente loteadas entre grupos de bandidos. E nem assim são formadas apenas por bandidos.
Conheço pessoas ilibadas que fazem parte do cotidiano de escolas de samba e de torcidas organizadas. E que convivem com bandidos, mas não são influenciadas por isso. O que os aproxima é apenas o amor pela instituição.
Todo esse preâmbulo é necessário para discutir a participação do público em eventos esportivos. Sem generalizar ou usar o rumo fácil de padronizar comportamentos de pessoas tão diferentes.
Em primeiro lugar: existe uma relação promíscua entre torcidas organizadas e times de futebol. Isso é claro. Entretanto, se o comportamento passional do público é tão importante para o espetáculo e se essa festa é um elemento importante para a composição do cenário, não cabe à instituição zelar por isso? Se não, por que é comum em outras modalidades a figura do animador de plateia?
O que acontece é que os times, em busca de apoio e dedicação dos torcedores, oferecem benesses às organizadas. Em troca, abrem espaço para a participação desses grupos no cotidiano da instituição. No fim, o que se tem é uma extensa cadeia de troca de favores e apoio político.
O esporte não pode prescindir de torcidas passionais. Por outro lado, é fundamental que o torcedor seja tratado como um consumidor submetido à lógica dos Estados Unidos: conforto, serviço e produto.
Esse é o dilema que o esporte internacional precisa resolver. Fora do Brasil, é cada vez mais clara a escolha do segundo caminho. Com um tíquete médio mais alto, espectadores têm uma experiência bem diferente na relação com o jogo. Isso gera o que muitos chamam de "torcida de teatro".
Um modelo híbrido e mais competente é visto na Alemanha, país em que há setores específicos nos estádios para torcedores organizados ou extremistas. Atualmente, a Bundelisga tem a melhor média de público entre as grandes ligas do planeta.
Parte do tratamento adequado é garantir a segurança do espectador. E garantir a segurança não é encher o estádio de agentes repressores ou despreparados. É fundamental criar procedimentos para controle de público e gestão de multidões.
Regulamentar a relação com as torcidas e estabelecer padrões de conforto e segurança são preceitos fundamentais na construção de uma nova experiência em estádios de futebol. O Brasil terá 14 novas arenas nos próximos anos, mas o concreto não será suficiente para impor essa mudança.
Na última semana, em Oruro, o adolescente Kevin Douglas Beltrán Espada morreu no jogo entre San Jose e Corinthians, válido pela Copa Bridgestone Libertadores. Ele estava na torcida do time boliviano, mas foi atingido no olho direito por um sinalizador.
A tragédia podia servir como mote para uma discussão estrutural e densa sobre a interação do futebol sul-americano com quem o consome. O que tem acontecido, porém, é um misto de clubismo e sensacionalismo.
De uma forma geral, a imprensa brasileira parece mais interessada em apontar culpados e determinar punições. Pouco se fala em mudar comportamentos e procedimentos.
Até o momento, ninguém tem convicção de quem foi o autor do disparo. Ainda que um garoto corintiano de 17 anos tenha confessado, faltam provas para determinar se a versão dele procede.
Apurar quem fez o disparo e aplicar punições, nesse caso, são ações paliativas. Elas podem ajudar a amenizar a tristeza de quem chora pelo garoto, mas não vão impedir a repetição de incidentes.
Entender isso e colocar as coisas em perspectiva são passos fundamentais para qualquer cobertura eficiente do que aconteceu em Oruro. Apurar a morte de Kevin é vital, mas é necessário enten
der o problema para evitar que outras tragédias assim aconteçam.
O futebol sul-americano precisa discutir urgentemente uma série de aspectos de sua estrutura. A relação com o público talvez seja o maior deles.
Para interagir com o autor: guilherme.costa@universidadedofutebol.com.br