Em 1806, o poder militar prussiano foi esmagado pelos exércitos de Napoleão. Diante de tamanho desastre, o que fez o rei da Prússia? Concluiu, ruminando tristeza, que uma derrota de tão vastas consequências só podia significar uma grande ignorância, por parte dos derrotados. E não perdeu muito tempo: decidiu imediatamente criar uma universidade de um tipo novo, que teria, obrigatoriamente, como alunos, os próximos e futuros responsáveis pela administração e pelas forças armadas do país… para que se atualizassem! Assim nasceu, em 1810, em Berlim, a universidade-piloto do século XIX europeu. Uma lição que poderá invocar-se, quando se escutam, depois dos jogos, os treinadores e os dirigentes das equipas, com resultado desfavorável.
Infelizes, ressabiados, indignados, sempre que juntam duas ideias é, quase sempre, para condenar o árbitro, o principal culpado, presumem eles, da derrota dos seus clubes. Que graves erros se acoitem na direção, ou na equipa técnica, ou nos jogadores são ideias em que não pensam, nem lhes interessa pensar. Contentam-se com um fundamentalismo clubista, que descobre inimigos, no céu e na terra e… na arbitragem!
A suspeita de outras dimensões capazes de explicar os inêxitos das suas equipas são temas que não lhes polarizam a atenção. O Vítor Serpa, com a alma e a eficiência dos fundadores d’A Bola, escreveu este sugestivo texto, no dia 1 de Novembro de 2014: “Lopetegui tem-se mostrado um treinador promissor e um cidadão civilizado. Teve um começo curioso, procurando impor a sua personalidade, a sua visão, o seu conceito de futebol. As suas declarações também mostravam um ser humano criativo e inteligente. No entanto, havia quem o acusasse de não ser um treinador à Porto. Agora já é. Sem qualquer razão que o justificasse. Lopetegui veio a píblico dizer esta preciosidade: Juntos seremos mais fortes, contra tudo e contra todos.
É a velha fórmula quixotesca de arregimentar quam se decida lutar, contra moínhos de vento. Contra tudo e contra ninguém”.Miguel Real, em assomo de penetrante sagacidade, escreveu, no seu último livro, O Futuro da Religião (Vega, Outubro de 2014): “O fundamentalismo religioso consiste no ato mental de passagem de uma religião, animada pela fé, a uma religião animada pela alucinação mental” (p. 49). Também o fanatismo clubista é, como se sabe, uma “alucinação mental” e, por isso, o problema de saber-se qual o lugar das ideias, num contexto clubista, tem uma importância chave, sempre que se pensa no desenvolvimento de uma qualquer modalidade desportiva. Se bem penso, nos dias que correm, um departamento de futebol deveria assemelhar-se e uma equipa pluridisciplinar, liderada logicamente por um treinador de futebol.
No desporto do futuro, a interdisciplinaridade será uma exigência, mormente no desporto de alta competição, tendo em conta uma prática informada dos seus treinadores. Um cientista, sedento de fama e de honrarias, isolado no seu laboratório, não atingiria nunca as culminâncias do génio criador porque só em grupo, solidariamente e à luz de um projeto interdisciplinar tal será possível.
Há vários tipos de interdisciplinaridade que não é possível analisar-se, aqui e agora. “Grosso modo”, a interdisciplinaridade segue os passos seguintes: encontro entre especialistas de diversas disciplinas que estudam paralelamente o mesmo problema; comunicam entre si os resultados obtidos; elaboram, por fim, avaliados os resultados e os métodos de cada uma das disciplinas, um relatório comum.
A interdisciplinaridade não nos permite dissociar a teoria da prática, já que, verdadeiramente, é a prática que se pretende enriquecer ou transformar. “A pesquisa interdisciplinar faz apelo, pois, a diversos pesquisadores a fim de que, debruçando-se cada um sobre um mesmo problema, na linha da sua especialidade, decorra de seus saberes, reunidos e integrados, um conhecimento mais completo e menos unilateral” (Hilton Japiassu, Interdisciplinaridade e Patologia do Saber (Imago Editora, Rio de Janeiro, p. 88). Partindo do pressuposto que o futebol (como o desporto, em geral) é um dos aspetos da motricidade humana e que nos situamos portanto no âmbito das ciências humanas, será de estabelecer-se depois a metodologia do interdisciplinar, constituindo-se uma equipa de trabalho de especialistas de várias áreas do conhecimento – mas especialistas que gostem do futebol e, nas suas linhas gerais, o conheçam, para que não se descambe na situação absurda e singular de um estudo sobre o futebol não ter em conta os factos e os acontecimentos que o futebol segrega, mas tão-só o jogo metafísico das ideias. Com isto, não digo que a um “agente do futebol” não interesse a leitura de um Dante, ou de um Dostoievsky, ou de um Dickens, ou de um Vieira, ou de um Camões, ou de um Pessoa (estes três últimos escritores os nomes maiores, no meu entender, da literatura portuguesa). Mas que não se tente resolver os problemas do futebol, teorizando tão-só. É que, para mim (e há muitos anos já) quem só teoriza não sabe.
Em 1977, escrevi eu um livrinho, editado pela Compendium, A Prática e a Educação Física, onde pode ler-se: “De facto, a unidade prática-teoria constitui uma totalidade em que à prática assiste papel fundamental, pois é nela que se reconciliam e interfecundam o objectivo e o subjectivo (…). A prática, sem teoria, é cega – para pouco serve; a teoria, sem prática, definha no idealismo mais concêntrico – para nada serve” (p. 15). Em 1991, publiquei A Pergunta Filosófica e o Desporto, também editado pela Compendium, e reforcei esta mesma ideia: “é especialista em futebol quem o pratica e o teoriza para praticá-lo melhor” e portanto importa: “radicar a teoria na prática; acompanhar a prática de teoria; teorizar, para perspetivar e antecipar uma nova prática” (p. 51). A vida (e o futebol é vida) não é tanto um problema intelectual que é preciso resolver, mas uma situação que é preciso viver, para poder transformar-se.
Não tenho dúvidas que, para formular-se um problema, importa antes conhecer o todo donde esse problema nasce. E, no todo, porém, há mais do que desporto e mais do que tecnociência e mais do que filosofia e mais do que arte. Daí, a necessidade imperiosa da cooperação interdisciplinar, entre saberes vários, no mundo irradiante e complexo do desporto de alta competição, onde o futebol se movimenta. Daí, a necessidade também de um líder da equipa interdisciplinar (no futebol, o treinador principal) que não desconheça a complementaridade, entre as diversas áreas do saber e se mostre capaz de liderar a superação do fracionamento disciplinar, rumo a uma nova síntese. É o conhecimento integrado do futebol (ou de qualquer outra modalidade desportiva) que pode assegurar não só um clarão fulgurante de reflexões, mas também uma revolu&
ccedil;ão científica, que consagre o desporto (e portanto o futebol) como autonomia disciplinar.
Com a interdisciplinaridade, há um enriquecimento evidente de uma área disciplinar. Um estudo do futebol, por exemplo, que não se interesse senão pelo que é específico do futebol aproxima-se, a passo estugado, da ignorância. São os “agentes do futebol” que sabem, pelo seu saber de experiência feito, o que é o futebol. Ninguém pode preconizar, no âmbitio do conhecimento científico, que as fronteiras de uma disciplina se esfumem, se diluam. No entanto, o seu progresso não se realiza, sem a colaboração doutras ciências. Um facto indiscutível, indiscutido, na epistemologia hodierna. Tudo o que é humano faz parte de um universo inacabado e em génese. Tudo, incluindo o futebol!
*Manuel Sérgio é antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.
Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.