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Vale a pena discutir?

Há diversas formas de conduzir uma discussão sem sequer passar pelo assunto que é cerne do debate. Desviar o foco, por exemplo: funciona em shows de mágica, conversas sobre política ou gestão de esporte. O mesmo vale para abordagens superficiais e erradas: qualquer história de detetive ensina que uma visão sobre uma cena só funciona se for sistêmica. Em geral, deduções fantásticas e chamativas advêm de detalhes que uma análise superficial não consegue considerar. 

Nossa sociedade ainda tem pouca vivência de discussão (sim, aqui a generalização é pertinente). Somos uma democracia jovem e temos um enorme contingente que passou décadas alijado de qualquer conversa sobre o que acontece no país. E como as crianças ensinam, o instinto primitivo em um debate é um atacar o interlocutor em vez do conteúdo.

Some a esse cenário o surgimento de um mural que não existia até a década passada – e que, até por causa disso, ainda não tem funcionalidades totalmente compreendidas. As redes sociais são um amplificador capaz de transformar qualquer um em mídia, e isso também afeta drasticamente o debate.

Entender todo esse contexto é fundamental para balizar qualquer análise sobre o atual cenário do país, mas também é uma introdução relevante em discussões sobre o esporte. Antes de pensar em soluções ou em práticas que podem ser benéficas para toda a indústria, temos instintos que passam por egoísmo, determinação de culpa e combate a rivais.

Meu time perdeu? A culpa é do técnico que escalou mal, do zagueiro que perdeu uma bola ou do atacante que desperdiçou chance clara. Meu time faz temporada ruim? Culpa dessa diretoria incompetente, que montou um elenco incapaz. Meu time está afundado em dívidas? Culpa de gestões passadas, da Lei Pelé, da crise econômica internacional ou de tudo isso. Culpa de alguém, sempre.

Determinar culpados é importante, sim. É um passo fundamental para compreender processos e não repetir erros. O ponto aqui é que apontar o dedo é insuficiente – e mais uma vez, essa lógica serve para política, futebol ou outras searas.

É exatamente isso que os clubes brasileiros têm feito nos últimos meses ao discutir o formato de disputa do Campeonato Brasileiro. É um debate raso, quase sempre direcionado apenas por preferências pessoais ou clubísticas. Pior: é uma conversa influenciada por dados retirados de contexto, que servem mais para confundir do que para elucidar.

Funciona assim com a audiência. Os números do futebol na TV aberta têm despencado a ponto de a Globo discutir se vale a pena manter um espaço para a modalidade em todas as noites de quarta-feira. Trata-se de um processo longo, que não pode (de forma alguma!) ser reduzido a somente um ou dois motivos. As novelas também têm perdido espectadores, por exemplo. Existe novela por pontos corridos?

Em um caso tão complexo, qualquer reducionismo é prejudicial ao debate. O futebol brasileiro não consegue lotar estádios: culpa dos pontos corridos? Será que isso não é uma forma de desconsiderar fatores importantes, como preço, serviço oferecido e até a qualidade do espetáculo?

Por iniciativa de Romildo Bolzan Júnior, presidente do Grêmio, clubes brasileiros têm intensificado um debate sobre o modelo de disputa do Campeonato Brasileiro. A grita chegou à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que criou uma comissão para discutir o assunto. A Globo, principal mecenas da modalidade no país, é entusiasta da mudança.

Mas será que hoje, pouco mais de uma década depois da adoção dos pontos corridos, discutir o modelo de disputa ainda é pertinente? Isso faz algum sentido para a indústria do esporte no país?

Não interessa discutir o modelo de disputa se o futebol brasileiro não pensar num calendário mais evoluído, que tenha projeções claras de temporada para todas as equipes e garanta pagamento anual para todos os atletas. Não interessa discutir o modelo de disputa se não houver uma adequação de receitas e estruturas.

A revista “Placar” de março tem uma reportagem sobre os “escravos da bola”, jogadores de futebol que vivem por migalhas no Brasil. Há casos estarrecedores: jogadores que vivem amontoados em casas e não têm sequer colchões, por exemplo. Menos de 10% dos profissionais do futebol brasileiro recebem mais de um salário mínimo. A realidade dos milionários e perdulários é restrita, e mesmo essa casta está longe da estabilidade econômica – casos de atrasos e calotes não são tão raros entre os maiores clubes do país. Qualquer discussão sobre modelos no futebol brasileiro parece pequena diante de uma realidade tão desumana (ou será que a discussão sobre modelo é parte da realidade desumana?). 

Debater mata-mata ou pontos corridos, afinal, só pode ter duas finalidades: enxergar apenas parte do problema, o que não resolve nenhuma discussão, ou desviar o foco das questões que são verdadeiramente relevantes. De uma forma ou de outra, o futebol só perde com isso. 

O futebol brasileiro necessita urgentemente de um debate, e esse debate precisa ser feito de forma abrangente e cuidadosa. Perder tempo falando sobre como o Campeonato Brasileiro é disputado não é atacar o problema, mas fugir dele.