Teimamos em acreditar que vivemos escassez de talentos no futebol brasileiro. É incrível como nós, brasileiros, continuamos míopes ao analisar, conceber e construir o jogo para o futebol atual.
Estamos à procura de grandes talentos a cada lance nos jogos que assistimos e “não conseguimos encontrá-los”. Por que será? Nossos olhos cartesianos estão focados na plástica do individualismo de campo, enquanto o protagonismo do futebol migra cada vez mais para as ações coletivas. Continuamos acreditando que o jogador deve fazer tudo em campo a partir das suas arbitrárias intenções e individuais capacidades. Não conseguimos enxergar algo além das competências particulares dos jogadores. É, talvez, o maior equívoco tático vivido pelo futebol brasileiro da atualidade!
Enquanto isso, o mundo esportivo moderno se desenvolve. Nele, a qualidade do jogo é vista em decorrência da aplicação dos conceitos táticos – coletivos, grupos e individuais – e, o “quilate” do jogador, em decorrência do jogo jogado. O potencial dos bons jogadores se destaca contextualizado a uma ideia de jogo. Melhor dizendo, o protagonismo do futebol atual, na melhor das hipóteses, está dividido entre a qualidade do jogo e o desempenho que cada jogador tem no cumprimento das tarefas que fazem este jogo se consumar. E nós brasileiros continuamos acreditando que o jogo depende só do talento individualmente produzido.
Comprovando a presença dessa visão distorcida em nossos meios, certa vez um renomado treinador brasileiro disse:
– Enquanto nós tínhamos time, estávamos em quarto ou quinto lugar do Brasileirão. Perdemos cinco jogadores e caímos na tabela!
Será que este treinador acreditava que tinha time ou cinco jogadores que “seguravam” o jogo da sua equipe? Será que este treinador acredita na existência do “jogo”, que ele é algo coletivo, uma ideia macro, que transcende ao valor das individualidades em campo? Tenho certeza absoluta que não. E se esta maneira de pensar representa, mais ou menos, o que nós brasileiros ainda pensamos do futebol hoje em dia, estamos na contramão da história do desenvolvimento deste jogo.
Para o brasileiro, quando o talento não se destaca em campo é sinal de fracasso do nosso jogo, e dos nossos jogadores. Aí sobra pra todo o mundo!! Só que não nos atinamos para a realidade de que os destaques individuais poderão ou não surgir mais em virtude do que o jogo pode produzir. Cito em meu livro – Universo Tático do Futebol – escola brasileira – que hoje o Pelé, mito do futebol mundial, não faria os mesmos 1.200 gols que fez em épocas passadas. A analogia é muito simples e a minha admiração pelo rei do futebol continua inabalável: o jogo de hoje é outro, em intensidade e poder tático, principalmente. O Pelé continuaria sendo o Pelé, assim como sempre tivemos e teremos talentos se destacando em todos os esportes. Mas as dificuldades do jogo de hoje são bem diferentes das encontradas no passado. Façam a mesma analogia para os vários níveis de talentos do futebol e veremos o quanto o jogador atual está dependente do jogo para desenvolver o seu potencial. Não existe talento sem jogo, assim como um jogo construído com talentos de ótimo quilate torna-se mais poderoso em relação a outros em outras circunstâncias. Este fenômeno está muito claro no futebol atual, quando vemos vários times, seleções e clubes, dando espetáculos pelo mundo.
“No futebol, não tem mais ninguém bobo”.
Melhor dizendo e para não ficar apenas com o dito popular, a maneira moderna de se jogar o jogo está chegando ao entendimento de todos. O futebol brasileiro precisa se atentar para isso. Costumamos nos contentar em ver jogadores brasileiros espalhados pelos grandes times europeus, mas não estamos “cuidando” da nossa forma de treinar e jogar. A Escola que desenvolve o talento e a Escola que constrói o jogo brasileiros tratam de conteúdos distintos apesar de estarem em um mesmo ambiente de desenvolvimento.
Voltemos aos questionamentos sobre a “escassez dos talentos brasileiros”. Esse é um discurso e uma “verdade” que confirma e enaltece a majestade dos que foram craques no passado, além de acusar um grande equívoco na forma de enxergar as necessidades de um futebol moderno. Enquanto isso, o mundo do futebol de alto nível continua importando nossos jogadores e assim será por muito tempo. Isso porque temos a “escola de rua” em nossa origem de formação.
Esta é a base preciosa para a formação do jogador de futebol. A revolução alemã, responsável pelo grande salto de qualidade dos últimos anos, começou seu projeto, dentre vários pontos, pela implantação da escola de rua para as crianças do futebol do seu país, a “escola da habilidade”. Nós, brasileiros, graças às características da nossa própria escola, podemos pular esta etapa. Em contrapartida, precisamos aprimorar o segundo nível do projeto alemão que é qualificar a “escola do jogo”.
Os europeus importam a habilidade do jogador brasileiro e dão a ela o preparo para o jogo. A “base” da nossa escola é muito poderosa. Podemos, no entanto, ainda valorizar e aprimorar os conceitos e métodos que a desenvolvem. Além disso é preciso adaptar o talento brasileiro, fruto desta escola, a uma nova concepção de jogo. Um jogo que precisa ser organizado, coletivo e regido por conceitos táticos que dão às ações das onze peças em campo um sentido comum que facilite a superação aos adversários. O jogo de futebol não é mais a soma das ações dos onze talentos em campo. É a concretização de uma ideia que explora o talento dos onze jogadores. Parece a mesma coisa, mas é muito diferente!
Mais uma vez, já estamos querendo queimar uma geração de novos talentos brasileiros em decorrência da campanha pouco satisfatória da nossa seleção no Sul-americano Sub-20 do Uruguai e da perda do título mundial, na mesma categoria, na Nova Zelândia. Por que não nos atrevemos a avaliar o jogo jogado pela seleção ao invés de procurarmos “heróis de chuteiras para a nossa pátria do futebol”. Será que dá mais trabalho avaliar o jogo e todas as suas nuances? Ou será uma “simples” questão de miopia futebolística? Eu continuo achando que é um pouco das duas coisas.
A revolução que muitos “só pregam e ou sugerem” desde a Copa no Brasil passa por uma nova forma de conceber, treinar e construir o jogo. Isto é urgente!! Sempre tivemos e teremos grandes talentos para o futebol. O que não pode acontecer mais é nossas equipes continuarem jogando o jogo de trinta anos atrás. Regidos pelos mesmos conceitos que fazem o nosso futebol há décadas. Estamos presos a um futebol “paradigmatizado”, regido por conceitos de gestão e de jogo antiquados que não nos fará sair do estágio em que est
amos tão cedo. Se já está ruim, pode ficar pior!! Não se trata de um prognóstico pessimista. Simplesmente não estamos nos envolvendo com as mudanças necessárias à transformação.
Acobertados pelas chancelas modernas de um jogo com intensidade e ou velocidade, estamos praticando um jogo ansioso, de muita entrega física e pouca lucidez e ou conceituação tática. Não estamos construindo o jogo explorando o potencial fantástico dos nossos jogadores. E ainda bem que os temos! Ao contrário, estamos creditando aos jogadores brasileiros todas as responsabilidades do jogo:
– Vai lá e faz o que você sabe!
– Quer fazer gol, contrate um bom centroavante.
– Quer ter jogadas pelos flancos, coloque laterais que façam o jogo neste setor.
– A defesa é boa porque os zagueiros são bons.
– A equipe não cria, pois não temos um bom meia de criação…
Enquanto isso, fica sem dono a responsabilidade de construir um jogo que, no mínimo, ajude os jogadores a desempenharem estas e outras muitas funções.
Comunidade brasileira do futebol, a mudança precisa ser substancial e urgente! Da concepção do jogo ao treino do próprio jogo é preciso começar a transformação. Das categorias de base ao futebol profissional. Abramos os olhos para essa realidade que se escancara aos nossos olhos. Comecemos por questionar alguns paradigmas táticos do jogo, dos treinos e da gestão no futebol brasileiro. Não dá mais para “ver sem enxergar”!
Mãos à obra, Brasil!
Até a próxima…