Pode ser um gol irregular, uma expulsão injusta, um cartão exagerado ou até uma falta discutível no meio do campo: no Brasil, não há decisão da arbitragem que não preceda um bolinho de jogadores exaltados, gritos de diferentes naturezas e reclamações efusivas de um (ou dos dois) treinadores. Sim, o nível dos juízes no futebol brasileiro é baixo e carece de uma discussão mais ampla. Contudo, também precisa ser repensada a cultura de pressão que se naturalizou em âmbito nacional. Admitir isso como um aspecto indissociável do jogo é realmente o melhor caminho?
Há uma série de fatores a serem abordados em uma discussão sobre o nível dos árbitros e auxiliares no futebol brasileiro. Há uma série de medidas a serem tomadas para reduzir a margem de erro e aumentar a fluência dos jogos. O uso da tecnologia é uma saída, por exemplo; uma preparação mais eficaz para os profissionais do segmento é outra.
A questão aqui, entretanto, não é apenas o nível da arbitragem ou a quantidade de erros no Campeonato Brasileiro. É necessário discutir a cultura da pressão: o tipo de abordagem que temos com árbitros e auxiliares é mais do que uma simples manifestação de discordância. Existe um processo de formação de vilões que é ótimo para construir narrativas com menos conteúdo – culpar o árbitro é fácil para quem precisa explicar um resultado e não sabe como. Há também uma estratégia de criação de ambientes hostis – aposta alicerçada na lógica de que esses fatores podem influenciar sobremaneira as decisões.
Quando o Fluminense anotou um gol em flagrante impedimento num clássico contra o Flamengo, por exemplo, jogadores das duas equipes cercaram árbitro e auxiliar. Pressionaram e vociferaram, contribuindo para uma dúvida que já havia se instalado entre juiz e assistente. Foram 13 minutos até que o lance fosse impugnado, com suspeita de que houve influência externa – o que é proibido por lei.
No dia seguinte, presidentes dos dois times cariocas concederam entrevistas coletivas para falar sobre o lance. E o presidente do Palmeiras, que disputa com o Flamengo o título nacional, também convocou a imprensa para condenar o que identificou como ajuda externa. Os três (vexatórios) discursos dos dirigentes foram cheios de frases de efeito, repletos de juízos de valor e pululados por denúncias vazias.
A estratégia do Palmeiras prosseguiu na partida posterior, contra o Figueirense. Desde o apito inicial, todas as decisões de árbitro e auxiliares motivaram ostensiva pressão dos jogadores da equipe alviverde, que venceu com um gol marcado em pênalti inexistente.
Substitua essa sequência de fatos por qualquer outra história no futebol brasileiro ou tente pensar no inverso: quantos dirigentes são cobrados internamente em seus clubes por não serem incisivos em reclamações ou por não exercerem pressão adequada sobre árbitros?
Agora tente comparar com o que acontece no exterior. No último fim de semana, o Barcelona foi extremamente favorecido em vitória sobre o Valencia. Depois da partida, jogadores e comissão técnica da equipe derrotada até falaram sobre isso, mas adotaram um tom totalmente diferente e não permitiram que isso afetasse o diagnóstico que fizeram sobre o duelo. É um exemplo pontual, mas é um exemplo que diz muito sobre a diferença de cultura.
O que essa comparação diz é que o futebol brasileiro admitiu passivamente a existência de um processo de “vilanização” de árbitros e auxiliares. É fácil escolher uma muleta assim, sem qualquer necessidade de explicação mais densa. O difícil é entender como a tolerância zero com o trabalho de uma categoria e a reação violenta aos erros dizem muito sobre nosso comportamento como sociedade.
Difícil entender que culpamos os árbitros como culpamos políticos, sem tentar entender processos ou individualizar condutas. E nos dois casos, essa lógica só serve para manter o status quo e diminuir espaço para discussões que tenham potencial real para alterar as coisas.
Precisamos olhar para o nível da arbitragem como um problema grande, abordado de forma sistêmica e desprovida de pré-conceitos. Precisamos pensar em medidas que podem contribuir para que o jogo evolua como um produto.
Entretanto, também precisamos pensar no que queremos para a comunicação do futebol brasileiro. Em ligas mais organizadas pelo planeta (não apenas no futebol) há uma combinação de fóruns adequados para reclamação e conscientização da comunidade. Existe um trabalho institucional para evitar que o nível técnico ou o que acontece dentro das quatro linhas sejam menos relevantes do que erros pontuais.
A ordem no Brasil é inversa, com enorme contribuição da mídia (o espaço dado a erros e lances discutíveis sobre arbitragem é simplesmente absurdo). Já passou da hora de os dirigentes nacionais entenderem que vendem o jogo e que precisam falar sobre o jogo. Mas será que isso interessa a alguém?