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O jogo que não existiu

O jogo mais importante do futebol brasileiro em 2017 não aconteceu. Atlético-PR e Coritiba fariam clássico válido pelo Campeonato Paranaense no último domingo (19), na Arena da Baixada, mas a bola jamais chegou a rolar. As duas equipes, sem acordo com a TV Globo, resolveram transmitir a partida no Youtube e em seus sites oficiais. No entanto, a FPF (Federação Paranaense de Futebol) rechaçou a ideia e impediu o início do duelo. Aí seguiu-se a cena histórica: os atletas de ambos os times entraram em campo, fizeram uma saudação aos torcedores presentes e se retiraram.

Segundo a FPF, os jornalistas contratados pelas equipes para a transmissão não tinham credenciamento adequado. A presença de alguém não autorizado representaria uma ameaça à liturgia e à segurança do clássico, e havia um prazo mínimo de 48 horas de antecedência para a liberação dos profissionais. O confronto seria inicialmente narrado por uma equipe de uma rádio local, mas o Esporte Interativo liberou um time em cima da hora.

Aí começa a celeuma que motivou o cancelamento do clássico: o Esporte Interativo, turbinado pelo dinheiro do grupo de comunicação Turner, é hoje o principal rival da Globo na luta por direitos de transmissão do futebol brasileiro. Os dois grupos procuraram os principais clubes do cenário nacional, que negociam individualmente e fecharam com quem julgaram ser mais conveniente.

O Flamengo chegou a ameaçar não fechar com a Globo para a transmissão do Estadual do Rio de Janeiro. Atlético-PR e Coritiba bateram o pé e rejeitaram a oferta da emissora carioca – R$ 1 milhão para cada, ou um quarto do valor líquido que o canal paga ao Madureira-RJ na mesma temporada.

Existem duas brigas aí, portanto. Há uma questão Esporte Interativo x Globo, dois canais que brigam por um mercado similar e que tentam evitar uma inflação exacerbada nos valores praticados no futebol nacional. Também deve ser considerado um desgaste na relação entre os times paranaenses e o canal carioca. A Globo ofereceu R$ 6 milhões por todo o Campeonato Paranaense em 2017, 20 vezes menos do que paga pelo Estadual do Rio de Janeiro.

O Esporte Interativo, vale lembrar, diz não ter qualquer relação com o que aconteceu no último domingo. Segundo o canal, seus profissionais são normalmente liberados para trabalhos extraordinários e foi apenas coincidência que toda a equipe envolvida no clássico tivesse relação com a empresa. A Globo também se eximiu de responsabilidade – o editorial lido por Tadeu Schmidt no hebdomadário “Fantástico” foi o exemplo mais claro disso.

Em meio a isso, o papel mais patético foi o da FPF. O presidente da entidade, Helio Cury, deu uma série de entrevistas atribuindo aos jornalistas não credenciados a não realização do clássico. Disse que não podia permitir a realização de um evento sem que todos os profissionais presentes tivessem participação regulamentada e que a equipe não respeitou o prazo necessário para isso.

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Nas entrevistas, Cury deu aulas de intolerância, apreço pela burocracia e absoluta falta de talento para o debate. Em vez de conversar, expor argumentos e explicar a situação, o dirigente tentou criar um “nós x eles” e se mostrou constantemente pronto para atacar as pessoas em vez de se focar nos discursos.

Também chama atenção a reação do quarto árbitro do jogo. Em vídeo publicado pelo portal UOL Esporte, Rafael Traci informou a representantes dos clubes que o impedimento do jogo havia sido determinado por Cury e que era impossível permitir a realização de uma transmissão assim sem anuência da Globo.

As palavras de Traci desmontam grande parte dos argumentos de Cury e expõem o que já estava claro: não havia preocupação lícita ou qualquer senso de proteção. A FPF só optou por uma solução drástica, sem diálogo, para não comprar uma briga com um parceiro.

Pior ainda é a total ausência de posicionamento da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), que até o momento não fez qualquer comunicação sobre o que aconteceu no Paraná. É uma crise grave, que envolve dois dos principais clubes do país e pode ter repercussão nos outros. Em vez de demonstrar preocupação, a entidade responsável pelo futebol em âmbito nacional se cala e finge que não é com ela.

De certa forma, todos os papéis nessa história emulam o que acontece em outros âmbitos. Os clubes, mesmo quando se unem, têm pouca força e esbarram no status quo. As federações, totalmente subjugadas, usam o jogo político para tolher a liberdade de seus filiados. E a CBF, de longe, finge que nada está acontecendo ou que o futebol nacional é um paraíso.

Tudo que aconteceu em Curitiba é reflexo de um dos principais problemas do futebol basileiro atual: falta unidade e inexiste coordenação nas ações de mercado das equipes nacionais. Seria muito mais simples resolver a questão se a venda de direitos de mídia fosse feita de forma coletiva, priorizando a competição em detrimento de marcas individuais. Seria tudo mais rápido se houvesse uma mesa em que todos os envolvidos pudessem sentar para debater a melhor solução para todos.

A crise no futebol brasileiro é política, mas também é de comunicação. Mesmo num momento em que dois rivais históricos conseguem mostrar unidade e pensam no bem comum, toda a estrutura envolvida no jogo mostra que o que vale é o individual. Cada um que brigue pelo seu.

No caso específico do clássico, também é triste que o arcabouço de problemas do futebol brasileiro jogue contra uma inovação mais do que necessária. A evolução do esporte – e de qualquer segmento – passa necessariamente pelo momento em que os clubes vão assumir o controle de suas mídias e vão se enxergar como produtores de conteúdo. O primeiro passo nessa direção poderia ter sido dado em Curitiba.

Uma crise como a que aconteceu no Paraná também é uma chance de reflexão. Todos os segmentos envolvidos no futebol brasileiro (clubes, atletas, treinadores, profissionais, torcedores, jornalistas e dirigentes, por exemplo) podem usar o clássico como provocação para tentarem entender seu papel no jogo e como podem contribuir para que isso não se repita. Ou podem apenas aceitar que é assim que a roda gira, mas terão de conviver com outros clássicos sem a bola rolando no futuro.

Já passou da hora de entendermos que as coisas precisam mudar (também) no futebol brasileiro. Já passou da hora de sermos menos permissivos. Se não servir para alterar toda a cadeia de relações no esporte, que o jogo que não existiu funcione ao menos como chamada ao debate.