Perceber o futebol como um feito simples, cultural, uma maneira de sentir, viver ou puramente um jogo, está cada vez mais complicado nesses dias atuais. Compreender que os exercícios de treino devem ser cenários para algumas interações e para que as coisas surjam de forma natural, espontânea e construída também.
Infelizmente, o futebol está cheio de modismo, ideias preconcebidas com alguns preceitos instalados, principalmente na construção de exercícios que tomam conta da mente coletiva dos treinadores pela proliferação dos meios de comunicação. Quatro perguntas vêm à tona: todos devem treinar como todo mundo treina? Os exercícios de um treinador profissional em um clube são específicos a outro? Os exercícios vistos no profissional podem ser copiados na base? Os exercícios com múltiplas regras e adornos tiram o essencial do jogo?
Analisando essa tese e respondendo as perguntas acima por experiência própria, os exercícios copiados ou com múltiplos adereços, inicialmente parecem carregar informação e modernidade, mas com o passar do tempo, demonstram trajetórias traçadas com pontos cíclicos ou atalhos processuais que inibem aspectos cruciais para a teia relacional da dinâmica de jogo.
Fazendo isso, de certa forma, nos comparamos muitas vezes, sem saber, a outros contextos, e negligenciamos o básico que é o processo e o instante dele. O grande desafio é perceber que cada processo é único, e carrega consigo o desconhecido, as dúvidas e confianças que cada jogo proporciona.
Claro, prescrever regras e condições estruturais-funcionais gera possibilidades interessantes, mas influem no tempo e espaço do jogo e do jogar que podem por vezes, se excessivas, retirar o caráter real da competição que nada mais é que a máxima adaptabilidade às interações dos jogadores e do jogo.
E há que reconhecer essas características, ou seja, reconhecer realmente o que é jogo. Ir mais além de qualquer conceito ou cópia, esse é o verdadeiro conteúdo do exercício. E os exercícios nessa ideia, nada mais são que cenários de interação para agir e antecipar com mais facilidade o que virá adiante. Desta forma, engloba libertar a rigidez vista, não vista, sentida, não sentida, e permitir que mutações e variações aconteçam a todo instante.
Se conservarmos exercícios abertos e livres, imaginando que todo dia uma tela em branco deva ser pintada pelos jogadores, conseguiremos obter uma perspectiva complexa e compreender a natureza desse fenômeno futebol. É preciso tentar manter essa pureza e causar naturalmente circunstâncias que estão acima do alcance apenas do que o treinador pretende.
O treinador Português Vítor Pereira, no congresso sobre Periodização Tática na última semana, abordou essa temática de forma relevante, vejamos abaixo:
Os meus exercícios hoje são muito mais simples do que aqueles que quando comecei a treinar. Estive cinco anos na formação do FC Porto e tive oportunidade de fazer, errar, refletir. Quando cheguei ao futebol sênior sentia-me preparadíssimo, mas não por ler livros de exercícios. Aquele livro dos mil e um exercícios que nos oferecem no terceiro ou no quarto nível de treinador… nunca lhe tirei o plástico.
Os exercícios têm de ser meus, da minha cabeça. Tenho que andar sempre com um bloco ou com um guardanapo, ou o que for, para assentar tudo quando estou sentado a pensar, a beber a minha cervejinha, se for possível.
Para mim, jogar o jogo é controlá-lo do princípio ao fim, em todos os momentos. Mas reconheço que, por exemplo, no Santa Clara, tinha uma equipa muito organizada, mas faltava criatividade e liberdade. Por exemplo, o Hulk, sempre que jogávamos em um ou dois toques, ele tinha grandes dificuldades, mas sem isso ele se destacava. Ou seja, o exercício não pode ser castrador, tem de se expressar por si próprio. Se vocês têm necessidade de interrompê-lo muitas vezes, é melhor refletirem sobre o exercício.
Antigamente, antes do exercício, eu explicava tudo: o exercício é este, o objetivo é este e os comportamentos que eu quero ver são estes. Já não o faço, sabem porquê? Porque eles conseguem sempre fazer mais do que aquilo que a nossa cabeça consegue imaginar.
Um verdadeiro exercício dificilmente se estabelece por objetivos blindados ou excessivos, pois sempre surgem novas conexões ou aspectos mais pormenorizados mesmo que não queiramos. E a melhor forma de produzir conhecimento de treino está por meio de tendências práticas de cada contexto, desenhadas, praticadas e vivenciadas emotivamente pelos jogadores diariamente. O verdadeiro exercício de treino está nos jogadores.
Abraços e até a próxima quarta!