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Um erro nem sempre é só um erro

Jô usou o braço para fazer o gol que deu a vitória ao Corinthians contra o Vasco em partida válida pelo Campeonato Brasileiro. No último domingo (22), Lucas Pratto também balançou as redes depois de a bola ter batido em sua mão – o São Paulo venceu o Flamengo por 2 a 0 no Morumbi, também pelo certame nacional. Dois lances similares, com infrações similares, mas duas histórias absolutamente distintas: esse é um exemplo claro do quanto o contexto influencia em qualquer discussão – e não apenas no futebol.

Antes de avançar na discussão, apenas para deixar claro: Jô e Pratto cometeram irregularidades. Os dois lances deveriam ter sido invalidados e não há um que seja pior do que outro. O que existe, numa comparação entre ambos, é apenas uma diferença de entorno.

Como já foi dito por aqui, todo o episódio de Jô foi potencializado. Meses antes, o atacante havia sido protagonista de um lance com Rodrigo Caio, zagueiro do São Paulo, em partida válida pelo Campeonato Paulista. O corintiano foi advertido pelo árbitro naquela ocasião por um suposto choque com o goleiro rival, mas o defensor se adiantou para avisar que tinha sido o autor do toque. O cartão amarelo foi cancelado, e Rodrigo Caio acabou se transformando num enorme exemplo de fair play.

Depois daquele jogo, Jô enalteceu a atitude de Rodrigo Caio. Disse que aquele lance refletiria em outros episódios e que ele pretendia rever suas ações em campo à luz da honestidade demonstrada pelo são-paulino. O atacante, portanto, criou para si uma pressão que depois aumentou a proporção de um erro cometido.

A história de Jô é um exemplo do quanto podemos nos colocar em situações complicadas quando falamos demais ou adotamos discursos exageradamente assertivos. Ainda mais em um período de redes sociais e acesso rápido à informação, é difícil lidar com esse tipo de comportamento. Não é raro ver alguém ser cobrado pelo que disse ou por determinado comportamento do passado – a internet dá um caráter perene a qualquer opinião, independentemente do contexto.

Existe, portanto, uma decisão de comunicação que potencializou um episódio. Também há no caso de Jô um fator coincidência – o atacante havia sido justamente o beneficiado pela honestidade de Rodrigo Caio e teve chance de mostrar que havia evoluído a partir disso. Você pode até analisar o lance pelo lance, mas descartar esse contexto é não enxergar toda a tela.

Acho que nunca é demais pensar nessa lógica. Quando nos deparamos com um lance ou um episódio, o que ele representa no todo? Temos acesso ao cenário completo ou vamos tirar conclusões apenas por um pedaço?

O perfil @footure na rede social Twitter republicou recentemente um excerto de uma palestra do técnico argentino Marcelo Bielsa. No trecho, “El Loco” usa um exemplo que é pertinente também nessa linha de raciocínio. Ele pediu para nos atermos à ideia de Neymar, atacante e goleador, ajudando na marcação e roubando uma bola. Se isso gerar um contragolpe e o time vencer, o treinador que conseguiu esse nível de dedicação será incensado por extrair um nível diferente de um jogador extraclasse; se a equipe for derrotada, em contrapartida, será considerado culpado por fazer um craque atuar em uma zona mais distante da meta adversária. No fim, tudo é contexto.

É o caso do menor de idade que atirou em colegas de escola em um colégio particular de Goiânia. Filho de policiais militares, ele teve acesso a uma arma de fogo em casa e reagiu após ter sido vítima de bullying de colegas de classe. Foi o suficiente para fomentar discussões sobre armamento da população e limites de provocações/brincadeiras de mau gosto.

Ele pode ter cometido um atentado porque teve acesso a uma arma, mas esse é apenas um meio. Não fosse isso, o mesmo menino poderia ter reagido usando uma faca ou outro artefato. Também reagiu ao bullying, mas esse foi apenas um estopim. Se não fosse essa provocação, poderia ter sido outra.

O que é necessário discutir no caso é o entorno. Um menino capaz disso é antes de qualquer coisa um menino que entende que precisa reagir de forma definitiva quando se sentir oprimido. É alguém que acompanhou esse tipo de comportamento em diferentes âmbitos – a influência pode ter partido da família, da própria escola, de amigos, da TV ou do videogame, por exemplo. O fato é: ele achou que matar alguém era uma resposta para cessar um comportamento que o incomodava.

Entender o entorno, portanto, é fundamental para saber o que aconteceu no quadro todo. Quando algo assim acontece, não podemos discutir apenas o acesso às armas (ainda que seja fundamental discutir isso). Não podemos discutir apenas o bullying (ainda que seja fundamental discutir isso). É preciso entender o contexto.

Esse é um exercício que muitas vezes nós deixamos de lado no futebol. O Corinthians das últimas rodadas é um time que caiu de rendimento e que apresenta problemas de formação, e não uma equipe que lida com questões inerentes ao status atingido após campanha histórica no primeiro turno. Há muita discussão sobre momento ou sobre estopins e pouca análise sobre o quadro todo.

Os gols marcados por Jô e Pratto podem ter tido infrações similares, mas esse é apenas um recorte. Você vê o quadro todo quando fala de futebol?