O futebol brasileiro é meio, e não destino. Essa é uma das principais razões para a falta de profundidade no debate sobre o jogo em âmbito nacional – afinal, se todo o ambiente é apenas passagem, por que perder tempo discutindo sua constituição? Os meninos do país sonham com um futuro nos grandes clubes locais porque veem ali um trampolim – para a Europa, a independência financeira ou a conquista de respeito; os dirigentes usam equipes em projetos pessoais para incremento de popularidade – em nome de uma vida na política, por exemplo – ou apenas por poder. O que sobra é um ecossistema formado por gente que não escolheu estar ali. Os atletas podem ser divididos entre os que ainda não foram para fora, os que foram e não se consolidaram, os que estão velhos demais para permanecer fora ou os que não tiveram qualidade para sair. No fim, o que os une é a sensação de que o Brasil deixou de ser escolha de vida.
Essa lógica é cruel para quem tenta vender a narrativa do futebol brasileiro. O menino que dá seus primeiros chutes sonha com o Barcelona, o Real Madrid ou qualquer time da Premier League, e os clubes de seu país, por mais populares que sejam, passam a funcionar apenas como um degrau inferior. Não há nada de errado em cultivar esses sonhos, mas cria-se aí uma hierarquia. E quando a hierarquia é estabelecida, toda a cadeia é afetada. As rivalidades locais, por exemplo, perdem sentido num mundo em que o Tejo não é o rio mais belo.
Em outras épocas, quando prevaleciam características como o orgulho local, Estaduais de futebol faziam mais sentido do que outras competições. Por isso é tão sintomático que a Copa Libertadores tenha crescido em relevância no imaginário do torcedor brasileiro: não foi o torneio que se engrandeceu, mas a maneira de pensar (e de se relacionar com o jogo) que mudou.
Os Estaduais sobrevivem no futebol brasileiro como instrumento político e como lembrete de outra forma de pensar o esporte. São certames baseados em rivalidades que fazem cada vez menos sentido. No entanto, são raros os times nacionais que conseguiram atualizar de forma condizente a maneira de encarar essa parcela do calendário – o Athletico é certamente o melhor exemplo.
A dicotomia entre o que vale o campeonato e o que os torcedores esperam cria uma situação extremamente desconfortável para quem trabalha com comunicação no futebol local. Ninguém comemora de forma efusiva quando vence um Estadual, mas ninguém quer perder. Só que o Palmeiras elevou a outro nível essa discussão.
Por razões políticas – está rachado com a FPF (Federação Paulista de Futebol) –, o Palmeiras tem histórico de menosprezo ao Campeonato Paulista. Mauricio Galliotte, presidente do clube, já chamou o torneio de Paulistinha. Os perfis oficiais do clube em redes sociais também usaram o termo, e o técnico Luiz Felipe Scolari disse no último domingo (07), após ter sido eliminado pelo São Paulo nas semifinais, que cogitou tirar o time de campo quando viu que um gol anotado pelo atacante Deyverson havia sido anulado por impedimento após uso do VAR (sigla em inglês para árbitro assistente de vídeo).
O Palmeiras, que trata há tempos o Estadual como algo menor, é atualmente um dos elencos mais badalados do futebol brasileiro. É um clube com finanças equilibradas, patrocinadores fortes e potencial de investimento.
Existe, portanto, uma expectativa de que o elenco seja forte e dominante em todas as competições. Essa expectativa é ainda maior no Estadual, um torneio que o próprio clube trata como “menor”. Se é um evento tão fraco assim, por que o Palmeiras não sobra em relação a seus rivais?
Se quisessem ser condizentes com o tratamento dado ao campeonato, diretoria e comissão técnica do Palmeiras deveriam tirar do Estadual os principais destaques de seu elenco. Por que usar nomes como Ricardo Goulart, Dudu e Felipe Melo em uma competição que vale tão pouco? Por que não dar chances aos destaques da base ou a contratações menos badaladas, como Arthur Cabral e Matheus Fernandes?
Quando optou por usar seus titulares, o Palmeiras criou um cenário em que só tinha a perder. Se fosse campeão paulista, teria cumprido apenas a obrigação de um time tão rico e poderoso – vencer o torneio que vale menos. Perdendo, colocou ainda mais interrogações no trabalho desenvolvido até aqui. Valeu a pena?
Os times brasileiros precisam decidir o que fazer com os Estaduais, e isso precede qualquer discussão sobre calendário ou estrutura. Não adianta tratar o evento como algo menos relevante, mas demitir um treinador por uma derrota em fase inicial ou usar todos os titulares nos clássicos.
Em 2019, Grêmio e Internacional contribuíram para essa discussão ao esvaziar um clássico no Campeonato Gaúcho – ambos usaram apenas reservas. O Palmeiras poderia ter feito o mesmo – sobretudo por ter elenco suficiente. No entanto, ao optar por um caminho que não conseguiu unir decisões e declarações, o time paulista serviu apenas como exemplo de como o processo de comunicação permeia instâncias muito maiores do que as redes sociais e interfere em tudo.
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