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Sobre os riscos e as apostas na estratégia

Jindrich Trpisovsky, treinador do Slavia Praga: ótimo empate contra a Inter, na última semana. (Foto: Reprodução/inter-news)

 

Embora não seja muito claro para quem não frequenta, ou mesmo não dá atenção ao processo de treino/jogo, uma das coisas que sempre nos pegam é que as decisões de treinadores e treinadoras, uma vez que dependentes da complexidade do tecido do jogo, não são exatamente relações de causa/consequência, tomadas na certeza de resultados. Na verdade, estão mais próximas das apostas. Com dados, informações, às vezes com extremo rigor… mas são apostas.

Digo isso em razão de algo que me ocorreu na última semana, assistindo a Internazionale v Slavia Praga, pela primeira rodada da UEFA Champions League. Houve uma questão estratégica, bastante clara no primeiro tempo, sobre a qual gostaria de falar um pouco mais. Nela estão bem ilustradas as apostas que de que falei acima, por parte dos dos treinadores.

Vejamos.

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Sabemos bem que Antonio Conte, atual treinador da Internazionale, é bastante afeito à ideia de três zagueiros de ofício. Aliás, a contratação de Diego Godin nesta última janela, faz da Inter, pelo menos a priori, uma das fortes defesas do continente. Até agora, neste início de temporada, Conte segue fiel à estrutura: contra o Slavia Praga, na última terça-feira, a Inter atacava em uma espécie de 3-1-4-2, sendo Antonio Candreva e Kwadwo Asamoah (os dois alas) os jogadores mais abertos nesta linha de quatro. Lautaro Martinez e Romelu Lukaku fazem a dupla de atacantes.

Mas gostaria que atentássemos a um outro jogador, igualmente importante, que também parece ter preocupado o treinador Jindrich Trpisovsky, do Slavia Praga: Marcelo Brozovic. Desde a última temporada, ainda sob o comando de Luciano Spalletti, Brozovic mantinha níveis muito interessantes como um primeiro volante, que dava um certo ritmo ofensivo à equipe desde a base da jogada, tanto nos ataques mais curtos quanto longos. É de fato um jogador importante do ponto de vista coletivo.

Imagino que a preocupação com Brozovic foi determinante na estratégia adotada pelo Slavia Praga, sobre a qual falo mais abaixo.

 

Aqui, as disposições médias das duas equipes em campo. Repare como o 3-1-4-2 da Inter é claro e simétrico, mesmo ao longo do tempo. No Slavia, por sua vez, o losango se desfaz. Minha hipótese é que isso ocorre em razão do caráter mais fluido do ataque. Neste texto, entretanto, nos concentramos nos comportamentos defensivos da equipe.

 

O Slavia joga em um 4-3-1-2 (sim, meio-campo em losango), bastante paciente com a bola, embora não exatamente refinado, especialmente no início das construções ofensivas. Apesar de alguns equívocos no início da construção, o Slavia não abria mão de sair jogando por baixo, e não foram poucas as vezes em que levou até aos últimos limites a circulação da posse no primeiro terço do campo, inclusive usando o goleiro como apoio, apesar das diversas tentativas de pressão da Inter.

Mas é na defesa que gostaria de me ater um pouco mais. O Slavia também se defendia em losango e, como os colegas sabem, defender-se em losango tem algumas particularidades, dentre elas a demanda dos dois meias laterais, cujos deslocamentos são fundamentais para reduzir os espaços nos lados do campo (se o losango não flutua, sobra tempo e espaço aos laterais adversários). Só que neste caso, talvez em razão de alguma herança cultural (falamos de uma equipe da República Tcheca, afinal), o Slavia não marcava por zona, mas precisamente por encaixes individuais, por muitas vezes muito mais condicionados pelo adversário do que pelo setor.

Um dos encaixes mais visíveis era exatamente sobre Brozovic. Parecia haver uma clara indicação para que o croata sequer recebesse a bola, de modo que a Inter fosse obrigada, caso quisesse construir por baixo (e queria), a recorrer a outros jogadores que não Brozovic. Mas ainda havia outro movimento peculiar: a dupla de atacantes (Olayinka e Masopust) não se posicionava ao centro, fechando as linhas de passe do próprio Brozovic, mas sim abertos, distantes um do outro, provavelmente para encaixarem com dois dos zagueiros da Inter (não se esqueça que se trata de uma linha de três), justamente para condicionar a saída de bola. Mas condicionar para quem?

Aqui, uma imagem que representa perfeitamente a questão estratégica de que estou falando: encaixes em praticamente todos os jogadores da Inter, exceto em Stefan de Vrij – como falarei abaixo. Brozovic é o jogador logo à esquerda do portador da bola. Repare que apenas um jogador do Slavia na imagem não faz nenhum encaixe. Falo sobre ele abaixo.

 

Ao que tudo indica, o que o treinador Trpisovsky queria era deixar que Stefan de Vrij, zagueiro holandês (que me agrada, aliás) não fosse incomodado na saída de bola. Havia encaixes por todo o campo, absolutamente todos os jogadores de linha da Internazionale tinham um marcador referente – exceto de Vrij. Com isso, a Internazionale acabava se vendo obrigada a construir, tanto quanto possível, exatamente por ele – e neste sentido já poderíamos dizer que houve algum sucesso por parte do treinador. Leio, nas estatísticas oficiais da partida, que de Vrij não apenas foi o maior passador do jogo, com 83 passes (73 completador), como teve o dobro de passes de Brozovic, a que nos referíamos acima. É disso que se trata o princípio estrutural do direcionamento, com o qual os colegas já se depararam, no curso de Tática desta mesma Universidade do Futebol.

Mas se havia encaixes por todo o campo, exceto em um jogador, isto significa que portanto também havia um jogador do Slavia que livre da obrigação dos encaixes, correto? De fato, esse jogador era Tomas Soucek – primeiro volante, na base do losango. Há uma conotação dupla aqui, que gostaria de comentar. Por um lado, a sobra de Soucek está bastante condicionada pela disposição estrutural da Inter (se a Inter jogasse num 4-2-3-1, provavelmente ele faria um encaixe no meia central), cujo sistema deixa supostamente livre aquele espaço interior, seja para um ataque dos meias (especialmente deste ótimo jogador que é Stefano Sensi), seja para um eventual recuo de um dos atacantes. Mas, por outro lado, o fato de ter exatamente este jogador livre dos encaixes tem uma conotação menos reativa. Em primeiro lugar, porque é o capitão da equipe (o que nos leva a crer que tem uma certa liderança e talvez liberá-lo dos encaixes permitisse que ele próprio, com visão privilegiada, coordenasse o que se passava à sua frente) e depois, agora por uma razão mais estratégica, porque o fato da Inter jogar com dois atacantes de área, contra uma equipe que se defende em linha de quatro, exclui a possibilidade de sobra (são 2 v 2), de modo que é compreensível ter ali um jogador que tanto possa criar superioridades caso seja preciso, quanto possa servir para interceptar as conexões em potencial com a dupla de atacantes. Portanto, também não me surpreende que, segundo o Whoscored, Soucek seja o jogador que mais passes interceptou durante o jogo (seis). Era uma aposta, afinal.

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Como os colegas sabem, este jogo terminou empatado – a Inter salvou-se nos lances finais. Não acho razoável dizer que o jogo foi tão difícil porque o treinador do Slavia tomou as decisões A, B e C – pois, como dissemos, o futebol não se trata de relações de causa/consequência. Fosse eficiente nas situações de bolas paradas e a Inter podia ter saído do primeiro tempo vencendo por dois gols de diferença.

Mas não foi, e as apostas do Slavia Praga tiveram algum sucesso. Com dados, informações, às vezes com extremo rigor.

Mas apostas.