Compliance e programas de integridade são assuntos que historicamente não eram discutidos pelos clubes de futebol, mas que vêm ganhando destaque nos últimos anos muito em razão da necessidade de as empresas patrocinadoras desse esporte se verem distantes de escândalos de corrupção que aconteciam com alguma frequência até um passado não distante.
Mas o que é compliance? De forma sucinta, compliance consiste na adoção de um conjunto de medidas de controle interno e externo, em relação à governança corporativa, voltado para o cumprimento da legislação e padrões éticos de comportamento empresarial socialmente aceitos e responsavelmente estabelecidos de modo que sejam reduzidos substancialmente os riscos de responsabilização civil, penal e administrativa da empresa e de seus gestores ou ainda, visando reduzir riscos de danos à imagem da empresa.
Porém, é importante dizer que à exceção de clubes das grandes ligas europeias, clubes americanos e outros poucos exemplos ao redor do mundo que já adotam práticas de gestão empresarial, a mudança de toda uma cultura é um desafio gigantesco para os clubes de futebol e aqueles que ocupam seus cargos de comando, em especial os clubes sul americanos. Isso porque, embora o compliance faça parte do dia a dia da gestão de negócios do esporte na América do Norte e Europa, no futebol sul americano, especialmente no que se refere ao futebol brasileiro, o tema ainda é tratado como novidade e sem a devida atenção.
O principal ponto de discussão é sobre a forma pela qual os clubes lidam com temas relacionados com o controle, fiscalização e governança que embora sejam de extrema relevância, ainda não recebem a atenção merecida no Brasil, mas também não podemos deixar de lado temas relevantes e atuais como o novo modelo de clube empresa e o conflito de interesses que possa ocorrer em casos de empresas patrocinarem atletas e ao mesmo tempo serem proprietárias de um clube de futebol.
Sabemos que os clubes de futebol movimentam cifras na ordem dos milhões anualmente, seja com patrocínios, investimentos com recursos próprios, venda de produtos e outros. Ora, assim como qualquer empresa, o futebol é um negócio e se tornou urgente os clubes adaptarem a gestão com foco na profissionalização com a adoção de medidas que possibilitem a implementação de ações mais transparentes.
Embora evolua de forma lenta no Brasil (se comparado a Europa e EUA que já tem enraizado este modelo de gestão), algumas medidas visando maior transparência e equilíbrio financeiro na gestão dos clubes de futebol vêm sendo tomadas há alguns anos, como a criação do Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (PROFUT) por meio da Lei 13.155/15.
A edição dessa lei surgiu da necessidade dos clubes brasileiros refinanciarem suas dívidas para poderem se reorganizar administrativamente e por meio das condições especiais de refinanciamento previstas em sua redação. O clube que adere ao PROFUT tem a possibilidade de parcelar os débitos tributários e não tributários que tiverem em aberto junto à Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda, na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e no Banco Central do Brasil. O pagamento parcelado permite que os clubes tenham prazos maiores para pagamento e juros menores, desde que a instituição garanta, como contrapartida, a responsabilidade fiscal e na gestão.
Neste sentido, a adoção do compliance se mostra um fator essencial na condução dos clubes de futebol que tenham interesse em aderir ao PROFUT a fim de permitir a boa governança corporativa no âmbito da instituição, bem como prevenir a prática de atos ímprobos.
Além de benefícios de ordem tributária com a aderência ao PROFUT, por meio da adoção de um programa de compliance e de governança, os clubes de futebol brasileiros poderão viabilizar negócios de compra e venda internacionais com a adequação das regras tributárias dos países envolvidos, evitando-se, por exemplo, que ocorra a bitributação. Também, serão afastados eventuais questionamentos sobre conflito de interesses ampliando a credibilidade dos clubes de modo que este sairá beneficiado na atração de novos investidores e terá patrocínios mais valorizados tendo em vista que garantirão maior transparência nas negociações.
Ressalto ainda, e aqui segue como opinião, que a adoção de melhores práticas de gestão, possibilita o clube de futebol promover maior participação de sua torcida na gestão dos interesses do clube, o que seria uma inovação em termos de Brasil ainda que seja uma antiga reinvindicação de torcedores de muitos times que entendem que determinados grupos acabam “dominando” as instituições e presidindo as mesmas de acordo com interesses particulares.
Ademais, a adoção do compliance possibilita aos clubes gerirem as receitas e despesas com prestação de contas para os associados, o que pode ter como consequência o crescimento do número de sócios torcedores que terão maior confiança na gestão do clube tendo em vista a garantia de uma cultura de ética nos negócios, transparência e participação.
Perceberam que além de benefícios financeiros pela melhoria da imagem da marca a importância do compliance pode ser evidenciada pela proteção do clube, geração de valor agregado e aprimoramento da gestão de riscos?
Mas seria mesmo este o caminho? de que forma o compliance pode ser introduzido nos clubes? E quando houver conflito de interesses? Qual o limite para o compliance no futebol? O presente artigo não busca esgotar o tema, mas trazer esta questão tão importante para reflexão do leitor de modo que passe a ser pauta cada vez mais frequente também dentro dos clubes de futebol.
Assim como em qualquer empresa, diversas situações em um clube de futebol podem ser geridas por meio da adoção de um sistema que busca a conformidade e a “integridade” das ações organizacionais. Como exemplo, tem-se a elaboração de matriz de risco, códigos de conduta, procedimentos de auditoria e de diversos outros instrumentos que garantem que o clube tenha uma gestão transparente, ética e responsável.
Neste ponto abro aqui um ponto de discussão que envolve um recente caso que ganhou a mídia envolvendo um astro do futebol brasileiro: a empresa austríaca Red Bull é a dona do clube de futebol alemão RasenBallsport Leipzig e também patrocinadora do jogador Neymar do Paris Saint Germain, seu principal garoto propaganda, e os clubes se enfrentaram na semifinal da Champions League em 2020. Sendo assim pergunto a você, leitor. Existe conflito de interesses neste caso?
É importante ressaltar que não há um grupo de medidas padrão para compliance aplicável a todas as equipes tendo em vista a diferença de estrutura entre os clubes e os riscos associados. Entretanto, dentre as possíveis medidas de compliance que os clubes de futebol podem adotar, cita-se a criação e implementação de um código de conduta interno, padrões éticos para negociação com atletas, o treinamento de funcionários sobre as regras do clube, a instituição de um canal de denúncias, pelo qual funcionários do clube possam denunciar indícios de irregularidades e realização de auditorias periódicas.
Neste ponto não me parece crível haver conflito de interesses no patrocínio entre um atleta específico de um determinado clube e o patrocínio (ou propriedade) de um clube propriamente dito pela mesma empresa em eventual situação que ambos se enfrentem, afinal, de toda forma quem mais se beneficiaria é a própria empresa que teria seu nome divulgado não importando o vencedor.
Ademais, qualquer tentativa de priorizar ou beneficiar um dos lados iria contra o próprio sentido da adoção do compliance o que seria uma incoerência caso ocorresse mesmo que o exemplo dado trate de atleta e clube concorrentes.
Com este exemplo não pretendo afirmar que não há possibilidade ou ao menos risco de haver conflito de interesses, mas apenas trazer esta reflexão a você, leitor, sobre a possibilidade de existir conflito de interesses em especial em casos de multipatrocinios.
Perceba que a adoção de medidas para garantia da conformidade e integridade organizacional (compliance) tendem a influenciar diretamente e de forma positiva os clubes (aqui incluindo todos os seus funcionários e prestadores de serviço), proporcionando a adoção de boas práticas e, consequentemente, uma gestão mais eficiente e responsável. É possível – e até provável – que as práticas de governança advindas do sistema de compliance gerem valor para os clubes, possibilitando um equilíbrio financeiro e, com o tempo, a redução das dívidas e o aumento das receitas. Não restam dúvidas que é atrativo ao investimento no futebol uma forma organizada e transparente da gestão dos clubes.
Como exemplo de gestão transparente com foco na ética na gestão e adoção de programa de compliance no futebol brasileiro, citamos o Coritiba que foi o primeiro clube de Futebol da América Latina a adotar um programa de compliance (Programa de Conduta Coxa-Branca), criado em 2016. Por este programa o clube editou seu Código de Conduta e, por meio das regras nele estabelecidas, reforçou seu posicionamento ético.
Em 2017 a Federação Paulista de Futebol (FPF) de forma inédita em relação às federações estaduais anunciou a criação de um Departamento de Governança e Compliance cujo objetivo principal é garantir o cumprimento de leis desportivas e regulamentos internos e externos do futebol. Em janeiro de 2020 a FPF firmou acordo de cooperação com a SIGA (Sport Integrity Global Alliance), uma das principais entidades do mundo com foco na integridade, boas práticas, fair play financeiro e compliance no esporte.
Também em 2017, várias empresas patrocinadoras do futebol brasileiro, assinaram o chamado “Pacto pelo Esporte”, que, em síntese, sujeita os clubes de futebol, as confederações e as federações ao cumprimento de um conjunto de regras que garantam boas práticas de governança, integridade e transparência, para a efetivação dos patrocínios.
Outro exemplo inovador no futebol no Brasil, voltando a usar como exemplo a empresa Red Bull, o projeto do Red Bull Bragantino tem um propósito ambicioso de crescimento e é diferente daquilo que estamos acostumados a ver no Brasil por mostrar que a implantação de clubes empresas com boas práticas de gestão pode criar times fortes no futebol brasileiro.
Como exemplo da adoção de práticas de compliance pelo Red Bull Bragantino citamos a suspensão da negociação com o zagueiro Fabrício Bruno, do Cruzeiro em janeiro de 2020 devido a uma ação judicial que envolvia o jogador e o clube mineiro por atrasos no pagamento de salários. Os gestores do Red Bull Bragantino entenderam que não era interessante seguirem a negociação uma vez que ainda pendentes de decisão direitos discutidos entre o clube e o atleta.
Como se vê, práticas de sistemas de Compliance e, obviamente, a implantação de um sistema de Compliance, podem ser aplicadas de diversas maneiras no Futebol. Entretanto, em geral, os times de futebol do Brasil ainda não se atentaram (ou avaliam-se ineptos) aos benefícios e vantagens que a adoção de programas de Compliance ou de Integridade e o fortalecimento dos padrões éticos e jurídicos empresariais pode trazer aos clubes brasileiros, assim, cabe a você leitor, na condição de agente de mudanças e inovações práticas para os clubes, divulgar para que o compliance seja prática comum no futebol.
Sobre o autor
Alexandre Victor Silva Abreu, advogado, especialista em Processo Civil e argumentação jurídica e em Direito Urbanístico e Ambiental pela PUC-MG
Referência
Federação Paulista de Futebol anuncia Departamento de Governança e Compliance