“Junto à minha rua havia um bosque
Que um muro alto proibia.
Lá todo balão caia, toda maçã nascia,
E o dono do bosque nem via.
Do lado de lá tanta aventura,
Eu a espreitar na noite escura,
A dedilhar essa modinha.
A felicidade, morava tão vizinha,
Que, de tolo, até pensei que fosse minha.”
(Até Pensei – Chico Buarque de Holanda)
São tantas as ruas das nossas infâncias. A minha nem era rua, se a gente pensar que rua tem que ter calçadas e carros passando por ela. Era um pedaço redondo de terra, que a gente chamava de larguinho. Era como se fosse um país, ou um planeta e nós éramos seus únicos habitantes. No bairro havia outras ruas, outros planetas, de outros habitantes. A gente chamava de rua qualquer lugar que virasse nosso planeta e só a gente pudesse habitar e encher com nossas brincadeiras. – Mãe posso ir pra rua? – eu perguntava. E a mãe sempre perguntava, em seguida – Terminou a lição? – eu respondia “já”, me levantando e saindo correndo para rua. Vestia minha roupa de astronauta e viajava pelos espaços, para o Planeta Criança, a rua da minha infância.
Na minha infância havia um portão preto que dividia duas ruas. Do lado de cá, cinco irmãos se escondiam debaixo da cama, da mesa ou atrás da porta. “Lá vou eu!” E todos saíam de seus esconderijos, saltando obstáculos, pulando sobre o sofá e as cadeiras, e corriam até a parede do lado de fora, no quintal. “Um, dois, três! Agora é sua vez!” E a gente começava tudo de novo…
Do outro lado do portão, na outra rua, havia mais crianças. Uns corriam para se esconder na quadra de cima, outros na quadra de baixo, até dentro de suas próprias casas, parecia muito divertido.
Na rua da minha infância, o que a gente mais fazia era jogar bola. Não havia meninas. Era um tempo em que as meninas não podiam ir para a rua. Tinham que ficar em casa. Dentro da casa também tinha espaço de rua, mas o delas era bem pequeno e só quando eram muito novinhas brincavam com os meninos. Mas aquela rua fora de casa não era permitida para elas. Quando eu chegava no larguinho era mesmo para jogar bola, mas também tinha o tempo do pião, da bolinha de gude ou da pipa. De vez em quando alguma outra brincadeira como a de lutinha ou de pegador.
Tínhamos um campinho de futebol. A parede da garagem da nossa rua recebeu o nome de Gol, que registrava as marcas das goleadas que eu recebia do meu irmão mais velho. Como eu jogava mal! Com baixa estatura não alcançava a parte superior do gol, com isso meu irmão, se apropriando de suas vantagens, apresentava todo o seu talento futebolístico.
Era na outra rua que havia dois grandes times, as traves eram feitas com dois pares de chinelos ou quatro grandes pedras, posicionadas, duas a cada lado do campo, e cumpriam distâncias exatas, demarcadas com passos firmes por uma das crianças. Todos gritavam ao mesmo tempo, meninos e meninas em uma só voz. Havia jogadores, torcedores, gandulas, juízes, um verdadeiro estádio de futebol.
Na minha rua havia adultos que não gostavam da gente. Moravam em volta da rua e brigavam para a gente não brincar. Se a bola caísse na casa de um deles, eles cortavam com uma faca. Os guardas do posto policial também não queriam que a gente brincasse na rua. Corriam atrás da gente e tomavam a bola. Na nossa rua, vivíamos como marginais, porque os adultos e a polícia diziam que o que a gente fazia era errado, como se fosse fora da lei.
Algumas vezes éramos convidados para jogar queimada na rua do outro lado do portão preto, mas a resposta era sempre a mesma: Não podemos! Felicidade era quando meu pai nos observava andando de bicicleta de uma esquina para outra, mas quando ouvíamos uma voz feminina gritando: Entrem para tomar banho!, atravessávamos aquele portal contrariados, sabíamos que após o banho acabavam as brincadeiras para nós, enquanto as outras crianças, na outra rua, continuavam até o pôr do sol com suas aventuras, diversões e alegrias.
Houve um dia em que meus pais, acredito que estavam de bom humor, nos permitiram brincar na outra rua, aquela tão encantadora. Pegamos o skate e, em uma avenida movimentada, subimos e descemos entre carros e ônibus. Tínhamos asas nos pés, nos sentíamos livres, libertos de todo e qualquer perigo. Saímos ilesos, apenas não pudemos brincar mais sem a proteção e supervisão de um adulto naquela rua colossal.
Mas a rua que nos era permitida também tinha sua magia, tinha stop, jogo de adivinha e muitas histórias em família. Tinha pão com margarina, bolo de fubá e leite com café bem quentinho. Ao findar o dia pedíamos: Benção pai! Benção mãe! Benção vó! E com um beijo de boa noite, abençoados, nos despedíamos para viver uma nova aventura, desta vez de sonhos, uma aventura que só terminava no despertar do dia seguinte…