Crédito imagem – Site oficial Atlético/MG
Uma das tendências do comportamento humano, talvez de um ponto de vista histórico, reside numa vontade irresistível de ruptura – particularmente de ruptura com o passado. O fato de sermos capazes de racionalizar as coisas, portanto de darmos sentido ao que nos acontece, faz com que determinadas ideias e determinados atos nos pareçam muito razoáveis durante um certo período, mas depois não mais, e então rompemos. O futebol, enquanto atividade humana e enquanto parte do mundo da vida, não é diferente. Basta ver a quantidade de discursos e de práticas que buscam, de tudo quanto é jeito, romper com o passado e alinhar-se apenas e tão somente com uma certa ideia de futuro. Sobre isso, Pense num motorista que dirige sem os retrovisores e me diga se tende a ser uma boa ideia ou não.
Mas há rupturas e rupturas. Dentro da Pedagogia do Esporte – área fundamental na minha formação – houve uma ruptura particularmente interessante na teoria e na prática do treino, mais especificamente na teoria e na prática do treino dos jogos esportivos coletivos. Se, por muito tempo, cristalizou-se o ensino e a aprendizagem das modalidades coletivas a partir das suas diferenças (portanto, a partir daquilo que as separava), depois de um determinado momento – e talvez uma linha de corte importante seja a obra do pedagogo francês Claude Bayer – passou-se a considerar o ensino e a aprendizagem das modalidades coletivas a partir das suas semelhanças. Ou seja, podemos perfeitamente pensá-las a partir do que as une.
Segundo o próprio Bayer, há pelo menos duas categorias de saberes a partir dos quais podemos unir os jogos esportivos coletivos. Em primeiro lugar, os jogos coletivos têm, pelo menos, seis invariantes – bola, alvos, companheiros, adversários, regras e um espaço previamente definido. Ao mesmo tempo, os jogos coletivos também estão ligados pelos chamados princípios operacionais, que se subdividem em dois grupos: os princípios operacionais de ataque (manutenção da posse, progressão ao alvo e finalização) e os de defesa (recuperação da posse, evitar a progressão, impedir a finalização). Repare que a partir de um pensamento dos jogos coletivos pelas semelhanças, ao invés das diferenças, fica muito mais fácil imaginarmos o ensino e a aprendizagem do futebol não na condição de ilha, fechada em si mesma, mas na condição de algo muito mais próximo de um arquipélago, um arquipélago dos jogos esportivos coletivos, em cujas ilhas há sim certas especificidades, mas que guardam entre si enormes possibilidades de diálogo. É por isso que podemos não apenas retirar informações absolutamente valiosas das modalidades vizinhas, a partir desse fio que as une, como também podemos avançar numa prática pedagógica outra – que defende, por exemplo, uma iniciação esportiva diversificada, ao invés dos muito conhecidos processos de especialização precoce.
A partir daquela mesma ruptura – um entendimento das semelhanças mais do que das diferenças – há uma outra variável que aparentemente une os jogos coletivos, especificamente os jogos de invasão. Além dos princípios operacionais, de que falávamos acima, faz muito sentido pensarmos nos chamados princípios gerais, nomenclatura conferida pelo professor Carlos Queiroz (Para uma teoria do ensino/treino do futebol, 1983). A partir deles, sabemos que há uma necessidade absolutamente importante de buscar as superioridades numéricas, evitar as igualdades numéricas e negar as inferioridades numéricas. Embora seja um trabalho pensado para o futebol, o raciocínio é perfeitamente válido para qualquer modalidade coletiva de invasão: basta pensarmos, por exemplo, nas dinâmicas de do basquete ou do handebol, modalidades nas quais a transição ataque/defesa depende fortemente de uma completa recomposição dos espaços defensivos vitais, geralmente atrás da linha da bola, próximos ao alvo. No futsal, cuja característica também é fortemente transicional, as recomposições são igualmente rápidas, mas o fato de ser jogado com os pés, ao invés das mãos (além do fato de não haver restrições para eventuais ataques passivos, como há no basquete e no handebol) permite que as inclinações ao perde/pressiona no campo de defesa do adversário sejam bem maiores. No futebol de campo, embora se trate de uma área de jogo muito elevada (mesmo se considerarmos apenas o espaço efetivo de jogo), as tendências ao perde/pressiona também estão cristalizadas, não apenas pelo sucesso de várias das equipes que as praticam, mas também porque nos foi ficando clara a indivisibilidade das fases do jogo: defesa, ataque e transições dialogam entre si, de um modo que a estruturação do espaço numa das fases está diretamente relacionada ao que acontece na outra – portanto, a qualidade da transição defensiva depende da qualidade da fase ofensiva e etc. Em todos os casos, independentemente da modalidade e mesmo da fase do jogo, há uma certa atração pelas superioridades numéricas. E repare que, assim, seguimos uma linha de pensamento que parte das semelhanças: a busca por superioridades numéricas talvez não seja exclusiva do jogo de futebol, nem mesmo de determinadas formas de se pensar o jogo de futebol. A busca pelas superioridades numéricas, independentemente das fases do jogo, é uma tendência significativa dos jogos coletivos de invasão. Por isso, a busca pelas superioridades não é, necessariamente, um marcador de separação – é um marcador de união.
O que de fato marcam separação são os meios a partir dos quais nós criamos as superioridades. Os triângulos ofensivos do Phil Jackson, por exemplo, eram dependentes de uma assimetria na estruturação do espaço: via de regra, uma das duas zonas mortas não era ocupada por ninguém na base da jogada. No futebol, nós não temos exatamente a noção de zona morta do basquete, mas temos setores de maior importância contextual – no caso, o setor da bola. Quando pensamos numa equipe como o recente São Paulo do Fernando Diniz, pensamos num tipo de jogo em que a criação de superioridades passava mais pela ida dos jogadores até à bola do que o contrário. Em determinados setores do campo, particularmente nos corredores laterais do segundo terço, podia ser realmente problemático marcar o São Paulo, porque nenhuma equipe se dispunha, de fato, a disputar superioridade numérica no setor da bola. Se estavam, por exemplo, Juanfran, Gabriel Sara, Igor Gomes, Daniel Alves e Luciano próximos da bola, é muito mais prudente apostar na redução dos espaços no setor da bola (especialmente nos corredores laterais, pela própria restrição espacial do campo), mas mantendo o equilíbrio defensivo, do que por exemplo induzir um dos laterais a acompanhar o ponta até o outro lado do campo. Neste caso, reparem bem, não ter superioridade numérica no setor da bola pode tanto ser um cálculo (que se tenta compensar por uma variável posicional ou qualitativa, por exemplo) quanto pode, inclusive, ser futuramente benéfico, porque a chance de congestionar dois espaços ao mesmo tempo é mínima, de modo que se há muita gente atacando de um lado e a defesa recupera a posse, é esperado que haja espaços importantes do outro lado, em transição.
Era um projeto ofensivo diferente de uma equipe como o Atlético Mineiro, de Jorge Sampaoli. Ali, era muito mais nítido que a criação de superioridades acontecia por mecanismos a partir dos quais a bola ia mais até aos jogadores do que os jogadores iam até à bola. É bem verdade que havia elos mais livres: por exemplo, Eduardo Sasha me parece um jogador do agrado do Sampaoli porque sabe muito bem baixar alguns metros quando a bola está no segundo terço, especialmente no corredor central, atraindo a marcação de um dos zagueiros (para libertar um espaço às costas) ou então buscando recebê-la no espaço entre as linhas do adversário, potencialmente encontrando um terceiro homem e etc. Mas o ponto é que, naquele Atlético, era quase que impensável que um Keno ou um Savarino atravessassem o campo até o lado oposto, porque os mecanismos de criação de superioridades passavam pelo uso do campo em amplitude máxima no campo de ataque, particularmente via pontas. Neste sentido, inclusive, as igualdades numéricas não eram de todo ruins: ou ter um jogador como o Keno em situações de 1v1 não era interessante? Vejam bem, ambas as equipes tinhas formas de criação superioridades numéricas, mas isso não significa que Fernando Diniz fazia um jogo de posição ou que Sampaoli fazia algo como um jogo de mobilidade. Esses são os marcadores de diferença, de que falava acima.
Por isso, é interessante pensarmos muito atentamente na diferença entre superioridades e vantagens. É possível que uma determinada equipe tenha superioridade numérica no setor da bola, mas isso não significa que ela terá, necessariamente, vantagens naquela jogada. Da mesma forma como o gesto técnico, de um ponto de vista meramente biomecânico, não dá conta da complexidade da técnica (afinal, o ponto da técnica não é a perfeição do gesto, mas a resolução do problema do jogo), a superioridade numérica, em si, pode perfeitamente ressecar. Por isso faz todo o sentido considerar as variáveis posicionais, qualitativas, cinéticas, sócio-afetivas – quaisquer outros nomes que quisermos inventar. Os marcadores de diferença não estão nas fotos, mas no filme do jogo: a qualidade das relações, das interações e das retroações de uma equipe é que marca as suas singularidades na comparação com as outras.
O que nos leva a crer, se puxarmos o fio, que se as superioridades numéricas podem ser mais ponto de partida do que de chegada, e se elas florescem na medida em que se relacionam com as outras variáveis, dentro do contexto do jogo, pode ser perfeitamente possível que a indução às igualdades e mesmo às inferioridades numéricas sejam aceitáveis. Mais do que isso, podem ser as rupturas de um futuro próximo, em que se avizinham cada vez mais empecilhos na criação e dos espaços e na fruição das dinâmicas ofensivas. E sim, podemos tirar vantagem disso.
Mas, sobre este tema, conversamos em breve.