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Alguns entraves que atrasam o desenvolvimento do futebol brasileiro

Crédito imagem – Robson Mafra/AGIF/CBF

Quando se analisa o jogo de futebol praticado no Brasil, logo surgem percepções otimistas de que nosso campeonato – equilibrado e com muitos favoritos ao título – deveria ter maior aceitabilidade no mercado internacional e ser comercializado com cifras mais robustas. Entretanto, ao se observar com maior atenção ao ambiente no qual se insere, emergem alguns aspectos que parecem nos impor uma desvantagem quando comparados com outros países. Não pretendo exaurir essa discussão, mas apenas levantar aqueles que, a meu ver, poderiam ser enfrentados como prioridade.

 O primeiro que se apresenta no topo da lista é o calendário. São inúmeras competições – estaduais, regionais, nacionais e continentais – espalhadas pelas 52 semanas de um ano. Como não se pode aumentar esse número, logo surge um problema, pois, ao se inserir as 4 semanas de férias e outras 4 de preparação, sobram 44 apenas para uma quantidade absurda de partidas. Não entrarei no mérito de importância de uma ou de outra disputa, mas apenas salientar que essa carga excessiva de exigência – física e mental – inerentes a uma partida de futebol faz com que se tenha reflexos na qualidade do jogo no futebol brasileiro; sobretudo com a baixa intensidade e a qualidade discutível na maioria das partidas disputadas no país. A diferença com as existentes em outras localidades, não se resume apenas a qualidade dos jogadores, mas também ao nível de preparação e de descanso dos atletas.

Soma-se a isso, a estrutura física colocada à disposição dos times para a ocorrência das partidas. Não me refiro aos aspectos externos, mas sim ao palco principal do espetáculo: o gramado. Esse item onde se transcorre toda a disputa, não recebe a atenção que deveria e, muitas vezes, é relegado a um segundo plano. Não desprezarei o aspecto da diferença climática de um país continental que impacta na sua conservação. Contudo, para os atletas, se apresentarem em campos sem um nível adequado para a prática de excelência – como a maioria em uso no Brasil – consiste em um desafio técnico, físico e médico: passes e chutes são afetados no aspecto técnico; uma sobrecarga física é exigida para a prática do jogo; e um risco maior de lesões preocupa a muitos.

No decorrer do espetáculo, um outro aspecto triste que se vê no país do futebol é a busca constante por se querer levar vantagens de forma pouco honesta em todos os lances. Seja através dos jogadores, a todo momento, se jogando em campo na tentativa – algumas grotescas – de simularem faltas ou agressões; ou de seus treinadores, sempre à beira do campo, aos berros e palavrões reclamando a cada decisão contrária por parte da arbitragem; protagonizando péssimos exemplos a seus jogadores e aos torcedores. Um vexame deprimente que parece sem solução, mas comum a todos os clubes que se apresentam no futebol brasileiro. Atitudes pouco profissionais que nos envergonham, pois na maior parte dos países, tais comportamentos são condenados por torcedores e pela imprensa.

Por último, mas não menos importante, temos os horários dos jogos. Partidas são disputadas em horários sem qualquer respeito ao fuso horário. Como vender um campeonato cujas partidas se iniciam as 22h para o público europeu? Ou querer realizar jogos às 11h da manhã em um dia de verão, algo que afeta significativamente a dinâmica do jogo? Esse equacionamento, que deve levar em consideração os anseios das emissoras que investem recursos em sua produção, precisa ser gerenciado também para a comercialização externa. Sem essa visão de mercado, o produto ‘futebol brasileiro’ continuará afastado dos principais consumidores desse esporte no planeta.

Esquece-se que um estádio lotado cria uma atmosfera esportiva mais acalorada, o que deixa a disputa dentro e fora de campo mais interessante. Um fator importante que impacta diretamente nas finanças dos nossos clubes, pois muitos deles ainda tem grande parte de suas receitas vinculadas às bilheterias em dias de jogos. Menos dinheiro, menos investimentos, menos qualidade no time, piores resultados, menor o interesse da torcida, menos público no estádio, menor atratividade do produto.

Querer equiparar o nosso principal campeonato às melhores ligas de futebol disputadas no mundo é desejável, contudo, é preciso ter a nítida noção de que esses países que estão à nossa frente no quesito ‘qualidade do jogo’ foram muito bem-sucedidos em seus planejamentos de enfrentar as dificuldades que os impediam de evoluir na prática do futebol.

La Liga, Premier League, Bundesliga e Ligue 1 não são apenas nomes de competições criadas para se comercializar a preços maiores suas partidas de futebol. Todas elas adotaram estratégias racionais de construção do calendário de jogos; têm especial atenção ao palco disponibilizado para a ocorrência da partida; não toleram simulações de jogadores e mau comportamento de treinadores à beira do campo; e decidem, em comum acordo com as emissoras conveniadas, o horário das partidas tendo como objetivo principal o melhor para a visibilidade dos clubes e da competição. Um olhar econômico para um produto nacional que tem interesse comercial.

Não se conseguirá elevar o futebol brasileiro ao nível das principais competições mundiais sem equacionar, enfrentar e resolver os inúmeros problemas que nos impedem de reconquistar o status de referência na prática do futebol. Hoje, infelizmente, deixamos de ser vistos e temidos, pois sabem que nossa técnica não consegue sobreviver à ausência de um mínimo de planejamento – dentro e fora do campo – para a prática profissional do futebol.

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O jogo tem vida

Crédito imagem: Coritiba/Twitter

Dentro de um jogo, o que é a finalização? A habilidade de chutar ou arremessar a bola em um alvo predeterminado para pontuar? E o drible? A habilidade de conduzir a bola mantendo o seu controle durante o processo? E o passe?

O passe, podemos dizer, é a habilidade de chutar ou arremessar a bola para um colega de equipe. Aqui está a fresta por onde começo a explicar por que acredito que o jogo é algo vivo. Diferentemente dos exemplos no primeiro parágrafo, não tem como excluir a outra pessoa na explicação da ação do passe. Isso é porque é incontornável que o passe seja compreendido mais como uma interação do que ação. Em outras palavras, depende de alguém para realizar o gesto técnico do passe assim como alguém para receber.

Faça um exercício simples: em uma sala fechada e com alguém perto, amasse uma bolinha de papel e com a pessoa te olhando de frente jogue a bolinha para ela. Agora, a pessoa sem a bolinha vira de costas e a outra joga a bolinha sem avisar. O passe ficou quase impossível. Sem a disposição da outra pessoa para receber o passe, ele não existe.

Podemos dizer o mesmo para a finalização, afinal quem ataca tentará marcar ponto, então a goleira da equipe adversária está constantemente interferindo onde finalizar, como e quando. Igualmente no drible, pois são as adversárias os grandes desafios para quem conduz a bola, comunicando (com e sem intenção ao mesmo tempo) com a atacante sobre como, quando e para onde tentar driblar. Isso segue com todos os outros fundamentos nos jogos.

Foi mais ou menos a partir daí que o genial Paco Seirul-lo disse que no futebol não existem ações, mas interações. Os jogadores estão constantemente reagindo às mais diversas situações de jogo, prestando atenção na bola e nos adversários. Como o próprio Seirul-lo diz, “o futebol é um fenômeno complexo (…) de interação, imprevisibilidade, auto-organização dos organismos e variabilidade, onde os critérios de causa única e cumulativos não tem lugar” (Seirul-lo, 2017 p. 31). Porém, gostaria de dar aqui meio passo adiante.

O jogo se dá em um continuado processo de improvisação por parte dos jogadores. Para ajudar aqui trago o antropólogo Tim Ingold, que explica o improviso como “seguir os modos do mundo à medida que eles se desenrolam” (Ingold, 2012 p. 38). Ingold entende que a vida – e digo que o jogo também – se forma por um emaranhado de fios vitais que se entrelaçam, não para alcançar um fim, mas para seguir em frente. As coisas são formadas por uma malha de fios, que se atravessam e cruzam, sem começo ou fim. Por isso que no jogo, o passe, finalização ou drible não estão isolados do todo. Existem colegas de equipe, adversários, bola… e é aqui que começo a dar o meio passo além de Paco Seirul-lo.

Voltemos à bolinha de papel para sairmos da sala e imaginar o mesmo exercício um ambiente aberto. Agora tem o vento ou a chuva interferindo o passar da bolinha de papel. Ou seja, existem elementos que estão fora do nosso controle atravessando o lançamento da bolinha no ar. Tim Ingold em seu artigo usa o exemplo de uma pipa: em uma sala fechada, é impossível dela voar, porque não basta a interação entre Eu e o objeto; é necessário o vento para que a pipa ganhe vida e vire o que ele chama de pipa-no-ar. Na mesma lógica escrevi logo no início “dentro de um jogo”
para pensarmos aqui.

Antes de continuar, um momento para esclarecer: é lógico que um jogador tem mais ou menos habilidade individual para realizar o gesto técnico do passe, finalização, drible, cabeceio, etc. Maior habilidade técnica pode permitir uma gama mais vasta do que fazer no jogo. Não se trata disso, mas sim destacar que a jogadora está jogando um jogo. Seguimos.

Em um jogo de futebol de campo, não estão jogando apenas 22 pessoas. A bola (lembra da icônica Jabulani em 2010?), o tempo, a grama, a torcida e como bem lembrou Hudson Martins em sua coluna, a fortuna, tykhe ou simplesmente imprevisibilidade também jogam. Ou melhor, diria que nós jogamos o jogo assim como o jogo joga com seus jogadores. A imprevisibilidade é mencionada por Paco Seirul-lo, por isso que qualquer contribuição que eu possa dar aqui é ínfima comparada com tudo que Seirul-lo já fez. Ainda assim, acredito que seja válida e por isso escrevo essa breve divagação.

Os limites entre jogadores e jogo são porosos, forçando processos complexos de habilidade em quem joga o jogo para que o ambiente seja considerado como parte da dinâmica de seus gestos no jogo. O jogador sente, ouve e olha ao mesmo tempo que joga, caracterizando um movimento de atenção, que só é possível quando o jogador ou jogadora é capaz de responder contínua e fluentemente a perturbações do ambiente, sem a necessidade de interromper a ação (Ingold, 2010 pp. 17-18). Ou seja, é quando o jogador faz parte do jogo, deixando-o fluir por si que a habilidade mais refinada pode ser executada.

Através dos movimentos de atenção que o jogo vai ganhando vida, através dos fluxos e contrafluxos que atravessam seus jogadores e jogadoras. Um jogo é onde “aconteceres” se entrelaçam, se transbordam e se refazem em síncopes. Por sua autotelia e relações humanas, além da sua imprevisibilidade, que Paco Seirul-lo mesmo reconhece e por isso digo que estou no máximo dando meio passo além, acredito que no jogo o que existem são itinerações. Jogadoras e jogadores transitam pelo jogo mais do que o controlam. Na transição, também o transformam, tecendo fios vitais que o atravessam, e é no “dar forma”, na contínua improvisação que reconhecemos como jogar, que o jogo está vivo.

Bibliografia
Ingold Tim Da transmissão de representações à educação da atenção [Periódico] // Educação. – Porto Alegre : [s.n.], jan./abr. de 2010. – pp. 6-25. Ingold Tim Trazendo as coisas de volta à vida [Periódico] // Horizontes Antropológicos. – Porto Alegre : [s.n.], jan./jun. de 2012. – pp. 25-44.

Martins Hudson Universidade do Futebol [Online]. – 31 de mar. de 2021. – 29 de jul. de 2021. – https://universidadedofutebol.com.br/2021/03/31/sobre-o-modelo-de-jogo-como-um-organismo-vivo/.

Seirul-lo Francisco Vargas O treinamento dos esportes em equipe [Livro]. – [s.l.] : Mastercede, 2017.