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O ensino do futebol – uma alternativa à captação

Crédito imagem – Palmeiras/Divulgação

Com ou sem escola, as pessoas aprendem. Aprender é o destino de todos nós. O que a natureza nos dá é insuficiente para darmos conta dos problemas permanentes que nos acometem, de cujas soluções depende nossa adaptação ao mundo. As crianças, por exemplo, aprendem desde o nascimento: aprendem inicialmente com a mãe e com o restrito contato que pode manter com seu meio, aprendem com a família, aprendem com seu círculo de relações com outras crianças, outros adultos, objetos e natureza ao redor, aprendem com a escola, com a igreja e outras instituições. Com o desenvolvimento essas relações se ampliam. As crianças, assim como os adultos, aprendem permanentemente, pois, consciente ou inconscientemente, sentem que sempre falta algo que poderá ser preenchido com as aprendizagens.

O tema que motiva este artigo é o futebol e o modo como ele é aprendido pelas crianças e jovens, e como são encaminhados, para níveis mais refinados de práticas, aqueles que demonstram habilidades especiais para esse esporte. Quando descobertas por quem as procura para encaminhamentos destinados à profissão futura de futebolistas, elas passarão por um novo processo de aprendizagem do futebol, não mais daquela forma lúdica, brincada com seus companheiros, mas orientada, dirigida com fins específicos para uma prática, talvez, profissional dentro de alguns anos.

De maneira geral, essas crianças e jovens encaminhados para os clubes e uma futura carreira profissional, são fruto de descobertas feitas por caçadores de talentos espalhados por todo o Brasil. Trata-se de eventos acidentais. Algo parecido com o que se faz nos garimpos à procura de ouro. O problema é que ouro é ouro, está lá, pronto pela natureza, é só pegar. Criança não é ouro, é gente, muda o tempo todo, tem que aprender para viver. Antes de serem descobertos, esses talentos aprenderam futebol ao seu modo. Esse modo é conhecido por todos aqueles que brincaram com o futebol de rua, de campinhos, ou de qualquer lugar em que pudessem compartilhar o divertido jogo de bola com amigos. Quando são reconhecidos pelos caçadores de talentos, quase sempre esses profissionais atribuem à natureza as habilidades demonstradas pelos jovens jogadores. Ignoram o processo por que passaram e acham que são assim porque a natureza assim os fez, diferentes de todos os outros desde o nascimento. Portanto, para essa concepção, trata-se de não perder tempo ensinando, pois os que se tornarão jogadores profissionais são aqueles talentosos por natureza, nasceram para isso. O que precisam, de acordo com esse conceito, é de uma orientação segura que os torne capazes de cumprir as determinações de professores e técnicos. Portanto, somente acidentalmente serão descobertos pelos caçadores de talentos. As chances de descobri-los serão tão maiores quanto maior a rede de observação espalhada pelo território brasileiro. E isso tem sido feito pelos grandes clubes de futebol do Brasil.

Essa prática de descoberta acidental de talentos guarda, em seu núcleo, um problema incorrigível. Por acreditar no talento nato, ela ignora a história do menino ou da menina que mostra habilidades especiais. Antes de serem descobertos viveram um processo no jogo de bola. Trata-se de um processo de aprendizagem. Ele envolve as condições de nascimento, envolve, também, claro, as condições biológicas, envolve a família, o lugar de nascimento, a cultura desse local, a liberdade para jogar, alimentação etc., etc. A caça ao talento ignora o modo como o jogo de bola foi praticado pelo menino ou menina, ignora o grupo infantil, essa pequena sociedade lúdica onde jogar bem é fator importante de identidade e inclusão, ignora o método da educação da rua. Por ignorar tudo isso, ao ser levado para um clube, o menino ou menina sofrerá brusca interrupção nesse processo educacional para o jogo de bola. Tudo que viveu até então será ignorado. É como se tivesse que começar do zero. E, então, um novo processo, que nada tem a ver com o anterior, é iniciado. É aí que se dá o nó da questão. A criança era criativa, divertida, jogava maravilhosamente, mas só naquele contexto de liberdade, de “irresponsabilidade”, de ludicidade, em seu grupo, no seu contexto. Quando chega ao clube, é outro contexto, não há mais sua pequena sociedade, o lúdico praticamente morre, nada de liberdade, pois os torneios exigem não perder, e assim por diante. Ela terá que se adaptar ao novo contexto e começar um novo processo. O que fazer com o que passou? O que fazer com sua história até então? E os fracassos se sucedem. Os poucos que sobrevivem a essa terrível seleção, chegarão aos subs 17, 19, 20, 23 adaptados a um futebol que nem de longe lembra o que jogaram quando aprenderam na rua. E o talento tão decantado será “provado” por raros. E esses raros continuarão alimentando a tese do talento natural. Quantos seriam os talentos caso fosse respeitado o processo que produziu tão maravilhosas habilidades? Não é de estranhar serem tão raros os talentos?

Suponhamos agora um outro caminho, que, por sinal, é trilhado por muitos professores e professoras, não só no futebol, mas em outros esportes, nas artes e outras produções culturais. Porém, fiquemos somente com o futebol. Consideremos que a educação da rua, excepcional na formação das habilidades para o jogo de bola com os pés, não seja interrompida. Claro, alguns questionarão essa rua, dizendo que, em boa parte do país, ela não existe, a não ser para os adultos e os veículos. É verdade, porém, falamos de uma cultura da rua, uma cultura da vida, e não exatamente do espaço entre calçadas. Trata-se de uma metáfora para aqueles espaços em que as crianças brincam entre elas, aprendem entre elas, definem papéis, firmam identidades, definem prioridades, desenvolvem habilidades de acordo com a cultura de cada uma dessas pequenas sociedades lúdicas, enfim, onde formam uma pequena sociedade lúdica.

Esta segunda hipótese abre algumas boas perspectivas e alternativas que corrigem o problema nuclear da hipótese do investimento na seleção natural, na busca acidental de talentos. Quando um observador observa crianças ou adolescentes jogando bola, ele colherá apenas um breve momento das práticas deles. Mesmo que a observação se estenda por alguns dias, ela só poderá perceber uma pequena mostra das possibilidades dessas crianças e adolescentes. Pelo contrário, quando inserida num processo educacional, a criança terá a oportunidade de evoluir em suas habilidades. Considerando que o ritmo de desenvolvimento é extremamente variável de criança para criança, aquilo que uma delas apresenta de habilidades para o jogo aos 10 anos, por exemplo, só poderá ser alcançado por outra aos 12 anos. Quando chegarem ao final da adolescência, talvez não tenham nenhuma diferença, ou poderão tê-la a favor de qualquer das duas; trata-se de algo imprevisível.  

A respeito dessa segunda hipótese, isto é, o ensino como alternativa à captação, aqui já chamada de seleção natural, comecemos por um dos casos possíveis: a aprendizagem informal do jogo de bola e o encaminhamento por observadores a clubes profissionais. Nesse caso, a criança ou jovem já sabe jogar bola bem, em nível suficiente para ser levada para um clube. É diferenciada, destaca-se das demais. O clube que a acolhe entende que ela pode chegar ao alto nível de rendimento, tornar-se profissional de futebol. Mas ela corre o risco de ter o desenvolvimento de suas habilidades interrompido pelo método orientador das atividades do clube. Como evitar isso? O clube só poderia evitar esse problema se tomasse como orientadora de seu método a educação da rua, dando continuidade ao processo vivido pela criança até então. Porém, o clube não é a rua, e nunca será; não há como transplantar a rua para o clube, são contextos diferentes. Porém, embora não seja possível transformar o clube em rua, é possível compreender o processo de educação da rua e transformá-lo em uma pedagogia da rua. Não há estudos a respeito disso, porém, boa parte dos que trabalham na área do futebol profissional viveram a rua como experiência educacional em suas infâncias. A rua registra elementos como a formação do grupo, chamado por mim de pequena sociedade lúdica, registra, dentro desse grupo, a constituição da identidade de seus membros, a distribuição de papéis, a importância de, de acordo com cada papel, desenvolver habilidades para o jogo de bola, registra a importância do refinamento do jogo de bola dentro do grupo, e assim por diante. A rua é um cenário lúdico e tem características de descompromissos fora do grupo, oferecendo espaço para a criação, liberdade para a experimentação, não punição para os erros, incitação ao refinamento dos gestos etc. O clube que compreender as características da rua, tendo profissionais competentes para transformar esse processo educacional em metodologia e pedagogia, pode, não replicar a rua, mas dar prosseguimento ao processo ao integrar os elementos nucleares da rua na formação dos meninos e meninas das equipes de base.

Vamos a um segundo caso. As crianças que não aprendem o futebol na rua, mas em escolas de futebol. Antes relembremos que rua é mais que um espaço entre calçadas; é um fenômeno cultural, um grupo de crianças que brinca, não importa o espaço. Um grupo que forma uma pequena sociedade lúdica sem necessitar de orientações de adultos. Portanto, mesmo quando vão aprender futebol em uma escola, essas crianças possuem uma história, participam de sua sociedade lúdica em casa, no pátio do prédio, no intervalo entre as aulas da escola regular etc. Que essa história não seja ignorada. Elas sabem brincar e suas brincadeiras poderiam alimentar de conteúdos o ensino do futebol, desde que houvesse uma adaptação. Essa adaptação consideraria que a rua não é perfeita, tem seus vícios, que poderiam ser evitados na pedagogia da rua. Toda educação sistemática deveria começar por aquilo que as crianças já sabem, aquilo que elas trazem de fora da escola.

São muitas as escolas de futebol espalhadas pelo Brasil. Centenas ou milhares. Algumas ligadas a franquias de grandes clubes de futebol profissional. De maneira geral, essas escolas de futebol fazem o que também ocorrerá nas equipes de base dos clubes de futebol: interrompem o processo de aprendizagem lúdica das crianças, ignoram sua história. Vamos supor que uma escola de futebol decida praticar a pedagogia da rua para ensinar futebol aos seus alunos. Os elementos para construir essa pedagogia ela tem. Inclusive, foram descritos em parágrafos anteriores deste artigo. Essa escola de futebol terá, talvez, que enfrentar a resistência de muitos pais que querem ver seus filhos replicando o que fazem jogadores profissionais de futebol. Será uma questão de esclarecer os pais no momento da matrícula a respeito da linha pedagógica da escola e de manter reuniões periódicas com eles. Vamos supor também que os professores dessa escola de futebol sejam competentes, esclarecidos e compreendam a educação da rua, portanto, capazes de orientar as práticas por uma metodologia da rua. E que o problema com os pais esteja superado. Para constituir essa pedagogia da rua, a escola de futebol levará em conta as brincadeiras que as crianças já conhecem. Levará em conta os conteúdos típicos da pedagogia da rua no que se refere ao futebol, ou seja, brincadeiras como o bobinho, a repetida ou rebatida, o três dentro, três fora, a pelada e o controle, entre outras. Levará em conta liberdade e a “irresponsabilidade” necessárias à criatividade, levará em conta a importância de estimular a formação de uma pequena sociedade lúdica entre os alunos e, para incrementar essa pedagogia, o envolvimento dos alunos em outras atividades culturais, como vídeos, músicas, passeios, trilhas na natureza e outras.

Vamos agora a um último caso, ainda em torno da pedagogia da rua. Isso não quer dizer que não haja outros casos possíveis, mas é o possível para este breve artigo. Temos que discutir o que se faz, atualmente, nas equipes de base do futebol brasileiro. Como esse universo é muito extenso, minha crítica dirige-se apenas àquelas equipes em que o processo educacional da rua é interrompido e substituído por imposições de práticas produtoras de medo, excesso de regras, chantagens, defender-se a qualquer custo, excesso de responsabilidade, não perder acima de tudo, eliminação do lúdico e de toda a criatividade, entre outros fatores. O resultado de tais procedimentos é a inibição gradativa das habilidades, da criatividade e do lúdico que caracteriza qualquer jogo. Lembrem que o futebol é considerado um jogo e, como tal, precisa ser lúdico, caso contrário já não será jogo e sim uma tarefa estafante e enfadonha. Um clube profissional de futebol corre o risco de, consideradas as proporções, ter um jovem de 20 anos de idade menos habilidoso para o futebol que quando ele chegou ao clube aos 12 ou 13 anos de idade. Como fazer para que isso não ocorra?

Estou sugerindo que os responsáveis pela formação de jogadores nas divisões de base considerem a seguinte lógica: se os meninos e meninas participantes dessas divisões foram escolhidos por suas habilidades, elas não caíram do céu. Foram construídas nas relações deles com o jogo de bola. O jogo de bola, como disse o Prof. Alcides Scaglia, na verdade muitos jogos, e da família dos jogos de bola com os pés, é uma atividade lúdica. Jogo e lúdico são a mesma coisa. São atividades produzidas quando predomina, em nós, a dimensão lúdica. E o que é a dimensão lúdica? É um dos aspectos do ser humano que se manifesta sem compromissos externos, em troca de nada. É uma espécie de fazer por fazer, de graça. Por isso tem graça. Quando jogam bola na rua, as crianças não têm qualquer compromisso fora do grupo do jogo de bola. É uma pequena sociedade que não tem que prestar contas para nada que esteja fora dessa sociedade. Elas jogam por jogar, embora, nas suas fantasias, imaginem-se jogando em um grande clube, marcando gols decisivos, fazendo defesas aplaudidas. Esse jogar por jogar permite arriscar, pois nada fora daquele jogo as cobrará, nada as exigirá, nada será feito que não possa ser refeito. Essa liberdade, esse salvo-conduto para o risco, permite tentar o novo, a criação. Não há jogo sem risco. No entanto, nas divisões de base, correr o risco tem consequências graves. Se der certo, tudo bem, mas se der errado – e a chance de dar errado é sempre enorme – a punição pode ser grave, pode significar perder o lugar na equipe, pode comprometer a sonhada carreira profissional.

Nas divisões de base, portanto, assim como nas escolas de futebol, não se deveria cobrar vitórias e títulos. Eliminar essa cobrança significaria tirar o peso da responsabilidade que inibe a criação. Que a expectativa por vitórias e títulos fique para depois, para a vida adulta, para a vida profissional, quando o jogador ou jogadora terá consciência suficiente para dar conta disso, terá maturidade, terá habilidades e modo de jogar consolidados.

Nessas divisões de base o núcleo das atividades práticas deveria ser a educação da rua, ou seja, as equipes de base deveriam pautar suas práticas por uma pedagogia da rua, fundada na educação da rua, dando continuidade ao modo como esses e essas jogadoras aprenderam a jogar bola. Nas divisões de base o jogo ainda deveria ser o jogo de bola.

Considero, portanto, que uma pedagogia da rua é possível, em escolas de futebol, nas equipes de base dos clubes de futebol profissional ou em qualquer outra instituição. Quantos jovens que poderiam ser jogadores profissionais extremamente habilidosos não perdemos por apostar, quase sempre, na descoberta acidental, na tal captação?

Os jovens precisam de tempo para revelar suas habilidades. Precisam de orientação, de paciência, de quem lhes dê atenção e os observe com humanidade. Não são máquinas, são seres humanos. É difícil enxergar seus sentimentos, mas é possível considerar suas expectativas, seus medos, seus sonhos, e dar um tempo para que se revelem, cada qual a seu tempo. A pressão por resultados é insuportável e uma espécie de guilhotina de habilidades. Perdemos centenas, milhares, milhões de jovens que poderiam ser alegres e nos alegrar com suas habilidades para o jogo de futebol. Estamos agindo como Herodes, isto é, matando o talento antes que ele se revele, simplesmente porque alguns observadores, como ungidos por Deus, determinam quem é e quem não é capaz de jogar futebol. A pedagogia da rua não pensa só no futuro jogador de futebol profissional, pensa, antes de tudo, no ser humano, no cidadão, nos direitos humanos. Não educa, prioritariamente, para formar o futebolista, mas para formar a pessoa, de modo que, também, o jogador profissional seja, mais que isso, um cidadão digno. A pedagogia da rua propõe que eduquemos as crianças e jovens para o futebol e para a vida, e que possam ser educados em seus lugares de origem, em vez de serem obrigados a migrar pelo território brasileiro e para fora do Brasil. A educação desses jovens com bolas nos pés objetiva, entre tantas coisas, evitar que passem por eventos que lembrem, inevitavelmente, o tráfico de seres humanos.