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Mais uma vez explicando sobre a especialização precoce no futebol

É muito cansativa a tarefa de explicar as razões pelas quais as crianças não podem ser submetidas a treinamentos e competições esportivas precocemente, principalmente se realizadas nas perspectivas que vemos com frequência, isto é, adaptando-as ao esporte profissional e não adaptando o esporte à criança. Do ponto de vista científico, nada existe que fundamente essa precocidade; e tudo existe que a reprove. Por mais que artigos e livros a respeito do tema sejam publicados, prevalece a opinião daqueles que partem somente do seu conhecimento empírico ou seu “achismo”, e insistem na ideia de que, quanto mais cedo as crianças começarem a realizar treinamentos esportivos especializados, maiores as chances de êxito esportivo na adolescência e idade adulta.

Como argumento, citam as exceções de sempre, isto é, um ou outro atleta que foi iniciado precocemente e chegou ao topo do rendimento esportivo. Quanto à vida pessoal desses atletas nada se fala. Quanto aos diversos tipos de assédio, inclusive sexual, sofridos por meninas e meninos que buscam concretizar o sonho de serem jogadores profissionais de futebol, a memória se apaga. Quanto às contusões, dores e doenças decorrentes do excesso de esforço para organismos jovens, não há menções. Quanto aos problemas psicológicos causados pela pressão absurda a que são submetidos e pelo estresse de treinamentos e competições, os “entendidos” se calam.

               Apesar de cansativa, vamos, mais uma vez, à tarefa de desmascarar os arautos do treinamento precoce e as decorrentes competições.

               No futebol, as idades das categorias são cada vez menores: sub9, sub 7, sub 5 e, logo mais, sub-feto, envolvendo famílias ansiosas por exibir seus futuros campeões. Para os clubes e agentes, trata-se apenas de negócios, e as crianças, mercadorias. Se, entre milhares e milhares de criancinhas sacrificadas no altar do lucro, aparecer meia dúzia de talentos precoces, o rendimento financeiro estará garantido. Sem contar os atravessadores tirando dinheiro de pais e mães desesperados por evidenciar seus filhos (pagando para competir, pagando para treinar, pagando para passar por peneiras etc.).

               Poderíamos citar a ginástica, o atletismo, o voleibol e muitas outras modalidades esportivas. Mas o espaço para escrever isso exigiria um livro inteiro. A ideia generalizada no esporte brasileiro e mundial, com raras exceções, é a de que, quanto mais cedo se dá a iniciação esportiva em uma determinada modalidade, melhor.

               Trata-se de um absurdo científico e até de bom senso. Porém, o que prevalece é o mau senso. Vamos aos nossos argumentos que justificam essa afirmação.

               Comecemos pela questão moral. Como é possível comparar a moral de uma criança de 5, 6 anos com a moral de um adolescente ou de um adulto? Aos 5 ou 6 anos de idade uma criança está começando a formar aquilo que chamamos de julgamento moral. Uma pessoa só pode julgar moralmente (não necessariamente com acertos) os outros quando ela é capaz de se colocar no ponto de vista do outro. As brincadeiras das crianças, nessa idade, não devem ser orientadas com base em julgamentos morais, em regras rígidas. As regras para grupos dessa idade devem ser muito simples, pois as crianças sentem muita dificuldade em se colocar no ponto de vista dos colegas.

Os julgamentos morais no esporte são feitos com base na ideia de justiça. Quando um(a) jogador(a) se sente injustiçado(a), ele(a) reclama. A partir dos 6, 7 anos mais ou menos, já podemos perceber algum esforço das crianças para dividir, trocar e compartilhar, abrindo mão de parte de seus interesses. Nessa idade, com base nas insatisfações, uma professora bem formada reúne a turma e conversa a respeito. Se ela souber conduzir a conversa, as crianças chegarão a acordos, ou para aceitar a regra estabelecida (algumas das regras convencionais do esporte), ou para criar uma regra especialmente para o jogo que está sendo realizado. Quando chegam ao acordo, estabelece-se que, a partir daí, valerá tal ou tal regra. Os insatisfeitos, sentindo que a regra faz justiça, aceitam e o jogo continua.

O que significa essa regra? Significa que vários jogadores(as) abriram mão de interesses pessoais em busca do interesse comum. Ou seja, uma regra é uma norma de regulação das relações no grupo, feita de renúncias de interesses pessoais em favor do interesse geral do grupo. Isso, em crianças de 5 ou 6 anos de idade é muito incipiente, afinal, elas são ainda muito autocentradas, buscam, de maneira um tanto mágica, fazer prevalecer os próprios desejos. É por isso que, por exemplo, numa brincadeira de bola entre pequenos de 4, 5 anos ou até mais, a gente observa o grupo todo correndo atrás da bola. Isso porque o interesse é ter a bola, o objeto de desejo. Nada mais interessa além disso. E é assim que as brincadeiras devem ser realizadas, em função dessa dificuldade em julgar moralmente as situações.

               Até os 6 anos de idade (e essa idade pode ser maior ou menor a depender da criança), se escolhermos bem as brincadeiras, as crianças jogarão ao seu modo e se divertirão. Não temos que enquadrá-las nas regras do esporte adulto, pois isso acarretará sérios prejuízos para elas e para o esporte. Para elas, pelas consequências futuras de tal pressão e, para o esporte, porque a maioria perderá o interesse pela prática esportiva e desistirá rapidamente.

               A partir do momento em que podemos conversar com elas e estabelecer regras, isso significa que não transgredirão? Não. Sempre uma ou outra transgredirá. Quando isso acontecer, retoma-se a conversa. Ou não. No esporte convencional, para aqueles que preconizam a especialização precoce, as regras são impostas e, quando transgredidas, as crianças são punidas. No esporte educacional, constrói-se regras junto com as crianças para que elas desenvolvam uma moral de autonomia, ideia democrática de convívio em grupo, a ideia de acordos, de enxergar o interesse comum.   

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10 coisas que o presidente da CBF deveria saber: Propostas para o resgate do “jogo bonito” brasileiro

Por João Paulo S. Medina – Fundador da Universidade do Futebol

Vamos começar pela raiz que justifica o mandato do Presidente da Confederação Brasileira de Futebol:

1.“Por força de sua filiação à FIFA e CONMEBOL, a CBF é a única entidade brasileira autorizada, de forma exclusiva, a dirigir e controlar o futebol no território brasileiro” (Art. 5; § 1° de seu estatuto), tendo assim o dever de dirigir e organizar todos os assuntos e questões relacionados à prática formal do futebol profissional e não profissional, administrando, difundindo, fiscalizando e, sobretudo, fomentando e aperfeiçoando constantemente a modalidade em todo o país.

Tamanho conjunto de responsabilidades, obriga que o mais alto mandatário desta instituição esteja devidamente preparado para cumprir estas exigências estatutárias, sabendo que:

2. O futebol não é uma simples modalidade esportiva, mas um fenômeno global de massa que serve a muitos interesses, alguns legítimos e necessários ao próprio desenvolvimento sociocultural, econômico e esportivo da sociedade, e outros nem tanto, que precisam ser combatidos ou neutralizados com muita determinação e energia.

3. Neste sentido, mesmo sabendo que toda ação social é um ato político, é bom também lembrar que o Estatuto da CBF define em seu Artigo 12, que é papel da instituição “dirigir, organizar e ordenar, no território brasileiro, todos os assuntos e questões relacionados com o futebol, de forma independente, prevenindo quaisquer ingerências políticas ou de terceiros”; entendendo aqui que estas ingerências políticas ou de terceiros devam significar o ato de combater ou neutralizar quaisquer interesses ilegítimos ou espúrios, muitas vezes facilitados pela própria importância que damos ao futebol.

4. Neste contexto amplo, é preciso que o presidente da CBF saiba que o desempenho esportivo e os resultados alcançados por suas Seleções são o resultado ou reflexo de tudo que é feito em sua base (nos clubes, nas escolas de futebol, nas escolas formais), precisando, portanto de toda a atenção, cuidados, parcerias e investimentos da instituição em recursos materiais, tecnológicos e, sobretudo, humanos para que o futebol se desenvolva adequadamente e se possa, assim, resgatar “o jogo bonito” que é, verdadeiramente, a identidade do futebol brasileiro, reconhecida em todo o mundo, mas que está se descaracterizando rapidamente por força não só da globalização, mas principalmente devido à falta desta compreensão e de investimentos consistentes em capacitação profissional competente.

E falando em “jogo bonito” e em identidade do futebol brasileiro, é fundamental que o mais alto mandatário da instituição que tem poderes legais para administrar o nosso futebol, saiba também que:

5. Assim como nossa identidade futebolística, com todas as suas nuances e características regionais, foi uma construção que se deu ao longo dos tempos, baseada sobretudo em uma “pedagogia da rua”, que garantia a nossa essência, sustentada pelo lúdico, pela alegria, imaginação, criatividade, ginga, malandragem etc., ela também se desconstrói histórica e culturalmente. Portanto, podemos inferir que resgatar o “jogo bonito” ou desenvolver um novo estilo contemporâneo brasileiro de jogar futebol não ocorre por geração espontânea ou apenas com boas intenções, mas com políticas que exigem muito conhecimento, planejamento e ações de longo prazo (5, 10, 20 anos), impossíveis de serem implementadas sem a liderança proativa da CBF.

6. Ainda pensando no movimento de globalização (que a tudo pasteuriza) e os interesses econômicos (que costumam secundarizar outros relevantes aspectos socioculturais e esportivos), é preciso que o dirigente da CBF entenda que a abertura indiscriminada de vagas para importação de jogadores estrangeiros, ao mesmo tempo em que os melhores jogadores(as) brasileiros(as) sofrem um processo inverso (de exportação), fragiliza o nosso futebol em sua essência, além de diminuir drasticamente as possibilidades de jovens brasileiros que se destacam nas categorias de base de seus clubes, ocuparem uma posição ou vaga em suas equipes principais. Atualmente é permitida a participação de 9 jogadores estrangeiros por equipe.

7. Convém destacar também que dada a complexidade do mundo atual, nenhum setor da atividade humana consegue mais ser administrado e evoluir quando seus líderes atuam de forma isolada ou centralizadora. Com o futebol, não é diferente. Todo gestor competente deve saber que as ideias inovadoras e as melhores soluções ocorrem por participação e esforços coletivos, contando com o engajamento e comprometimento de pessoas igualmente competentes e bem lideradas. Facilitar o surgimento de uma Liga Nacional de Clubes atuante, responsável e, tanto quanto possível, coesa, pode ser um grande exemplo para reunir proativamente dirigentes, executivos e gestores com o propósito de se buscar soluções coletivas que sejam benéficas para todo o ecossistema do futebol brasileiro, entre elas a adoção de medidas efetivas que garantam a implantação e regulamentação do “fair play financeiro”, tanto para as SAF´s quanto para os clubes associativos.

Muitas outras providências e projetos poderiam ser pensados, implantados e implementados, com divulgação transparente sobre os recursos materiais, financeiros, tecnológicos, ambientais e humanos utilizados e devidamente auditados. Vamos citar mais 3 providências essenciais que o Presidente da CBF, enquanto principal responsável pelo fomento do futebol brasileiro, precisaria ter clareza:

8. Para que o futebol brasileiro possa se desenvolver de forma consistente, é necessária a criação gradual de Centros de Excelência de Futebol (estaduais ou regionais) que possam servir de referência não só para as práticas educacionais (escolas de futebol) e competitivas (Seleções), mas também como centro de estudos e pesquisas que desenvolvam e fortaleçam uma prática saudável, com atividades pedagógicas que reforcem o “jogo bonito” enquanto essência do futebol brasileiro. Estes Centros de Excelência poderiam também servir de base para diferentes categorias de Seleções masculinas e femininas, melhorando sua estrutura e aumentando suas possibilidades competitivas de forma planejada.

9. Somente a criação de um Comitê Disciplinar e de Arbitragem democrático, competente, legítimo, com suficiente credibilidade e amplos poderes, poderia ser capaz de reverter o triste, feio e lamentável estágio atual (“modus operandi”) do futebol brasileiro. A. Simulações ridículas de faltas; B. Reclamações desproporcionais de atletas, treinadores e dirigentes; C. Erros grosseiros da arbitragem, com uso indevido dos recursos tecnológicos como o VAR (tão necessários para trazer mais acuidade e justiça às decisões do árbitro); D. Comportamento inadequado das torcidas, que exigem não só medidas punitivas severas, como principalmente medidas preventivas e educativas que incluam, inclusive, ações que não estimulem o comportamento viciante em apostas (fenômeno que está se tornando uma verdadeira epidemia, com gravíssimas consequências sociais); E. Constantes atitudes suspeitas em relação à manipulação de resultados, são alguns dos principais fatores que estão matando a nossa essência, nos distanciando cada vez mais do nosso “jeito de jogar futebol” e, infelizmente, fazendo com que sejamos cada vez menos admirados mundo afora.

10. E por fim, é urgente e inadiável a criação de um novo Calendário do Futebol Brasileiro, suficientemente abrangente para considerar estrategicamente todo o universo competitivo, desde nossas Seleções, equipes das Séries A, B, C, D, campeonatos regionais, até as competições de todas as divisões das categorias de base masculinas e femininas. Este novo calendário precisaria encarar de frente algumas questões de difícil solução, tais como: A. Conciliar interesses dos patrocinadores e meios de comunicação; B. Favorecer competições com níveis equiparados, tanto para o futebol masculino, quanto feminino; C. Propiciar um número de jogos anuais mais equilibrado para clubes das primeiras divisões (com demasiados jogos) e clubes que atuam quase que exclusivamente de forma regional ou estadual (com pouquíssimo jogos); D. Exigir a compatibilidade entre a frequência escolar e os jogos oficiais, para que haja um convívio salutar entre as atividades escolares e competitivas formando melhor nossos jovens atletas; E. Viabilizar deslocamentos razoavelmente racionais das equipes em um país com dimensão continental como o Brasil, para que os atletas tenham tempo suficiente para descansar e treinar, auxiliando a diminuir os riscos de lesões, e também aumentando o nível técnico das equipes, principalmente das que possuem elencos mais reduzidos; entre vários outros aspectos que poderiam ser pensados para aumentar o interesse do público e a qualidade do futebol brasileiro.

Enfim, são essas as principais atitudes e providências que, se entendidas e seguidas, certamente ajudarão a resgatar, nos próximos anos, o nosso orgulho e a admiração pelo jeito brasileiro de jogar futebol, trazendo de volta o nosso “jogo bonito”.

João Paulo S. Medina

Fundador da Universidade do Futebol