Por: João Batista Freire
Um dia tivemos um futebol livre, alegre, independente. Um dia que começou quando crianças e jovens pobres, pretos e brancos, das periferias das cidades brasileiras, tiveram contato com o futebol vindo da Inglaterra e de outros países europeus. Estávamos no começo do século XX. Esses mesmos brasileiros, quase sempre reprovados e excluídos do sistema de ensino oficial, considerados incapazes de aprender, passaram, não só a brincar com essa nova modalidade, mas a criar um outro jeito de jogar futebol. Por não poderem frequentar os grandes clubes, por não sofrerem a influência do modo de jogar dos ingleses, e por não serem controlados por professores e técnicos, brincaram de futebol ao modo deles, transformaram o futebol em uma brincadeira de jogar com qualquer tipo de bola em qualquer terreno possível. Essa gente considerada incapaz de aprender, eternamente esmagada pelo peso da cultura discriminatória europeia, não só era capaz de aprender bem, mas até de reinventar o grande e nobre esporte que encantava as elites brasileiras. E o austero futebol inglês, o sofisticado esporte bretão, virou, nos pés de nossos meninos pobres, o futebol brasileiro.
O futebol brasileiro, que por tantas décadas encantou o mundo, nasceu em um espaço que escapou ao mundo colonializado. A colonialidade é o fenômeno de submissão de um povo ao poder dos povos colonizadores – de modo geral, países do Norte global -, e preenche o espaço deixado pela colonização, quando a submissão é imposta fisicamente, presencialmente, como ocorreu no Brasil português e na América Espanhola durante séculos. Ter proclamado a independência não livrou os povos da América do Sul, assim como os da África, das imposições aos modos de pensar, de falar, de se comportar, de comer, de ouvir e assim por diante. A colonialidade se impôs onde antes havia colonização. Todos os dias, quando nossas crianças vão às escolas, os antigos colonizadores, com suas culturas atuais de povos do Norte global, invadem suas mentes através dos currículos escolares, que possuem, todos eles, em seus núcleos, as insinuações invisíveis dos antigos colonizadores. O mesmo ocorre quando ligamos nossos aparelhos de TV, quando vamos aos fast-foods ou quando abrimos nossas redes sociais. No entanto, aqueles meninos pobres das periferias das nossas cidades, por serem excluídos do nobre esporte bretão, puderam brincar com ele sem as pressões do chamado primeiro mundo. Ou seja, puderam jogar futebol como brasileiros. Aprenderam tão bem que superaram os inventores do futebol inglês. Quem aprende isso, aprende qualquer coisa; depende do modo de ensinar e de aprender. Deslocaram o foco da aprendizagem para aquele que aprende, ao passo que, nas escolas, o foco está em quem ensina.
Com o passar das décadas o futebol brasileiro incomodou sobremaneira os europeus. A partir do início dos anos 2000, ele foi sendo solapado por influências europeias e econômicas e está, atualmente, em extinção. Disso já tratei em outro texto que publiquei na Universidade do Futebol (A assepsia da arte de jogar futebol). O resultado aí está: preferimos assistir aos jogos das ligas europeias – e até da liga árabe. Nossas crianças pedem aos pais para comprarem camisas de ídolos de clubes europeus. Não há jogador jovem de destaque no Brasil que não seja negociado com clubes europeus (às vezes para países árabes ou norte-americanos). Nossos técnicos (com algumas exceções), preferem seguir os esquemas rígidos dos técnicos de clubes europeus a serem criativos e jogar ao modo brasileiro. Nossos craques, quando entram em campo, não conseguem representar o futebol brasileiro; jogam um futebol europeu, não conseguem mais ser brasileiros e ficam perdidos em campo.
Mas não bastam as críticas. Criticar é fundamental, mas, no mundo do esporte, apontar soluções é sempre mais interessante.
Não só os esportistas, mas todas as pessoas do mundo, aumentam suas chances de sucesso quando têm oportunidades de agir como elas mesmas. Somos pessoas únicas, originais. Nossa educação deveria nos orientar para sermos cada vez mais nós mesmos. Não se trata de uma proposta individualista, pelo contrário; quando somos cada vez mais nós mesmos, nos tornamos cada vez mais diferentes uns dos outros. E só pessoas diferentes podem realizar trocas ricas. Só pessoas diferentes têm o que trocar. Uma sociedade rica, democrática, deve ser feita por pessoas cada vez mais diferentes. As chances de sucesso de João são tão maiores quanto mais João puder ser João. Isso é válido para qualquer pessoa. Portanto, o futebol brasileiro terá tanto mais chances quanto mais puder ser brasileiro. E ele já o foi um dia, criado pelos meninos pobres das periferias das cidades brasileiras. Não é loucura aspirar a volta do futebol brasileiro, não como já foi um dia, mas inspirado por ele e do modo como poderia ser hoje. Não é loucura, é sanidade.
E como fazer para voltarmos a ter um futebol brasileiro? Há muitos obstáculos, é evidente. Basta ver como a imprensa desportiva trata aqueles técnicos que buscam esse modo de jogar futebol. Serão muito mais cobrados que aqueles que buscam as formas tradicionais, seguras, fundadas na ideia de não perder, no sentimento de medo. Um futebol fundado na alegria, na diversão, no lúdico, é muito mais arriscado. Aqueles que buscam esse caminho são mais cobrados, menos perdoados quando perdem, às vezes massacrados e até encerram suas carreiras por falta de oportunidades.
Não se trata de saudosismo. Esse futebol inventado pelos brasileiros constitui um saber considerável, um saber que está guardado nas memórias dos que o viveram e dos que conseguem ter contato com ele por diversas formas. Esses que viveram esse futebol, não necessariamente possuem belos discursos a esse respeito, e por isso não são reconhecidos por quem só considera a linguagem culta, acadêmica. São discursos proferidos na linguagem de quem viveu a prática, porém, acolhedores de um saber profundo, que pode ser resgatado e inspirador de modos de educar para o futebol e para a vida. Portanto, promover um ensino do futebol, hoje, fundado nos saberes do futebol inventado pelos brasileiros, e pelo ponto de vista de quem vai receber essa educação, é plenamente viável.
Sem dúvida, o mais forte motor desse futebol brasileiro é o lúdico, porque ele foi inventado em brincadeiras de crianças e adolescentes. Foi do lúdico que ele surgiu, tendo como modelo o futebol que já se praticava em vários países europeus e, em seguida, nos clubes de elite do Brasil. E por qual motivo o lúdico tem esse poder criativo de forjar, a partir de um modelo europeu, um futebol tipicamente brasileiro? Que força tem esse lúdico? Todos os que lerem este artigo foram ou ainda são pessoas brincadoras. Quando crianças provavelmente eram mais brincadoras que hoje. Se revirarem suas memórias perceberão o quanto já criaram enquanto brincavam, quantas coisas inventaram, quantas brincadeiras foram modificadas, recriadas. Porém, para a ideologia conservadora do futebol, que preconiza a eliminação do risco, que tem o medo como referência, o não perder como estratégia, o defender mais que o atacar, a rotina em vez da criatividade, o lúdico é um fantasma a ser evitado. Sei que é difícil definir o que é o lúdico, mas, sem dúvida, fazem parte dele o mistério, o risco, o imprevisível, a graça. Que graça tem um jogo de cartas marcadas?
É mais viável vivenciar o risco no ambiente lúdico que no ambiente de rotina, de tarefa, de trabalho. Quando nos pomos a executar uma rotina de trabalho, nosso compromisso é quase que exclusivamente com quem exigiu a tarefa, portanto, o compromisso é com algo externo a nós. Por outro lado, quando realizamos ações lúdicas, isto é, quando jogamos, não há compromisso com algo externo a nós. Sem contar com o fato de que o jogo é, em seu núcleo, uma simulação, um faz-de-conta, portanto, as consequências do erro não são graves, não há punição, porque não é necessário prestar contas fora do jogo. No caso do futebol profissional, como em qualquer esporte profissional, as ações comportam um misto de lúdico com trabalho, uma vez que os jogadores são contratados, recebem remuneração para jogar, precisam prestar contas do que fazem. Porém, há a parte lúdica, uma vez que futebol é um jogo, e todo jogo é lúdico. Por mais que o jogador tenha que prestar contas de suas ações, ele é envolvido nessa atmosfera lúdica que lhe permite, como uma criança, correr riscos de errar sem o peso das punições face aos erros cometidos no trabalho. Os treinadores de futebol precisam compreender o significado do lúdico no jogo de futebol e explorar esse fator em treinamentos e partidas. Os jogadores precisam ser convencidos a jogar, ao passo que certos esquemas de futebol os obrigam a apenas trabalhar.
É preciso, portanto, criar, nos treinamentos, um ambiente lúdico; sem abandonar, claro, o ambiente de trabalho. Os dois não são incompatíveis. Só no ambiente lúdico os jogadores serão capazes de ousar, de ir um pouco além do habitual, de se arriscar, de se divertir brincando de jogar bola. Só nesse ambiente lúdico serão capazes de se preparar para não abandonar o lúdico enquanto cumprem a tarefa de disputar partidas contra adversários. Portanto, nessa mistura de lúdico com trabalho, que é o jogo de futebol, é o lúdico que permitirá ao jogador a audácia de correr riscos ao lidar com o imprevisível (há outras ocasiões em que o ser humano corre riscos, e até extremos, fora do lúdico, mas não é nosso tema aqui).
É muito difícil definir as características do jogo. No entanto, não há jogo sem a presença do lúdico e do imprevisível. Como qualquer outro jogo, o futebol é um território de imprevisibilidades e de ludicidade. Quem pratica futebol somente por profissão, nunca terá a oportunidade de jogar e será incapaz de lidar adequadamente com o imprevisível durante uma partida. No mundo do trabalho evita-se o risco, teme-se o imprevisível. Porém, no mundo do lúdico, o modo como encaramos o que chamamos de responsabilidade, muda. É como se, no mundo do lúdico, tudo pudesse sempre começar de novo quando algo desse errado. E isso é verdade no jogo. Por pior que seja o resultado, outros jogos existirão em seguida e tudo poderá ser retomado.
Aos saudosistas do futebol arte do Brasil, dos tempos em que tínhamos o melhor futebol do mundo, do futebol que parecia com a brincadeira de jogar bola na rua, posso adiantar que esse tempo não voltará. Mas o modo como esse futebol foi criado está nas memórias de todos nós e pode servir de inspiração para reinventarmos novamente o futebol, tornando-o brasileiro. Os caminhos nós já conhecemos e eu tentei descrevê-los, ao menos parcialmente. É preciso recriar o ambiente lúdico nos treinamentos e partidas. Um jogador de futebol precisa, antes de mais nada, aprender a jogar e, em seguida, aprender a jogar futebol de maneira lúdica. A cada momento de uma partida, o imprevisível surge inevitavelmente. Não adianta lutar contra o inevitável, o caminho é aprender a lidar com esse imprevisível, e só o ambiente lúdico permite lidar bem com ele. Um jogador nunca saberá exatamente o que acontecerá no lance seguinte, mas, sem dúvida, será algo diferente de tudo que já viveu antes, por mais que guarde semelhanças. Para dar conta de algo, portanto, pelo menos parcialmente novo, ele terá que criar uma solução nova. Ou seja, terá que ser um jogador criativo. E onde se forma esse jogador criativo? Na brincadeira de jogar bola.