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Torneios e campeonatos em escolas de futebol: “vilões ou mocinhos”?

Por: Rafael Castellani e João Batista Freire

Em nossos dois últimos textos, “Mais uma vez explicando sobre a especialização precoce no futebol” e “A “miniaturização” do adulto no futebol”, publicados na Universidade do Futebol, abordamos assuntos que, apesar de extremamente importantes e há tempo presentes nas discussões entre aqueles que compõem o campo esportivo e debates acadêmicos, parecem ainda estar longe de um entendimento e, principalmente, de uma transformação da prática profissional cotidiana daqueles que trabalham como professores, treinadores e/ou gestores, em escolas de futebol.

No primeiro deles, anunciamos o objetivo de nos dedicarmos à cansativa tarefa de “desmascarar os arautos do treinamento precoce e as decorrentes competições”. Esperamos ter introduzido e discorrido o suficiente para, nestes dois textos antecedentes, justificar e argumentar contra a especialização esportiva precoce no futebol a partir do desenvolvimento moral e cognitivo das crianças, reafirmando nosso entendimento de que o tempo, características e interesses das crianças devem ser respeitados. Criança deve ser tratada como criança!  

Partindo desse pressuposto, as competições (campeonatos e torneios) organizadas pelas escolas de futebol e por empresas especializadas em eventos esportivos são, talvez (numa “briga” ferrenha com os treinos/aulas), o maior exemplo de materialização da especialização esportiva precoce e do tratamento de crianças como miniaturas de adultos no futebol.

É um problema crianças de 6, 8, 10, 12 e 14 anos disputarem campeonatos? Não! Crianças competem desde o primeiro ano de vida e o comportamento competitivo, além de enraizado em nossa cultura, é da natureza humana. Crianças de até seis anos de idade, por exemplo, disputam seus brinquedos, seus espaços, seus familiares mais próximos, entre outras coisas, porque são, ainda, bastante autocentradas, consideram o mundo quase que exclusivamente de seu ponto de vista. A partir dos seis ou sete anos de idade, essa referência começa a mudar, mas ela leva ainda alguns anos para demonstrar maior capacidade de se colocar, com segurança, no ponto de vista do outro. Portanto, durante toda a infância é esperado que as crianças sejam competitivas nesse sentido. Para se ter uma ideia de como é difícil colocar-se no ponto de vista do outro, donde resultam, por exemplo, a compaixão e a solidariedade, não é raro encontrar adultos incapazes de fazer isso.

O problema, então, é disputarem campeonatos nos moldes adultos, com princípios, regulamentos e comportamentos semelhantes aos dos profissionais (dos treinadores/professores, da arbitragem e da família), assim como vemos costumeiramente em todo o país. O problema é reproduzir com crianças as mesmas condições pelas quais passam jovens e adultos nas competições de que participam, voltadas à alta performance.   

Com essa afirmação, esperamos liquidar o questionamento trazido como subtítulo deste texto: campeonatos e torneios de futebol para crianças e jovens não são, em sua essência, nem bons, nem ruins, ou seja, nem mocinhos, nem vilões, eles são aquilo que fazemos deles.

São vilões se crianças e adolescentes disputarem campeonatos com o único objetivo de vencer… se o foco estiver exclusivamente no desempenho esportivo e na conquista do primeiro lugar, passando por cima daqueles que deveriam ser os principais objetivos: a formação humana e integral (que comtempla a formação esportiva nos seus aspectos técnicos, físicos, cognitivos, psicossociais, morais etc.) das crianças que jogam futebol.

São vilões se colocarmos crianças de 6 a 12 anos para disputarem jogos oficiais em campos (oficiais), com dimensões (do campo e das traves, por exemplo) não adaptadas a cada faixa etária. Tamanho e peso da bola, tempo de jogo, dimensões do campo, tamanhos das traves, número de jogadores, quantidade de substituições possíveis, penalidades, pontuação, premiação, perfil da arbitragem…praticamente tudo tem que ser adaptado para cada categoria.

Talvez não haja maldade maior nessas situações do que levar uma criança para um jogo competitivo e deixá-la no banco de reservas o jogo todo, privando-a do prazer e da rica experiência de disputar uma partida de campeonato contra outras crianças. Não obstante, tão triste e motivo de indignação quanto, é presenciar xingamentos, palavrões e cobranças absurdas realizadas por parte dos familiares. Isso é, ou deveria ser, inaceitável!  

O propósito, as regras e os regulamentos dos torneios e campeonatos de crianças devem ser para crianças! Devem respeitar as características, interesses e necessidades das crianças. Devem ser coerentes com o propósito educacional de escolas de futebol.  Se em clubes profissionais, em suas categorias de base, a discussão passa pela necessidade de destinarmos foco à formação, esportiva que seja, e não na conquista de títulos, em escolas de futebol isso deveria ser indiscutível.

Afinal, a competição, tal como a consideramos neste texto, não tem o mesmo caráter quando se trata de jovens em formação para o alto rendimento, tampouco de adultos profissionais. Professores, educadores e gestores preocupados com o bom desenvolvimento integral da criança, pensam a competição de maneira mais abrangente, considerando-a, também, como oportunidade de tomá-la como referência de competência frente ao outro. Não é exatamente um medir forças, mas uma observação da própria força (no sentido de capacidade geral de realização) na relação com o outro. Entendemos, ainda, a competição, do modo como a consideramos aqui, uma excelente oportunidade para que as crianças aprendam, aos poucos, que sem o outro, sequer haveria competição, que é por existir o outro correndo ao seu lado (por exemplo), que ela pode disputar uma corrida de velocidade. Pensar a competição dessa forma é também pensar que, ao mesmo tempo, ocorre cooperação.  

Foto: pixabay