Por: Ricardo André Encarnação
Introdução
Explorar e identificar jogadores talentosos em países não desenvolvidos representa uma oportunidade única, quer para clubes, quer para as academias/comunidades locais. Este processo, amplamente conhecido como scouting, envolve a observação cuidadosa, a avaliação detalhada e a seleção rigorosa de jovens atletas promissores para serem integrados em contextos competitivo, profissionais e/ou semiprofissionais em diferentes países. Contudo, realizar ações de scouting em regiões que se encontram não desenvolvidas torna-se particularmente complexo devido aos múltiplos desafios económicos, sociais e culturais que prevalecem. A instabilidade política, a pobreza generalizada e as desigualdades sociais muitas vezes comprometem as condições fundamentais para o desenvolvimento desportivo e a valorização justa dos talentos locais.
Neste cenário, os scouts enfrentam uma série de obstáculos que ultrapassam em larga escala a simples observação técnica e física dos atletas. Problemas relacionados com infraestruturas inadequadas ou simplesmente inexistentes, deficiências nutricionais graves, condições higiénicas precárias e formação técnica insuficiente, tornam muito difícil uma avaliação objetiva e precisa dos jogadores. Com intuito de colmatar as distintas realidades entre países desenvolvidos e não desenvolvidos, torna-se fundamental que os profissionais responsáveis pela observação compreendam profundamente as dificuldades que os jovens atletas e respectivas famílias enfrentam diariamente e adotem estratégias eficazes para ultrapassá-las, evitando que talentos puros e genuínos sejam desperdiçados devido a circunstâncias adversas.
Este artigo pretende analisar detalhadamente esses desafios, identificando abordagens práticas e eficazes que permitam aos scouts adaptar-se adequadamente à realidade local. Procura destacar o papel transformador do scouting enquanto motor de desenvolvimento social e económico sustentável nas comunidades mais carenciadas nomeadamente em países não desenvolvidos, demonstrando como uma abordagem bem estruturada pode gerar benefícios duradouros, tanto para os clubes envolvidos como para os atletas e suas famílias.
Scouting em países não desenvolvidos
Um dos obstáculos mais evidentes para o scouting em países não desenvolvidos é a precariedade ou inexistência das infraestruturas desportivas. Muitos campos de futebol carecem de condições básicas adequadas, apresentando superfícies irregulares, sejam em terra batida, relva – muitas vezes um misto de ervas e terra – frequentemente com pedras e buracos, que não só aumentam o risco de lesões como prejudicam significativamente a avaliação técnica dos jogadores. Esta situação obriga os scouts a interpretar cuidadosamente o desempenho dos atletas, tendo em conta fatores que possam indicar potencial desportivo apesar das dificuldades ambientais, estruturais, educacionais e naturalmente avaliar a capacidade de adaptação dos jovens atletas.
Os principais problemas a par do terreno em si, das infraestruturas inexistentes, nomeadamente balneários e/ou sítios para observação, incidem naturalmente nas linhas/marcas no campo, na ausência frequente de iluminação adequada, que limita drasticamente os horários disponíveis para observação e treino, condicionando a capacidade dos scouts de realizarem avaliações completas e precisas, em distintos contextos. A falta de equipamentos básicos essenciais como bolas de qualidade, luvas para os guarda-redes, coletes e redes adequadas para as balizas, contribui ainda mais para dificultar o processo, exigindo métodos criativos e adaptativos de avaliação por parte dos scouts. Para enfrentar estes desafios, é indispensável que se desenvolvam critérios de avaliação mais abrangentes e projetivos, utilizando as grelhas pessoais, no entanto têm de considerar especialmente qualidades como resistência, capacidade de adaptação e inteligência futebolística, e por fim avaliar o potencial de desenvolvimento futuro dos atletas em ambientes e condições bem mais favoráveis, nos países desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, mas com complexos em condições para a prática desportiva.
No âmbito de saúde e higiene, considero que um desafio significativo é a precariedade das condições nutricionais e sanitárias dos atletas. Muitos dos jovens promissores vivem em contextos de insegurança alimentar, o que afeta diretamente o seu desempenho físico, diminuindo a resistência e comprometendo as avaliações técnico-táticas. Estes problemas nutricionais frequentes resultam em fadiga precoce, dificuldade de concentração e incapacidade de demonstrar plenamente o potencial físico e intelectual do jogador em campo. As condições de higiene inadequadas aumentam a vulnerabilidade dos atletas a doenças infecciosas, prejudicando a continuidade dos treinos e jogos e dificultando ainda mais uma avaliação precisa e consistente.
A título de exemplo, aquando de uma das minhas deslocações à Nigéria, muitos dos atletas além de se encontrarem desnutridos no momento dos jogos, pois apenas alimentavam-se de amendoins, chegavam aos campos com níveis de ansiedade elevadíssimos e completamente desgastados, por realizarem viagens de até 24 horas através de péssimas estradas, jogavam em campos com condições altamente precárias, num tal misto de terra com erva, cheio de buracos. Por breves momentos, principalmente nas primeiras experiências em países não desenvolvidos, no primeiro contacto com os jogadores e antes dos jogos, o scouting acaba por sentir sobressair mais o ser humano do que o profissional de futebol.
Para abordar de forma eficaz estas dificuldades, os scouts devem ser formados para realizar avaliações abrangentes que incluam fatores de saúde e nutrição, garantindo que atletas com potencial genuíno não sejam descartados injustamente devido às circunstâncias atuais da realidade local. Quando ocorre a visita de um scout europeu, é frequente que os jovens jogadores desenvolvam expectativas muito elevadas em relação à possibilidade de alcançar rapidamente uma carreira profissional bem-sucedida e de topo mundial. Torna-se assim fundamental que os scouts saibam gerir estas expectativas, esclarecendo os atletas sobre os desafios e a alta competitividade existentes no futebol profissional europeu. Preferencialmente falar de atletas com as mesmas origens e demonstrar todo o sacrifício necessário para alcançar um primeiro contrato profissional, a necessidade de rápida adaptação ao futebol no destino, ao estilo de vida, ao clima, incentivando igualmente à necessidade de formação/educação continua para salvaguardar o futuro do jovem atleta.
Trabalhar a resiliência emocional e psicológica dos jovens atletas é fundamental, de forma a prepará-los para enfrentar adversidades, críticas e o eventual fracasso em testes ou avaliações. Os scouts têm a responsabilidade de explicar claramente que o percurso para o sucesso no futebol profissional é longo e incerto, requerendo persistência e dedicação constantes. É igualmente importante assegurar um acompanhamento emocional adequado aos jogadores que não são selecionados, para que estes possam gerir o fracasso de forma construtiva. Apoiar e incentivar estes atletas na definição de objetivos realistas e sustentáveis permitirá que mantenham a motivação e continuem a desenvolver-se a nível pessoal, a nível familiar, académico e por fim desportivo.
Conclusão
Para realizar sessões de scouting via torneios ou jogos-treino em países não desenvolvidos envolve enfrentar desafios complexos que ultrapassam as questões técnicas, táticas e físicas dos jogadores, tornando-se essencial que os profissionais envolvidos estejam preparados para lidar com as dificuldades estruturais, sociais e emocionais, académicas e desportivas adotando uma abordagem compreensiva e adaptada à realidade local.
Investir em formação especializada e contínua para os scouts de todos os clubes é fundamental para garantir uma avaliação justa e precisa de jovens atletas, que sejam observados em quaisquer condições, principalmente nas mais precárias. Estabelecer parcerias sólidas entre clubes, escolas, instituições locais e academias, pode criar condições favoráveis ao desenvolvimento sustentável do futebol e à melhoria das condições de vida nas comunidades.
A gestão adequada das expectativas dos jogadores e o suporte emocional perante o sucesso ou fracasso são essenciais para garantir que a experiência dos jovens jogadores observados por um ou mais scoutings, seja um processo positivo e enriquecedor para todos os envolvidos. Para concluir, reforço que a de adaptação à realidade local, em países não desenvolvidos, não só facilita o processo de identificação de jovens talentos, como também permite transformar desafios em oportunidades valiosas de desenvolvimento social e económico nas regiões menos favorecidas.