Por: Sérgio Raimundo
No treino do futebol profissional temos que escolher, se queremos organização extrema nos exercícios, muitas vezes dando feedback a cada bola jogada, para nos sentirmos no controle dos exercícios, ou se preferimos caos, um caos organizado, que permita aos jogadores tentar, errar, acertar, voltar a tentar, testar diversas soluções.
Experimentar o erro e o acerto nos exercícios, jogar de forma espontânea e tomando constantes decisões dentro do modelo de jogo proposto (forma de jogar da equipe), enfrentando adversários chegando de diversos ângulos e com diversas velocidades, sem uma sequência única e definida, permite aos jogadores realizar decisões continuamente em jogo, em condições aleatórias, variáveis e imprevisíveis, que promovem uma auto-organização da equipe que deve funcionar como um todo, no qual o movimento de um jogador, a posição da bola e dos adversários fazem variar o posicionamento de todos os jogadores da própria equipe em campo. A equipe funciona como um sistema que se adapta constantemente e aprende coletivamente com os ajustes e experiências de treino que se tornam aprendizagem, quando se tornam rotinas. A equipe aprende em conjunto, não sabe o resultado do exercício antes de o iniciar, quando realiza jogos em espaços reduzidos ou em grandes.
Quando juntamos tática e criatividade na mesma linha, muitas vezes, podemos encontrar o conflito e discussão entre deixar os jogadores tomar as decisões, ou limitar as decisões que os mesmos podem tomar. Pensamos em jogadores que apenas seguem regras, ou jogadores que pensam em como decidir em jogo, de forma total ou dentro do modelo de jogo proposto. Se por um lado, creio que a maioria dos treinadores concorda, que os jogadores deverão ter alguma autonomia para decidir, pois é o que acontece em jogo, por outro, se cada um reagir por si durante todo o jogo, a equipe corre o risco de não estar organizada, pois ninguém sabe muito bem o que cada um vai fazer.
O termo “modelo de jogo” foi introduzido há vários anos, por forma a servir como uma linguagem coletiva comum a todos os jogadores da mesma equipe, uma inteligência coletiva que permite que todos os jogadores antecipem as decisões dos próprios companheiros de equipe, em situações de grande estresse, nas quais as respostas devem ser dadas de forma automática. Em situações de estresse o cérebro vai sempre optar pela forma mais rápida de reação e decidir em aplicar as rotinas para as quais foi condicionado durante os dias de treino. No fundo, o modelo de jogo, a estratégia de jogo e as decisões sob estresse, geram os princípios de ação da equipe sob a forma de inteligência coletiva, e isso torna-se na cultura de jogo da equipe.
O “caos organizado” nos exercícios de treino, isto é, as decisões abertas [uma possível decisão ou várias, sem imposição de uma resposta única por parte do treinador ao jogador], poderão ter um impacto positivo na criatividade dos jogadores, quando aumentarem a organização coletiva, tornando-se numa ideia comum e adaptável, quando ajudarem a antecipar e solucionar problemas e reduzir e aumentar a confiança dos jogadores. Mas poderá, também, ter um impacto negativo, podendo bloquear a criatividade, criando dependência de soluções, tornando-se numa ideia comum fixa, gerando ansiedade e diminuindo a confiança nos mesmos.
Segundo o professor Duarte Araújo, da Faculdade de Motricidade Humana, é importante que o caos, potencializando a variabilidade nos exercícios, promova a intencionalidade coletiva, compartilhando objetivos claros durante o exercício para que a equipe encontre a solução comportamental que vai variar constantemente em função do que está a acontecer em tempo real. É também importante que os mesmos contenham informação funcional, isto é, possuam elementos-chave do contexto de jogo (bola, adversários, gol), para oferecer possibilidades relevantes de ação para os jogadores encontrarem as soluções para os mesmos. Por fim, os exercícios deverão, também, permitir um movimento adaptativo, isto é, permitir variações na maneira como os jogadores adaptam seus movimentos para concretizar as affordances, isto é, as possibilidades que o envolvimento, constituído pelo campo e pelas regras, permitem, tendo em conta os elementos chave bola, adversários, gol [direção do jogo].
Dentro do movimento e ações nos exercícios, a aprendizagem e ambiente de incentivo aos alunos a se adaptarem e encontrarem suas próprias soluções, vão acontecer erros. Se tratarmos cada um desses erros como um drama e pararmos a prática para dar feedback a cada ação, então, o efeito de aprendizado, automatização coletiva e experimento de soluções, desaparece. Aí entra a importância do feedback pedagógico.
Se iniciarmos um exercício e todos os praticantes cometem o mesmo erro, então sim, devemos parar o mesmo e voltar a explicar, demonstrar, ou realizar as ações necessárias para o bom decorrer do mesmo. Se o erro fôr apenas praticado por um ou alguns jogadores de forma intermitente, então podemos dar feedback à ação enquanto o exercício estiver decorrendo. É como num jogo. Quando o jogador realiza um jogo, o treinador não pode parar o mesmo a cada erro que o jogador realiza. Até se torna importante o jogador desenvolver formas de lidar com os erros que comete e reagir aos mesmos, que não será possível desenvolver se o treinador pára o jogo, cada vez que algo errado acontece, na sua visão.
O feedback tem várias dimensões e ainda mais subcategorias, e é altamente dependente do estilo de liderança dos treinadores, mas há formas de estruturar o mesmo, para evitar constantes paragens nos exercícios. Para isso, é chave conhecer, também, o jogador como pessoa. Cada jogador tem a sua vida e o seu tipo de personalidade e enquanto alguns necessitam de saber o porquê de tudo o que fazem, outros necessitam de motivação, outros regras, outros de serem envolvidos no processo de liderança, outros espaço para experimentar sem qualquer feedback, etc.
Algumas das técnicas para fazer desaparecer a necessidade constante de feedback por parte dos participantes e deixar os mesmos tomar suas decisões em jogo, passam por realizar, por exemplo, um feedback sumário. Desta forma, os treinadores apenas dariam feedback após uma série de tentativas, ou no intervalo das séries ou blocos de cada exercício. Outra técnica, passaria por apenas dar feedback se certos erros fossem cometidos, que não seriam admissíveis no contexto de equipe e do modelo de jogo. O estilo de pergunta e resposta, também chamado de descoberta guiada, pode, também, influenciar nas decisões do jogador sem lhe impôr a solução. Por exemplo, se perguntarmos “onde está o homem livre”, essa simples questão pode fazer o mesmo levantar a cabeça mais cedo ou seguir “ligado” de onde está o homem livre ao longo do jogo. Por fim, se dermos mais feedback descritivo, em vez de ordens prescritivas, o jogador poderá sentir-se encorajado a encontrar as suas respostas. Um mero exemplo poderia ser dizer “ o centroavante vem pressionando diretamente fechando passe para o meia” em vez de dizer “passa para o outro zagueiro”, de forma prescritiva.
Outros fatores essenciais para a qualidade e gestão da sessão de treino seria a adequação dos conteúdos à cultura e realidade dos jogadores do time, diminuir o tempo de transição efetiva entre exercícios, aumentar ao máximo possível o tempo dedicado ativamente em aprendizagem, o clima da sessão que deverá permitir aos jogadores serem criativos sem temer consequências negativas por cometer “erros honestos” que advêm da tentativa honesta de tomar decisões em prol do time, a adequação a diferentes necessidades individuais e o conhecimento pessoal do atleta e envolvimento do mesmo no processo de desenvolvimento como jogador.
Foto: Marc-Graupera (FC-Barcelona)